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30.9.22

Moradores do Segundo Torrão vão ser realojados em hotéis

Cristiana Faria Moreira, in Público on-line

Demolição das casas que se situam junto de uma vala em risco neste bairro precário de Alamada vai arrancar no sábado e durar até dia 6. Em causa estão 60 famílias que terão de ser realojadas em apartamentos e unidades hoteleiras ou então procurar apoio junto da Segurança Social. Amnistia Internacional está a acompanhar o processo.

É um dos maiores bairros precários de Almada, a apenas uma ponte de distância de Lisboa. O Segundo Torrão costuma ser notícia nos Invernos rigorosos de frio e tempestades, quando fica dias a fio sem luz e os electrodomésticos estouram com a sobrecarga de energia. Ao longo do último meio século, este bairro à beira-mar cresceu muito além das pequenas casas dos pescadores, alargando-se para terrenos da Administração do Porto de Lisboa e de privados.

Ergueram-se casas desordenadas, coladas umas às outras ou separadas por becos estreitos, por onde as crianças correm e brincam. Hoje, serão casa para mais de 300 famílias, muitas chegadas das ex-colónias à procura de melhor vida. Nos próximos dias, poderemos assistir ao início do seu fim: uma “situação de urgência e de emergência” precipitou o arranque do há muito anunciado realojamento do bairro do Segundo Torrão. Esta sexta-feira é o último dia para alguns moradores deixarem as suas casas. As demolições arrancam no sábado.

“Tivemos de acelerar o realojamento. O princípio da prevenção e precaução sobrepõem-se a outros”, disse a presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, aos jornalistas que convocou para uma sessão de esclarecimentos sobre este processo.

O aviso aos moradores chegou no início de Junho quando o município convocou cerca de 40 famílias para uma reunião sobre uma intervenção urgente na vala de drenagem de águas pluviais do bairro.

De acordo com o município, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS) de Almada identificaram, ainda em 2019, “problemas com as descargas de esgotos para o rio”, nomeadamente “problemas de salubridade e de escoamento”.

O que era então “um problema de saúde pública” tornou-se uma “emergência”, quando em Maio passado os SMAS voltaram ao local e alertaram para a “deterioração acelerada da vala”, e o “possível colapso do colector” no caso de uma tempestade e de cheias, que poderia pôr em risco as casas que foram construídas por cima e arrastá-las para o mar.

De acordo com o município, o betão da vala foi sendo furado para a drenagem de águas residuais das habitações ao longo dos anos, colocando-o ainda mais em risco. “Há zonas onde o betão já desapareceu. A questão do peso começa a ser preocupante”, diz a autarca. Para a câmara, a emergência é tal que decidiu declarar a situação de alerta municipal e activar o plano municipal de emergência de Protecção Civil no passado dia 23 de Setembro.
Realojamento temporário

Há cerca de quatro meses, algumas famílias começaram a ser alertadas para a necessidade de deixarem as suas casas até 30 de Setembro, antes do início do novo ano hidrológico, a 1 de Outubro. Seriam realojadas temporariamente noutras habitações pelo concelho – ou fora dele — até a câmara ter pronta a construção de 95 casas municipais, destinadas ao realojamento definitivo, que serão pagas pelo Plano de Recuperação e Resiliência, num investimento estimado em cerca de dez milhões de euros.

Até agora, diz o vereador da Habitação, Filipe Pacheco, foram identificadas para demolição 83 construções (casas, anexos e outros estabelecimentos). E há 60 famílias que terão de ser realojadas. Destas, há nove agregados que já se encontram realojados em casas novas em Almada e noutros concelhos e 27 com uma “solução habitacional já aceite”, esperando a assinatura dos contratos de arrendamento e a instalação de água e luz.

Segundo o autarca, o processo de realojamento tem sido negociado “caso a caso” e o número de famílias incluídas neste processo foi aumentando ao longo dos últimos meses. Há ainda 16 famílias para as quais não foi encontrada resposta. “O mercado da habitação está saturado. É uma verdadeira dificuldade”, nota Inês de Medeiros.

Perante a emergência decretada, o município accionou o Programa Porta de Entrada do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), que se aplica “às situações de necessidade de alojamento urgente de pessoas que se vejam privadas, de forma temporária ou definitiva, da habitação ou do local onde mantinham a sua residência permanente ou que estejam em risco iminente de ficar nessa situação, em resultado de acontecimento imprevisível ou excepcional”.

Inicialmente, foi dito aos moradores que teriam de ser eles a encontrar uma casa que se enquadrasse na tipologia definida para o seu agregado e nos critérios fixados pelo IHRU em termos de áreas e de custo. Mas, depois de várias dificuldades relatadas pelos moradores, a câmara assumiu a procura por casas no mercado de arrendamento privado para depois as disponibilizar às famílias.

Dessas 60 famílias sinalizadas, há ainda oito famílias que a câmara diz não se enquadrar nos critérios do Porta de Entrada por terem uma segunda habitação ou por estarem a trabalhar fora do país na altura em que foi feito o levantamento, em 2020. Essas famílias, diz a autarquia, têm sido remetidas para a Segurança Social. “Não há nenhuma família que não esteja a ser acompanha”, acrescenta a vereadora da Protecção Civil, Francisca Parreira.

Os moradores que não têm ainda uma alternativa habitacional serão instalados em unidades hoteleiras em Almada e Lisboa. Inês de Medeiros afiança que a câmara assumirá todos os custos pelo alojamento em unidades hoteleiras, assim como as despesas com a alimentação. E diz ainda que o município tem condições para guardar os bens das famílias, assim como os seus animais de estimação.

A data de saída das casas dada aos moradores foi 30 de Setembro, esta sexta-feira. A área da vala foi dividida em cinco para o realojamento ser faseado. A demolição das casas vai iniciar-se no sábado, diz 1, e terminar a 6 de Outubro.

Este processo custará ao município entre 1 e 1,5 milhões de euros, embora parte do montante seja ressarcido pelo programa Porta de Entrada. Por agora, este programa terá a duração de 36 meses, esperando que no final desse período estejam concluídas as 95 casas que a câmara quer construir para realojar estas pessoas e mais uma parte do bairro.
Amnistia Internacional está a acompanhar o processo

Este processo tem sido criticado por alguns moradores que se queixam de não terem sido incluídos no processo de realojamento, apesar de viverem junto à vala. Mas, entre os que foram identificados, houve também queixas relativas à gestão de toda esta situação por parte do município.

No início do mês, o PÚBLICO deu conta das preocupações de alguns munícipes, que temiam ter de sair do concelho de Almada, colocar os filhos noutras escolas, desfazer laços e ter criar novas raízes num local novo que, supostamente, ocuparão apenas por três anos. Queixavam-se ainda de pouco apoio por parte do município e de informações confusas.

A câmara, contudo, refuta essas críticas. “Não é verdade que a câmara não tem estado no bairro. Este processo foi comunicado e negociado com os moradores”, disse Filipe Pacheco.

A Amnistia Internacional - Portugal tem também estado a acompanhar o processo de realojamento destas famílias. Num comunicado enviado ao PÚBLICO, esta organização salienta que, para as famílias visadas, é “fundamental estar garantida uma casa provisória, que cumpra os padrões internacionais de adequação, antes da data de demolição da casa actual, de forma que não se verifiquem desalojamentos forçados”.

“Só assim estará protegido o direito à habitação adequada, consagrado em vários tratados de direitos humanos regionais e internacionais, por forma a que as famílias possam viver em segurança, paz e dignidade”, continua a organização, que garante continuar a acompanhar as famílias para garantir que o município garante o “respeito pelos direitos humanos destas pessoas” no realojamento.

O director executivo da Amnistia Internacional – Portugal, Pedro A. Neto, nota ainda que, apesar a situação precária e de incumprimento, “muitas destas famílias trabalham a tempo inteiro servindo a sociedade de que todos fazemos parte, mas mesmo assim não conseguem sair da situação de pobreza em que vivem”.


