6.1.22

Estratégia de combate à pobreza foi publicada. Haja “vontade política” para a levar ao terreno

Natália Faria, in Público on-line

Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, publicada esta quarta-feira em Diário da República, propõe-se retirar 660 mil portugueses da pobreza até 2030.

As metas já eram conhecidas: retirar 660 mil pessoas da pobreza até 2030, das quais 170 mil crianças e 230 mil trabalhadores. Falta agora, segundo o especialista em desigualdades Farinha Rodrigues, “garantir que haverá vontade política para levar à prática” a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 (ENCP), publicada esta quarta-feira em Diário da República.

Numa altura em que o primeiro ano da pandemia criou 228 mil novos pobres, segundo o mais recente inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE) — que fixa agora em 1,9 milhões os portugueses em situação de pobreza, isto é, obrigados a viver com menos de 554 euros por mês —, a ENCP propõe-se reduzir a taxa de pobreza monetária para o conjunto da população para 10%, o que representa uma redução de 660 mil pessoas. Quanto aos trabalhadores pobres, que segundo o INE subiram de 9,