6.5.22

Moradores alvo de despejo no Griné pedem intervenção do presidente da Câmara de Aveiro

Maria José Santana, in Público on-line

Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana diz que o que está em causa é a “desocupação de habitações que foram ocupadas ilegalmente”.

Vários moradores do bairro do Griné marcaram presença, esta quinta-feira, na reunião camarária de Aveiro, com o objectivo de alertar o presidente da autarquia, Ribau Esteves, para a situação que deixou duas famílias daquela urbanização na rua, a viver numa tenda. Há duas semanas, na sequência de uma acção do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), aqueles moradores foram confrontados com uma ordem despejo das casas que haviam ocupado ilegalmente. Atendendo a que há mais famílias em situação de ilegalidade, espera-se que outros mais despejos possam ocorrer nos próximos tempos. Ribau Esteves mostrou-se disponível para ouvir os moradores em audiência e lamentou que o IHRU não dialogue com os seus inquilinos.

No total, serão 14 famílias em risco de serem despejadas. “Duas já foram retiradas à força e estão a viver em tendas erguidas junto ao bloco de apartamentos onde vivem”, alertou Paulo Monteiro Ximenes, um dos moradores que se dirigiu ao executivo camarário aveirense. Segundo fez questão de explicar, as casas ocupadas “estavam fechadas há vários anos, emparedadas”, tendo os moradores em questão tentado regularizar a situação junto do IHRU. “Há anos que solicitamos a regularização mas nunca obtivemos resposta”, frisou.

Perante isto, Paulo Monteiro Ximenes, juntamente com outros moradores do bairro, quiseram saber o que o líder da autarquia “tem em mente para resolver este problema”. Ribau Esteves mostrou-se disponível para os receber em audiência, sem deixar de lamentar que esse pedido ainda não tenha acontecido. Sendo estas habitações propriedade do IHRU, o autarca atribui responsabilidades a este organismo, a quem acusa de não dialogar com os seus inquilinos.

A este propósito, Ribau Esteves lembrou o atraso da reabilitação do bairro, intervenção para a qual a Câmara de Aveiro já cativou uma verba ao abrigo do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano da Cidade de Aveiro (PEDUCA). O avanço está dependente de projectos que o IHRU ainda não apresentou.

Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério das Infra-Estruturas e Habitação deu nota das explicações avançadas pelo IHRU e que começam por referenciar que as situações identificadas no Bairro da Griné, “não correspondem a processos de despejo, mas antes a processos de desocupação de habitações do IHRU que foram ocupadas ilegalmente”.

Sobre os dois casos em questão, o organismo público diz ter tido conhecimento, através do tribunal, “do Relatório da Segurança Social que demonstra que os agregados, que têm vindo a ser acompanhados pela Segurança Social, têm rendimentos próprios e não apresentam sérias dificuldades de realojamento”. O IHRU alerta para o facto de este tipo de ocupações ilegais impedirem “a realização das intervenções de reabilitação das habitações ocupadas e, como tal, a respectiva atribuição a famílias que aguardam, em listas de espera e no cumprimento da lei, o acesso a uma habitação pública”.

6.1.22

Estratégia de combate à pobreza foi publicada. Haja “vontade política” para a levar ao terreno

Natália Faria, in Público on-line

Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, publicada esta quarta-feira em Diário da República, propõe-se retirar 660 mil portugueses da pobreza até 2030.

As metas já eram conhecidas: retirar 660 mil pessoas da pobreza até 2030, das quais 170 mil crianças e 230 mil trabalhadores. Falta agora, segundo o especialista em desigualdades Farinha Rodrigues, “garantir que haverá vontade política para levar à prática” a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 (ENCP), publicada esta quarta-feira em Diário da República.

Numa altura em que o primeiro ano da pandemia criou 228 mil novos pobres, segundo o mais recente inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE) — que fixa agora em 1,9 milhões os portugueses em situação de pobreza, isto é, obrigados a viver com menos de 554 euros por mês —, a ENCP propõe-se reduzir a taxa de pobreza monetária para o conjunto da população para 10%, o que representa uma redução de 660 mil pessoas. Quanto aos trabalhadores pobres, que segundo o INE subiram de 9,6% para 11,2%, o objectivo é reduzir para metade a taxa de pobreza neste grupo.

Mas a ENCP foca-se prioritariamente nos mais novos, de maneira a “quebrar a reprodução dos ciclos de pobreza, não apenas retirando as crianças da situação de pobreza”, mas garantindo que “a condição socioeconómica dos agregados deixe de ser um preditor tão preponderante de sucesso escolar e de percursos profissionais”.

Além de reforçar os apoios à frequência de creches instituindo a sua progressiva gratuitidade, a ENCP propõe-se ainda tornar o pré-escolar “tendencialmente gratuito”, criando assim as condições para tornar a sua frequência obrigatória a partir dos três anos de idade “no médio prazo”.

Portugal não estará sozinho neste propósito, tal como o PÚBLICO noticiou. Apesar de na maioria dos sistemas educativos europeus a escolaridade obrigatória se iniciar aos seis anos, a França, por exemplo, decidiu, em Setembro de 2019, baixar para os três anos a idade de início da escolaridade obrigatória. Já era assim na Hungria. E na Bélgica a idade de início da escolaridade obrigatória baixou, também em 2019, para os cinco anos. Na Grécia, inicia-se aos quatro anos, segundo o último relatório da rede Eurydice sobre o ensino obrigatório na Europa.

Como a escola continua a ser, apesar de todas as suas debilidades, o principal elevador social, a ENCP propõe-se ainda reforçar as medidas de apoio ao acompanhamento dos alunos no contexto pós-pandémico e desenvolver mecanismos de apoio ao estudo para crianças de agregados familiares pobres através da criação de “espaços de estudo acompanhado”.

A detecção precoce de problemas de saúde mental deverá igualmente ficar assegurada por via do anunciado aumento da rede de psicólogos escolares, sendo que o documento prevê ainda, entre uma miríade de outras medidas, a criação de mecanismos de acesso gratuito para crianças inseridas em famílias desfavorecidas a consultas de rotina na área da saúde oral, mental e a rastreios visuais e auditivos.

A ENCP vai, porém, mais longe, propondo medidas concretas nas áreas do emprego, da formação e da habitação. A existência de crianças no agregado familiar deverá ser uma condição prioritária de acesso à habitação. E, a pensar nas dificuldades dos jovens, particularmente dos de menores rendimentos, no acesso à habitação, prevê-se o reforço da habitação com renda acessível, através da criação de um “parque habitacional público a preços acessíveis”, a construir através da reabilitação do património imobiliário do Estado com aptidão para uso habitacional.

É um bom ponto de partida”, reage ainda Farinha Rodrigues, professor no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa, e investigador nas áreas da desigualdade e pobreza, enfatizando o facto de, pela primeira vez, ficar “reconhecido que o problema do combate à pobreza não é exclusivo do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, mas transversal aos vários ministérios”.

660.000 As pessoas que serão retiradas da pobreza até 2030, das quais 170 mil crianças e 230 mil trabalhadores

Para o também membro da comissão de coordenação responsável pela proposta de ENCP falta, contudo, garantir que haverá vontade política para levar a estratégia ao terreno. “É uma questão de vontade política, sendo que estamos num contexto de alguma incerteza”, alerta, dizendo-se satisfeito pelo facto de a estratégia aprovada pelo Governo prever a criação de uma comissão interministerial de acompanhamento e avaliação da execução da ENCP, a qual ficará ainda incumbida de nomear um coordenador nacional da estratégia.

O texto da ENCP é, no entanto, omisso, quanto às esperadas alterações no Rendimento Social de Inserção (RSI), proposto pelos especialistas, que gostariam de ver esta prestação não contributiva alargada a mais beneficiários e não, como até agora, restringida aos mais pobres de entre os pobres.

No último inquérito às condições de vida, feito com base nos rendimentos de 2020, isto é, do primeiro ano da pandemia, o INE fixava em 18,4% os portugueses que estavam abaixo da linha de pobreza, num agravamento de 2,2 pontos percentuais relativamente a 2019. Foi o maior aumento da pobreza desde 2003, segundo os especialistas, que admitiam, porém, poder tratar-se de um efeito transitório da pandemia e não de uma inversão da tendência que, desde a crise iniciada em 2008, vem apontando baixas consecutivas no número de portugueses em situação de pobreza.

5.10.21

Mulheres sem abrigo são mais do que parece. Algumas identificam-se como mães, embora desacompanhadas

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Primeira tese de doutoramento sobre mulheres em situação de sem abrigo traça caminho percorrido até aquele ponto e mostra importância que atribuem às relações, sobretudo as de maternidade.

As mulheres em situação de sem abrigo não são tão poucas como parece: mais depressa encontram alternativas à rua e quando não o fazem tendem a camuflar-se. Muitas continuam a identificar-se como mães, apesar de não estarem acompanhadas pelos filhos.

A primeira tese de doutoramento feita em Portugal sobre mulheres sem-abrigo tem natureza exploratória e está escrita em inglês: Wome’s Homelessness and Housing Exclusion in the Northern Lisbon Metropolitan Area: An In-depth Exploratory Study.

É uma médica especializada em Gastrenterologia a autora desta tese de doutoramento em Ecologia Humana, defendida em Junho deste ano na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Chama-se Sónia Nobre e conta 45 anos.

Em 2011, durante a crise da dívida, começou a fazer voluntariado numa organização não-governamental, a Médicos do Mundo, na Área Metropolitana de Lisboa. Nunca lidara com pessoas sem tecto. As rondas que fazia prestando cuidados de saúde primários levaram-na a questionar-se sobre tudo aquilo. “Até que ponto a intervenção é eficaz?”

A medicina não lhe dava todas as respostas. Percebendo a importância dos contextos, procurou-as nas ciências sociais e humanas. Em 2014, suspendeu a actividade médica para se dedicar ao doutoramento.

Chegar às mulheres era, por si só, um processo lento. Nessa busca, percorreu as ruas de Lisboa com “muita persistência”. Também pediu ajuda a várias instituições que trabalham no terreno.

Fixou-se em 34 mulheres dos 18 aos 68 anos. Algumas viviam na rua, outras em centros de alojamento temporário. Queria percebê-las, conhecer as suas rotinas, o seu quotidiano. “Ficava a conversar com elas de forma informal. Acompanhava-as ao café. Fazia-lhes companhia.”

O trabalho, feito entre 2015 e 2018, combina a etnografia com entrevistas biográficas aprofundadas. Traça caminhos percorridos até à situação de sem abrigo, estratégias usadas para lidar com a situação, as representações, o acesso à habitação, as percepções sobre o futuro.
Conceito mais abrangente

Sónia Nobre não quer que se pense que “as mulheres em situação de sem abrigo são poucas e estão na rua”. Isso é só um estereótipo.

O conceito adoptado por Portugal é restrito. Os últimos dados conhecidos, apurados em Dezembro de 2019, apontam para 4340 sem-abrigo, isto é, pessoas a viver em centros de alojamento temporário, alojamentos específicos para pessoas sem casa, quartos pagos pelos serviços sociais. E 2767 pessoas sem tecto, isto é, a viver no espaço público (ruas, jardins, viadutos, estações de transportes públicos), locais precários (carros abandonados, vãos de escada, casas abandonadas). Num caso e noutro, as mulheres representavam apenas 20%.

A investigadora adoptou a “Tipologia Europeia sobre Sem-Abrigo e Exclusão Habitacional”. O conceito abrange, por exemplo, os centros para mães solteiras e as casas abrigo para vítimas de violência doméstica. Para que se tenha uma noção da volta que isso dá aos números globais bastará saber que no segundo trimestre deste ano havia 718 mulheres e 16 homens nas estruturas da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

A investigadora refere outras situações de sem abrigo camufladas que mais depressa são protagonizadas por mulheres: passar uns tempos em casa de familiares ou amigos; aceitar trabalhar como empregada interna; precipitar a coabitação com um namorado só para ter onde morar. “São soluções em regra temporárias, precárias e eventualmente inseguras, mas é, muitas vezes, quando se esgotam estes recursos informais que as mulheres recorrem aos serviços de apoio”, diz. A situação pode ir de casas de familiares para quartos, centros de alojamento, rua.

Mesmo quando pernoitam no espaço público, as mulheres tendem a ser menos avistadas. Um número significativo (26 em 34) das que Sónia Nobre estudou esteve algum tempo sem tecto. Todas empregavam estratégias de invisibilidade. “Pernoitam em sítios escondidos, pelo mínimo tempo possível, habitualmente sozinhas.”

Nem só a segurança as levava a fazer um esforço de ocultação. Disfarçar é uma forma de conservar alguma dignidade. Sónia reparou como cuidar da aparência e da higiene pessoal é importante para elas. “Quem olhasse para a maioria delas não as reconheceria como sem-abrigo”, acredita. “Apresentam-se como qualquer pessoa, de modo convencional. Desafiam a imagem convencional da pessoa que está na rua, de aparência descuidada, suja, carregada de pertences. Ficam, por exemplo, no aeroporto, numa sala de espera de hospital, num carro.”
Culminar de longo percurso

A investigadora também quer desfazer a ideia feita de que “as mulheres em situação de sem abrigo são todas toxicodependentes, envolvidas em trabalho sexual, com doença mental”. “Quando nos aproximamos o suficiente para conhecer as suas histórias de vida percebemos o quanto essa imagem é redutora, o quanto a situação de sem abrigo é condicionada por factores estruturais, como a pobreza persistente ou o acesso à habitação.”

Procurando o que precipitou a situação, Sónia Nobre encontrou “dificuldades em casa, saída de lares de crianças e jovens em perigo, fim de relações amorosas, violência doméstica, despejo ou risco de despejo, uso de substâncias, saída da prisão”. Através das entrevistas biográficas, foi percebendo como aquilo era “o culminar de circunstâncias e eventos complexos e entrelaçados”.

Muitas das suas entrevistadas viveram episódios dramáticos logo no início das suas vidas que “minaram os seus percursos”. A morte de familiares, a negligência, a violência doméstica, o abandono escolar precoce. Que rede informal de apoio tem quem cresceu numa família desestruturada ou numa instituição? A que salário pode aspirar quem nem fez a escolaridade obrigatória?

A falta de conhecimento sobre os serviços disponíveis é uma barreira. Muitas pessoas nem sabem que, vendo-se na iminência de ficar na rua, podem ligar para a linha de emergência social (144).
Mães não acompanhadas

Não se identificam como sem-abrigo, as mulheres que participaram neste estudo. Admitem não ter habitação, mas não deixam que isso as defina. “Elas articularam uma infinidade de experiências e papéis através dos quais se foram definindo, incluindo ser mães, avós, filhas, esposas, amigas, trabalhadoras, ajudantes de outros, vítimas de violência doméstica, ex-reclusas, toxicodependentes e por aí fora.”

Nas conversas que iam tendo com a investigadora, falavam amiúde nas suas ligações. “As suas fontes de motivação e alegria passam amiúde pelas relações interpessoais, pelo anseio de retomar contacto ou de voltar a viver com os seus filhos”, enfatiza Sónia Nobre.

Muitas (26) identificam-se como mães. Algumas (13) até têm filhos menores à guarda de familiares ou instituições. “Tinha havido uma separação por motivos que frequentemente envolveram a falta de recursos económicos, habitacionais, de apoio informal”, descreve. “Quando entram nos serviços, o seu estatuto de mães não é reconhecido e, por conseguinte, as suas necessidades relacionadas com a maternidade não são tidas em conta.”

Essa falta de reconhecimento de que são mães não acompanhadas prejudica a sua inclusão. “A resposta habitacional para quem tem crianças é mais rápida. Quem não tem crianças não tem prioridade. Isto é perverso”, ajuíza. “Estas mulheres muitas vezes separaram-se dos filhos por não terem condições para ficar com eles em contextos de violência doméstica. Depois não conseguem ser apoiadas para se reunir com eles.”

Mesmo sem filhos, algumas não abandonam o papel. Diz a investigadora que nisso as mais velhas se distinguem das mais novas. Tendem a permanecer nos abrigos por períodos mais longos pelo baixo rendimento, pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, pela protecção social insuficiente, pela falta de habitação acessível, mas também por serem mais propensas a desempenhar o papel de ajudantes ou cuidadoras das outras.

Recomendações

A investigadora conhece bem a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2017-2023. Em seu entender, não presta atenção às necessidades específicas das mulheres. Faz recomendações muito “focadas na prevenção da situação de sem-abrigo no feminino e em intervenções destinadas a responder às necessidades específicas das mulheres nesta situação”.

Na prevenção, receita “reduzir a pobreza e a desigualdade de género, reforçar os meios de protecção social, ter uma política habitacional favorável”. No plano da intervenção, reclama medidas concretas.

“É preciso mais informação sobre os serviços e os apoios disponíveis”, aponta Sónia Nobre. “É preciso considerar subgrupos nas políticas de intervenção, nomeadamente mulheres jovens e idosas. É preciso agir em pontos de maior vulnerabilidade, como despejo, violência doméstica, saída de estruturas de acolhimento para crianças e jovens e de estabelecimentos prisionais”, prossegue. “É preciso que os políticos se comprometam com a aplicação efectiva do que está preconizado na estratégia, incluindo soluções habitacionais estáveis e seguras.”

O estudo põe em evidência a diferença entre mulheres de idades distintas: “As necessidades e prioridades de uma jovem que aspira a formação, emprego e a reunir-se com seus filhos menores são diferentes das de uma mulher de meia-idade que tem uma história de consumo de drogas, está envolvida em sexo de sobrevivência, tem problemas de saúde, ou as de uma mulher idosa com incapacidade permanente que não tem recursos pessoais ou financeiros, excepto a prestação para a inclusão”, lê-se.

A tese demonstra que, apesar de separadas dos filhos, a maternidade integra a “identidade” destas mulheres, é “uma fonte de motivação e de propósito de vida”. Defende-se então que os serviços devem reconhecer a condição de mães dessas mulheres e apoiá-las nos seus esforços para fortalecer ou restaurar esse papel.

A investigação também enfatiza a relação entre violência doméstica e sem-abrigo. Tradicionalmente, os dois fenómenos têm sido tratados separadamente. Faz a defesa da importância de aumentar a conscientização de quem trabalha nesta área sobre esta relação para que estas mulheres não vão parar à rua e para que se possa “responder de forma mais adequada às necessidades das vítimas em termos de oferta de habitação segura e sustentável”.

Na tese, Sónia Nobre chama ainda a atenção para a relevância do acompanhamento. “Para algumas, o apoio personalizado e contínuo após a saída de um abrigo, combinado com soluções habitacionais diversas e sustentáveis ​​e uma fonte de rendimento adequada e confiável (por exemplo, por meio da integração no mercado de trabalho, embora nem todas as mulheres sejam empregáveis), pode garantir que continuam abrigadas e não embarcam num ciclo de retorno.”


14.9.21

Mulheres sem abrigo são mais do que parece. Algumas identificam-se como mães, embora desacompanhadas

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Primeira tese de doutoramento sobre mulheres em situação de sem abrigo traça caminho percorrido até aquele ponto e mostra importância que atribuem às relações, sobretudo as de maternidade.

As mulheres em situação de sem abrigo não são tão poucas como parece: mais depressa encontram alternativas à rua e quando não o fazem tendem a camuflar-se. Muitas continuam a identificar-se como mães, apesar de não estarem acompanhadas pelos filhos.

A primeira tese de doutoramento feita em Portugal sobre mulheres sem-abrigo tem natureza exploratória e está escrita em inglês: Wome’s Homelessness and Housing Exclusion in the Northern Lisbon Metropolitan Area: An In-depth Exploratory Study.

É uma médica especializada em Gastrenterologia a autora desta tese de doutoramento em Ecologia Humana, defendida em Junho deste ano na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Chama-se Sónia Nobre e conta 45 anos.

Em 2011, durante a crise da dívida, começou a fazer voluntariado numa organização não-governamental, a Médicos do Mundo, na Área Metropolitana de Lisboa. Nunca lidara com pessoas sem tecto. As rondas que fazia prestando cuidados de saúde primários levaram-na a questionar-se sobre tudo aquilo. “Até que ponto a intervenção é eficaz?”

A medicina não lhe dava todas as respostas. Percebendo a importância dos contextos, procurou-as nas ciências sociais e humanas. Em 2014, suspendeu a actividade médica para se dedicar ao doutoramento.

Chegar às mulheres era, por si só, um processo lento. Nessa busca, percorreu as ruas de Lisboa com “muita persistência”. Também pediu ajuda a várias instituições que trabalham no terreno.

Fixou-se em 34 mulheres dos 18 aos 68 anos. Algumas viviam na rua, outras em centros de alojamento temporário. Queria percebê-las, conhecer as suas rotinas, o seu quotidiano. “Ficava a conversar com elas de forma informal. Acompanhava-as ao café. Fazia-lhes companhia.”

O trabalho, feito entre 2015 e 2018, combina a etnografia com entrevistas biográficas aprofundadas. Traça caminhos percorridos até à situação de sem abrigo, estratégias usadas para lidar com a situação, as representações, o acesso à habitação, as percepções sobre o futuro.
Conceito mais abrangente

Sónia Nobre não quer que se pense que “as mulheres em situação de sem abrigo são poucas e estão na rua”. Isso é só um estereótipo.

O conceito adoptado por Portugal é restrito. Os últimos dados conhecidos, apurados em Dezembro de 2019, apontam para 4340 sem-abrigo, isto é, pessoas a viver em centros de alojamento temporário, alojamentos específicos para pessoas sem casa, quartos pagos pelos serviços sociais. E 2767 pessoas sem tecto, isto é, a viver no espaço público (ruas, jardins, viadutos, estações de transportes públicos), locais precários (carros abandonados, vãos de escada, casas abandonadas). Num caso e noutro, as mulheres representavam apenas 20%.

A investigadora adoptou a “Tipologia Europeia sobre Sem-Abrigo e Exclusão Habitacional”. O conceito abrange, por exemplo, os centros para mães solteiras e as casas abrigo para vítimas de violência doméstica. Para que se tenha uma noção da volta que isso dá aos números globais bastará saber que no segundo trimestre deste ano havia 718 mulheres e 16 homens nas estruturas da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

A investigadora refere outras situações de sem abrigo camufladas que mais depressa são protagonizadas por mulheres: passar uns tempos em casa de familiares ou amigos; aceitar trabalhar como empregada interna; precipitar a coabitação com um namorado só para ter onde morar. “São soluções em regra temporárias, precárias e eventualmente inseguras, mas é, muitas vezes, quando se esgotam estes recursos informais que as mulheres recorrem aos serviços de apoio”, diz. A situação pode ir de casas de familiares para quartos, centros de alojamento, rua.

Mesmo quando pernoitam no espaço público, as mulheres tendem a ser menos avistadas. Um número significativo (26 em 34) das que Sónia Nobre estudou esteve algum tempo sem tecto. Todas empregavam estratégias de invisibilidade. “Pernoitam em sítios escondidos, pelo mínimo tempo possível, habitualmente sozinhas.”

Nem só a segurança as levava a fazer um esforço de ocultação. Disfarçar é uma forma de conservar alguma dignidade. Sónia reparou como cuidar da aparência e da higiene pessoal é importante para elas. “Quem olhasse para a maioria delas não as reconheceria como sem-abrigo”, acredita. “Apresentam-se como qualquer pessoa, de modo convencional. Desafiam a imagem convencional da pessoa que está na rua, de aparência descuidada, suja, carregada de pertences. Ficam, por exemplo, no aeroporto, numa sala de espera de hospital, num carro.”
Culminar de longo percurso

A investigadora também quer desfazer a ideia feita de que “as mulheres em situação de sem abrigo são todas toxicodependentes, envolvidas em trabalho sexual, com doença mental”. “Quando nos aproximamos o suficiente para conhecer as suas histórias de vida percebemos o quanto essa imagem é redutora, o quanto a situação de sem abrigo é condicionada por factores estruturais, como a pobreza persistente ou o acesso à habitação.”

Procurando o que precipitou a situação, Sónia Nobre encontrou “dificuldades em casa, saída de lares de crianças e jovens em perigo, fim de relações amorosas, violência doméstica, despejo ou risco de despejo, uso de substâncias, saída da prisão”. Através das entrevistas biográficas, foi percebendo como aquilo era “o culminar de circunstâncias e eventos complexos e entrelaçados”.

Muitas das suas entrevistadas viveram episódios dramáticos logo no início das suas vidas que “minaram os seus percursos”. A morte de familiares, a negligência, a violência doméstica, o abandono escolar precoce. Que rede informal de apoio tem quem cresceu numa família desestruturada ou numa instituição? A que salário pode aspirar quem nem fez a escolaridade obrigatória?

A falta de conhecimento sobre os serviços disponíveis é uma barreira. Muitas pessoas nem sabem que, vendo-se na iminência de ficar na rua, podem ligar para a linha de emergência social (144).
Mães não acompanhadas

Não se identificam como sem-abrigo, as mulheres que participaram neste estudo. Admitem não ter habitação, mas não deixam que isso as defina. “Elas articularam uma infinidade de experiências e papéis através dos quais se foram definindo, incluindo ser mães, avós, filhas, esposas, amigas, trabalhadoras, ajudantes de outros, vítimas de violência doméstica, ex-reclusas, toxicodependentes e por aí fora.”

Nas conversas que iam tendo com a investigadora, falavam amiúde nas suas ligações. “As suas fontes de motivação e alegria passam amiúde pelas relações interpessoais, pelo anseio de retomar contacto ou de voltar a viver com os seus filhos”, enfatiza Sónia Nobre.

Muitas (26) identificam-se como mães. Algumas (13) até têm filhos menores à guarda de familiares ou instituições. “Tinha havido uma separação por motivos que frequentemente envolveram a falta de recursos económicos, habitacionais, de apoio informal”, descreve. “Quando entram nos serviços, o seu estatuto de mães não é reconhecido e, por conseguinte, as suas necessidades relacionadas com a maternidade não são tidas em conta.”

Essa falta de reconhecimento de que são mães não acompanhadas prejudica a sua inclusão. “A resposta habitacional para quem tem crianças é mais rápida. Quem não tem crianças não tem prioridade. Isto é perverso”, ajuíza. “Estas mulheres muitas vezes separaram-se dos filhos por não terem condições para ficar com eles em contextos de violência doméstica. Depois não conseguem ser apoiadas para se reunir com eles.”

Mesmo sem filhos, algumas não abandonam o papel. Diz a investigadora que nisso as mais velhas se distinguem das mais novas. Tendem a permanecer nos abrigos por períodos mais longos pelo baixo rendimento, pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, pela protecção social insuficiente, pela falta de habitação acessível, mas também por serem mais propensas a desempenhar o papel de ajudantes ou cuidadoras das outras.
Recomendações

A investigadora conhece bem a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2017-2023. Em seu entender, não presta atenção às necessidades específicas das mulheres. Faz recomendações muito “focadas na prevenção da situação de sem-abrigo no feminino e em intervenções destinadas a responder às necessidades específicas das mulheres nesta situação”.

Na prevenção, receita “reduzir a pobreza e a desigualdade de género, reforçar os meios de protecção social, ter uma política habitacional favorável”. No plano da intervenção, reclama medidas concretas.

“É preciso mais informação sobre os serviços e os apoios disponíveis”, aponta Sónia Nobre. “É preciso considerar subgrupos nas políticas de intervenção, nomeadamente mulheres jovens e idosas. É preciso agir em pontos de maior vulnerabilidade, como despejo, violência doméstica, saída de estruturas de acolhimento para crianças e jovens e de estabelecimentos prisionais”, prossegue. “É preciso que os políticos se comprometam com a aplicação efectiva do que está preconizado na estratégia, incluindo soluções habitacionais estáveis e seguras.”

O estudo põe em evidência a diferença entre mulheres de idades distintas: “As necessidades e prioridades de uma jovem que aspira a formação, emprego e a reunir-se com seus filhos menores são diferentes das de uma mulher de meia-idade que tem uma história de consumo de drogas, está envolvida em sexo de sobrevivência, tem problemas de saúde, ou as de uma mulher idosa com incapacidade permanente que não tem recursos pessoais ou financeiros, excepto a prestação para a inclusão”, lê-se.

A tese demonstra que, apesar de separadas dos filhos, a maternidade integra a “identidade” destas mulheres, é “uma fonte de motivação e de propósito de vida”. Defende-se então que os serviços devem reconhecer a condição de mães dessas mulheres e apoiá-las nos seus esforços para fortalecer ou restaurar esse papel.

A investigação também enfatiza a relação entre violência doméstica e sem-abrigo. Tradicionalmente, os dois fenómenos têm sido tratados separadamente. Faz a defesa da importância de aumentar a conscientização de quem trabalha nesta área sobre esta relação para que estas mulheres não vão parar à rua e para que se possa “responder de forma mais adequada às necessidades das vítimas em termos de oferta de habitação segura e sustentável”.

Na tese, Sónia Nobre chama ainda a atenção para a relevância do acompanhamento. “Para algumas, o apoio personalizado e contínuo após a saída de um abrigo, combinado com soluções habitacionais diversas e sustentáveis ​​e uma fonte de rendimento adequada e confiável (por exemplo, por meio da integração no mercado de trabalho, embora nem todas as mulheres sejam empregáveis), pode garantir que continuam abrigadas e não embarcam num ciclo de retorno.”

12.4.21

Movimento de Mulheres pelo Direito à Habitação pede à Câmara de Almada que retire queixas contra famílias que ocuparam casas

Cristina Faria Moreira, in Público on-line

Carta aberta pede ao município liderado por Inês de Medeiros que retire queixa-crime contra as famílias que ocuparam casas em 2018 e que, por isso, começarão a ser julgadas esta sexta-feira. Município admite retirar as queixas, se os ocupantes deixarem as casas.

O Movimento de Mulheres pelo Direito à Habitação (MuDHa) escreveu uma carta aberta à presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, em que apela ao município que retire a queixa-crime contra as 19 famílias que ocuparam ilegalmente casas municipais na freguesia do Laranjeiro.

Em 2018, várias famílias ocuparam casas que estavam fechadas e emparedadas em prédios municipais. Poucas semanas após a ocupação, os ocupantes foram identificados pela polícia e notificados para saírem das casas. Como argumento, além da ocupação ilegal, estariam as más condições das habitações, que justificavam também o facto de estarem entaipadas à espera de reparações. Os ocupantes não saíram, tendo o município avançando com uma queixa-crime por arrombamento e ocupação abusiva de habitações.

Na semana passada, o PÚBLICO contou as histórias de Emília, 52, Eulália, 72, e Vanessa, 30, que ocuparam casas por não terem alternativa habitacional. São três das 19 pessoas que começarão a ser julgadas esta sexta-feira no Tribunal de Monsanto. “São três gerações de mulheres, todas elas com histórias de vida de sofrimento, de falta de recursos económicos, mostrando que a pobreza tem rosto de mulher, qualquer que seja a sua idade”, refere a carta, apresentada pelo movimento na quarta-feira e que foi já subscrita por mais de 200 pessoas.


“Estas mulheres e suas famílias, por falta de opções, exerceram a função social da habitação do imóvel que ocuparam: vazio, devoluto e expectante. O artigo 4.º da Lei de Bases da Habitação explicita que é tarefa das entidades públicas garantir a função social da habitação, mobilizando o seu património. Isso não se faz com as casas vazias e fechadas da Câmara Municipal de Almada, em plena crise pandémica e crise na habitação. No momento em que vivemos, o despejo sem solução é um ataque à saúde e bem-estar destas pessoas”, admitem os signatários da carta, que é também subscrita por associações como a Associação de Estudantes da Escola Superior de Dança, a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP), Chão das Lutas, Coleção B Associação Cultural Habita – Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade, Por Todas Nós – Movimento Feminista e União de Mulheres Alternativa e Resposta​ (UMAR).

A acusação do Ministério Público é semelhante para todos os casos, embora haja agravantes para alguns que apresentam cadastro relativo a situações semelhantes. Os ocupantes incorrem no crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto no artigo 191.º do Código Penal, que refere que “quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou actividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.

Além deste crime, alguns arguidos incorrem também no crime de desobediência, previsto no artigo 345.º do Código Penal. Outros moradores que ali estão de forma ilegal incorrem também em crime de dano qualificado, que, de acordo com o artigo 213.º do Código Penal, pode ser punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.

A Câmara de Almada tem ainda em curso um pedido de indemnização cível no valor total de cerca de 41.750 euros, que inclui o montante das rendas condicionadas multiplicado por 13 meses e o valor de estragos causados. Para cada arguido, o valor está entre os 1500 e os 4000 euros.

Na missiva, associações a activistas apelam ainda a que a autarquia “encontre soluções habitacionais dignas para estas famílias e que adopte uma estratégia de real combate à pobreza e às desigualdades sociais”. “Despejar estas famílias, em tempo de pandemia, vai contra todas as recomendações internacionais e atenta contra a Lei de Bases da Habitação. É ainda prova suprema de grande desumanidade: em tempos excepcionais esperaríamos que o poder local, quem está mais perto das pessoas, fosse o garante da segurança de munícipes”, lê-se ainda.

O município assume retirar as queixas “na condição de estas pessoas desocuparem as habitações que abusivamente ocuparam”. Segundo a autarquia, as casas que foram abusivamente ocupadas “aguardavam por obras para posteriormente alojarem, condignamente, famílias às quais já tinham sido atribuídas, ou que se encontravam posicionadas para o efeito”, dizendo que “situações deste tipo lesam a atribuição de fogos às famílias que para esse efeito se encontram posicionadas no concurso de atribuição de habitação, desenvolvido nos termos da lei”.

29.3.21

Portugal continua a violar direito a habitação digna da comunidade cigana, avança Conselho da Europa

in o Observador

Conselho da Europa conclui que Portugal não tomou medidas suficientes para integrar os ciganos e que "persistem condições de habitação precárias para grande parte da comunidade" e segregação.

O Comité Europeu de Direitos Sociais do Conselho da Europa concluiu que Portugal continua a violar o direito a habitação digna da comunidade cigana residente no país, revela um relatório do organismo divulgado esta quarta-feira.

A decisão diz respeito a uma queixa apresentada em 2010 e a fundamentação refere que “persistem condições de habitação precárias para grande parte da comunidade cigana”, a que se junta “o facto de o Governo não ter demonstrado ter tomado medidas suficientes para garantir que a comunidade cigana vive em habitações que cumpram critérios mínimos”.

O comité defende ainda que os programas de realojamento dos municípios levaram muitas vezes a uma “segregação da comunidade cigana”, sendo por vezes “discriminatórios”. O organismo europeu regista ainda uma ausência de uma “abordagem coordenada e abrangente” em Portugal no que se refere a programas de realojamento.

Ainda que reconheça algumas medidas tomadas pelo país para melhorar as condições em que vive a comunidade cigana, nomeadamente através da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, e de programas de habitação como o 1.º Direito, invocadas por Portugal em resposta à queixa, o comité europeu defende que o problema persiste.

Muitas pessoas da comunidade cigana continuam a ser alvo de discriminação direta e indireta e continuam a viver à margem da sociedade, por vezes em condições de habitabilidade muito precárias, apresentando uma esperança média de vida mais baixa do que o resto da população, um menor nível de escolarização e sucesso escolar, sobretudo entre as raparigas, e níveis mais elevados de desemprego”, refere o documento do organismo europeu.

Salienta ainda que o número exato de pessoas de etnia cigana em Portugal é desconhecido e assenta em estimativas, que apontam para uma população entre as 24 mil e as 40 mil pessoas, mas que o comité europeu refuta, considerando que as estimativas entre as 45 mil a 50 mil pessoas são “mais realistas”, por incluírem os “invisíveis”, ou seja, as famílias que não estão referenciadas pelos organismos públicos e aqueles que não têm uma residência fixa.

“O número de ciganos estrangeiros em Portugal é desconhecido, uma vez que não é recolhida qualquer informação oficial a respeito”, refere ainda o organismo do Conselho da Europa.

Sobre as condições de habitabilidade entre a comunidade cigana, o relatório aponta ainda os cerca de 37% de ciganos portugueses a viver em bairros de lata ou acampamentos, que podem ser encontrados em 70 municípios.

Ainda que tenham existido realojamentos ao abrigo da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, há ainda um “número significativo” de famílias ciganas que não beneficiaram destes programas de realojamento, cerca de 20%, aponta o documento, continuando a viver em condições precárias e sujeitas a despejos forçados.

São ainda referidas as preocupações levantadas com a recolocação de famílias em habitação social na sua quase totalidade, “deixando de parte outras alternativas”, tendo a opção por habitações muitas vezes localizadas nas periferias resultado numa “segregação espacial” destas comunidades, “reforçando o estigma” em relação aos ciganos entre as comunidades locais e, “até certo ponto, criando outros problemas sociais”.

As crianças costumam estar todas matriculadas na mesma escola, o que cria uma situação de “escolas ciganas, ‘de facto'” e as habitações costumam estar sobrelotadas, uma vez que as políticas de realojamento não têm em conta a expansão familiar.

Perante isto, o comité europeu, reconhecendo os esforços feitos pelas autoridades portuguesas, defende que Portugal se encontra em situação de não-conformidade, que são necessárias melhorias e que “ainda existem obstáculos” relacionados com a falta de dados quantitativos e qualitativos fiáveis.

De forma genérica, o relatório de conclusões de 2020 do Comité Europeu de Direitos Sociais revela que o organismo adotou 349 conclusões relativamente a 33 Estados europeus, incluindo 152 de não-conformidade, 97 de conformidade e 100 em que não foi tomada qualquer decisão por falta de informação disponível.

O comité destaca a prevalência de situações de pobreza entre pessoas com deficiência, considerando-a “um importante indicador do sucesso ou fracasso” dos esforços dos Estados para as integrar.

Identificou ainda “falhas recorrentes” dos Estados em garantir o acesso a direitos laborais em condições de igualdade, apontando problemas de discriminação no acesso ao emprego, desigualdades de género nos salários e o fracasso em prevenir situações de trabalho forçado ou exploração laboral.

Sobre o contexto atual de pandemia, o comité considera “particularmente relevante” as falhas detetadas na formação e reintegração de desempregados de longa duração.

24.2.20

Demolição de quinta clandestina deixa dezenas de famílias sem casa

Francisco Alves Rito, in Público on-line

Instituto da Habitação invoca condições de salubridade e segurança para intervenção com “carácter urgente” na Quinta da Parvoíce, em Setúbal. Bispo e padre vão estar hoje ao lado dos moradores.

A informação consta de editais afixados nas casas visadas pelo instituto público e que o PÚBLICO leu no local, na tarde deste sábado. Intitulado “demolição e limpeza de terreno”, um dos editais informa os moradores que devem desocupar o espaço. “Este terreno, propriedade do IHRU, por questões de salubridade e saúde pública, irá ser alvo de um procedimento de limpeza/demolição e de instalação de meios de restrição de acesso ao terreno, a partir de dia 24 de Fevereiro”, lê-se no edital afixado na semana passada.

O outro documento, semelhante, que foi afixado há quase 15 dias, informava que o IHRU “detectou a existência de material combustível e de situações de ocupação e ou de utilização não autorizada de uma área do referido terreno, pelo que irá limpá-lo e proceder à instalação de meios de restrição de acesso ao mesmo no dia 24 de Fevereiro e remover quaisquer bens, produtos ou resíduos nele existentes”.
Este edital dá prazo, até esse mesmo dia, para que os “eventuais interessados” retirem os bens, ou, caso contrário, a manutenção dos bens no terreno será “entendida como uma declaração inequívoca de que aqueles não têm dono ou estão abandonados, tendo o IHRU o direito de lhes dar o destino mais apropriado”.

A parte do terreno objecto desta acção do IHRU é a mais distante da estrada, onde a construção de novas casas é visível, com muitas ainda em tijolo. Mas os moradores garantem que todas estão habitadas e justificam a construção de novas habitações com a falta de alternativas. Na parte mais antiga da Quinta da Parvoíce, junto à entrada principal, não haverá intervenção do IHRU por tratar-se de uma área que está sob tutela da Câmara Municipal de Setúbal.

Bispo de Setúbal ao lado dos moradores
O bispo de Setúbal, D. José Ornelas, vai estar junto aos moradores, esta segunda-feira de manhã, à espera do início da intervenção do IHRU, disse ao PÚBLICO o padre Constantino Alves, que há muitos anos acompanha as famílias residentes neste local. “O senhor bispo estará presente por volta das 9 horas da manhã e eu estarei mais cedo”, assegurou o pároco. Os responsáveis da Igreja em Setúbal pedem uma reunião urgente entre instituto, Segurança Social e autarquias para resolver o problema sem desalojar as pessoas.


Este sábado, o bispo e o padre estiveram no local e prometeram apoiar os moradores, não apenas com a sua presença na segunda-feira, mas também com a análise jurídica de um advogado que irá, com os residentes, tentar encontrar forma de travar as demolições. “Fazer uma coisa destas é desumano. As entidades têm de arranjar soluções, respostas sociais e com tempo”, disse o padre Constantino Alves. O pároco apela às entidades envolvidas para uma reunião “urgente” que permita resolver o problema.

Constantino Alves dá o exemplo da antiga Mecânica Setubalense, em que a actuação concertada permitiu alojar “todos os moradores” noutros bairros da cidade. “Parem e vamos dialogar”, pede o pároco.

Famílias com crianças, doentes e idosos dizem não ter para onde ir
A família Bandeira, que inclui três filhos menores, é uma das que vivem nas casas indicadas para demolição. O pai, João Bandeira, conta que é pedreiro e que já foi motorista de camiões. A mãe trabalha actualmente como cozinheira. “Sou polivalente, já trabalhei na hotelaria e na limpeza”, diz. Segundo o casal, a filha mais velha tem um problema de saúde.
Na parte nova da Quinta da Parvoíce, que o IHRU pretende demolir, vivem, segundo os moradores, 40 pessoas, em 14 casas. São famílias com crianças, um jovem com deficiência, e duas mulheres com doenças oncológicas, uma das quais já com idade avançada.

O grupo que integra a comissão de moradores – Jorge Pimenta, Manuel Caiuca, Kisiso Gabriel Paulo e João Bandeira – reconhece que a construção clandestina tem crescido na quinta, mas diz não haver alternativas. “Há mais casas porque é a carência. Não temos para onde ir e dormir na rua é arriscado”, diz Gabriel Paulo. Outro membro recorda que “também ninguém veio proibir a construção até hoje”. Jorge Pimenta, representante dos moradores, depois da afixação dos editais, foi a Lisboa, à sede do IHRU, mas “ninguém soube dar resposta”.

O padre Constantino diz que, pelo facto de as casas serem clandestinas, não podem ter ligação de electricidade, água e saneamento, pelo que são feitas “puxadas”, para contar que há seis meses a Águas do Sado cortou o abastecimento. Entretanto, após intervenção da paróquia e da Cáritas Diocesana, atendendo à dignidade humana, a ligação da água foi restabelecida pela empresa. “Sem água como é que as crianças tomam banho para irem à escola?”, pergunta Gabriel Paulo.


15.11.18

Na habitação social não tem de haver casas de segunda

Sebastião Almeida, in Público on-line

Obras no Bairro Padre Cruz, em Lisboa, prevêem a construção de 500 habitações para os moradores do maior bairro social da Península Ibérica. Dotar o bairro de habitação digna e "com os mais altos padrões de sustentabilidade" é uma das prioridades de Fernando Medina.

Joaquim Barata, de 79 anos, há muito que esperava uma casa digna de o abrigar. Não fosse um amigo acolhê-lo aquando de um acidente que lhe deixou marcas numa perna, teria continuado a viver numa casa devoluta com o telhado em risco de desabar, no Bairro Padre Cruz, em Lisboa. A partir de quinta-feira, numa das ruas do bairro, Joaquim tem um rés-do-chão reabilitado à sua espera, fruto do programa de investimento habitacional nos bairros sociais da câmara de Lisboa.

Fernando Medina fez questão de estar presente para entregar a chave ao novo morador da casa na Rua Professor Almeida Lima. “Espero durar mais uns anos para poder gozar o que me estão a oferecer”, goza Joaquim, sem esconder a emoção que o invade. O programa do município, no bairro junto a Carnide, construiu, numa primeira fase, 36 moradias, que são já habitadas por famílias. São casas térreas, dotadas de hortas e pensadas para reaproveitar ao máximo os recursos, sem descurar a versatilidade de transformação do interior.
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A próxima fase da intervenção passa pela construção de um quarteirão-piloto que permitirá realojar 200 pessoas, repartidas por 20 fogos. A obra, de acordo com o presidente da câmara, deverá estar concluída em Fevereiro de 2019 e pretende dotar o bairro de habitação condigna para os seus moradores. A preocupação foi construir novas habitações “com os mais altos padrões de sustentabilidade”. Como sublinha Medina, a “habitação social não tem de ser habitação de segunda”.

O projecto de construção foi delineado para aproveitar ao máximo os recursos energéticos e reduzir os custos dos agregados familiares. O prédio funcionará através de energia solar, proveniente dos painéis instalados no cimo do edifício, o que permitirá recorrer a energia eléctrica apenas quando a exposição solar for insuficiente. O isolamento térmico também foi uma preocupação, bem como a versatilidade da orientação das habitações propriamente ditas.

Em conversa com os jornalistas, o presidente reiterou a importância de os apartamentos, que vão desde T0 a T4, serem facilmente transformáveis e adaptáveis às necessidades de cada família. “São situações inteligentes que estamos a aplicar na habitação social”, frisou.

No Bairro Padre Cruz começou uma obra que "é um sonho" para os moradores
Se for necessário erguer uma parede para transformar determinada parte da casa num quarto, é possível. Há janelas e ligações eléctricas em todas as faces das casas, permitindo, assim, essa facilidade.
No Bairro da Boavista, estão já a ser construídas cerca de 138 casas, e, no Bairro da Cruz Vermelha, o processo também já está em marcha. Com estas medidas, o executivo de Fernando Medina mostra serviço, numa altura em que a situação da habitação na cidade atravessa um momento conturbado. Os preços altamente inflacionados e a pouca oferta de imóveis fazem do acesso à habitação um direito nem sempre assegurado.PUB

Elisete Andrade, 72 anos, é presidente da associação de moradores do bairro, e teve um papel preponderante na evolução de todo o processo. É que para realojar, é preciso colocar as pessoas em habitações de acolhimento temporário, e esse processo, por vezes, pode ser difícil. “Quando saem da zona de conforto, as pessoas retraem-se sempre”, afirma.
Joaquim foi um dos moradores realojado numa casa temporária. Mas, agora que encontrou um lar, não quer esperar pelo fim das obras do prédio a ser erguido, e não faz mal. É dada aos moradores a liberdade de decidirem ficar nas casas de alojamento intermediário ou de se mudarem para os novos apartamentos quando estiverem concluídos. A vaga, nesses casos, é transferida para outras pessoas das futuras fases de realojamento que ainda terão lugar.

Dentro de um ano, 50 famílias do Bairro da Boavista vão ter um novo tecto
Elisete saudou a câmara e todas as partes envolvidas. As decisões foram tomadas com base nas preocupações e desejos dos moradores, e por isso, justifica Medina, o processo de construção foi mais lento, mas privilegiou os interesses dos habitantes. “Está tudo feito de acordo com os moradores”.

Na terceira fase do projecto estabelecido para o bairro situado no extremo norte da cidade, está prevista a construção de habitação de tipologia baixa. Ao invés dos anteriores critérios de construção de habitação social praticados pela câmara, o executivo percebeu que esse modelo não trazia nada de bom.

Construir casas térreas aproxima os moradores e reduz custos de manutenção das estruturas. Os valores de construir em altura já não trazem nada de positivo. Quando as novas casas forem construídas, albergarão 46 famílias, que antes serão transferidas para habitação reabilitada e temporária.

Medina mostra as casas que já fez para os pobres e promete-as à classe média
Para o bairro, o investimento de construção de novos pólos habitacionais rondará os 40 milhões de euros. 2,5 milhões estão alocados à construção do quarteirão-piloto, que em breve receberá os novos moradores. Finalizado o processo, terão sido construídas cerca de 500 habitações num dos maiores bairros sociais da Península Ibérica.
Elisete aponta: “Ainda hoje foram aqui demolidas casas de uma vida. Vi pessoas a passarem pelos escombros com lágrimas nos olhos. Mas agora sabem que terão uma casa digna”.

5.11.18

Antónia tem 86 anos mas, apesar da lei, querem que saia de sua casa

Cristiana Faria Moreira, in Público on-line

Antónia tem 86 anos mas, apesar da lei, querem que saia de sua casa
Ex-inquilina da Fidelidade recebeu uma carta a dar conta da não renovação do contrato de arrendamento da casa onde mora há 56 anos. Helena Roseta diz que o novo proprietário não pode pôr fim ao contrato porque a lei não o permite.

Antónia Albuquerque faz 86 anos esta sexta-feira, no “dia dos mortos”, como diz, e não entende como, ao fim de mais de 50 anos a morar numa casa pode ser posta fora dali. Uma carta, datada de 18 de Outubro, chegou-lhe pelo correio, com aviso de recepção, informando-a que o seu contrato de arrendamento não será renovado e que a 30 de Junho de 2019 tem de entregar as chaves e o apartamento vazio ao senhorio.
Antónia foi morar para a Rua Ivens, no Dafundo, concelho de Oeiras, em 1962, num prédio que, anos mais tarde, se tornou propriedade da Fidelidade – Companhia de Seguros, que acabou por vender este e mais três edifícios ali próximos no final de Agosto. A nova proprietária, Meritpanorama, Unipessoal Lda, enviou aos moradores destes prédios, já no início de Setembro, uma carta a informar da venda com todos os detalhes para o pagamento das "rendas mensais e todas as despesas ou montantes devidos pelo arrendatário".

Helena Almeida e Amadeo de Souza-Cardoso em livros ilustrados para todos
Pouco depois, começaram a chegar as primeiras cartas aos inquilinos, dando-lhes conta de que a empresa se opunha à renovação automática dos contratos. No entanto, algumas das pessoas que estão a ser contactadas, como Antónia Albuquerque, enquadram-se numa moratória, aprovada em Maio e em vigor desde 17 de Julho, que protege arrendatários idosos ou com deficiência que habitem nas casas há mais de 15 anos.

Para Helena Roseta, deputada independente do PS, e que coordenou até à semana passada o grupo de trabalho parlamentar sobre habitação, à luz desta moratória, os senhorios não podem opor-se à renovação dos contratos. “[Para] aqueles que tem mais de 65 anos e que moram há mais de 15 anos nessa casa, independentemente do contrato que tenham, não pode haver oposição à renovação nesta fase. Os prazos suspendem”, explicou.

Quero morar aqui
De acordo com o diploma publicado em Diário da República, este regime "aplica-se aos contratos de arrendamento para habitação cujo arrendatário, à data da entrada em vigor da mesma, resida há mais de 15 anos no locado e tenha ou idade igual ou superior a 65 anos ou grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %". Os inquilinos abrangidos por esta lei podem, assim, beneficiar da "suspensão temporária dos prazos de oposição à renovação e de denúncia pelos senhorios de contratos de arrendamento".

"A lei tem de se tornar definitiva"
Antónia bem sabe que a casa não é sua, mas nunca pensou estar assim, a ser “enxotada” da casa que foi fazendo sua ao longo da vida. Na sala repleta de fotografias senta-se numa cadeira, enrolada no robe cor-de-rosa, e lamenta-se: “Sem mais nem para quê tenho de deixar a minha casa. Põem-me na rua sem mais nem para quê. Queria morrer aqui”.

Era “uma menina”, quando para ali foi viver com o marido. Nasceu no Alentejo, numa terra perto de Estremoz, mas acabou por vir, “novinha”, morar para casa de uma tia, na capital, e trabalhar numa gráfica. Foi lá que conheceu o marido, com quem foi casada mais de 40 anos e que lhe morreu há 18. Hoje, vive naquela casa sozinha. Os olhos e os ouvidos já lhe falham mas, perto dos 86 anos, mantém a sua autonomia.

Em 2014, a Fidelidade enviou-lhe um novo contrato, com um prazo de cinco anos, já enquadrado no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que termina a 30 de Junho de 2019. A renda foi actualizada, passando dos 70 euros para os 110.

Antónia diz que, por desconhecimento, não se opôs ao mesmo. O que aconteceu foi que, ao abrigo do NRAU, quem passou a ter contrato a prazo tinha um determinado prazo para contestar. Quem não respondesse à missiva, estaria de acordo com as novas condições. “Eles [os moradores] foram passados para uma situação contratual sem terem dado consentimento. A lei foi mal feita. As pessoas ficaram sujeitas a condições contratuais e não perceberam as consequências. Tudo isto é uma coisa que não está certa. E é o que nós agora queremos reverter”, aponta Helena Roseta.

Esta moratória não é mais do que um regime "extraordinário e transitório" que está em vigor até 31 de Março. O que é prioritário para Helena Roseta é que se proceda à revisão do regime do arrendamento urbano para se criar um quadro definitivo de protecção dos inquilinos em função da idade e deficiência. A legislação estava já em discussão, mas a votação acabou por ser adiada pelo PS e empurrada para depois da discussão e aprovação da proposta de Orçamento do Estado para 2019, cujos trabalhos deverão estar concluídos nos primeiros dias de Dezembro.
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“Há um compromisso do primeiro-ministro para voltar ao tema no dia 4 de Dezembro. Assim espero”, disse Roseta, que é também presidente da Assembleia Municipal de Lisboa. “É preciso que saia a lei definitiva para que não chegue o 31 de Março e acabe a moratória. A suspensão era apenas ganhar tempo enquanto íamos mudar a lei, mas a lei tem de se tornar definitiva”, reforçou.
“Estar assim a ser enxotada, revolta-me”, lamenta, emocionada, Antónia. Com o filho Luís, vai agora procurar apoio jurídico para tentar travar a decisão do proprietário. Os poucos vizinhos com quem fala ainda não receberam a carta, mas acreditam que isso acontecerá com o aproximar do término dos contratos.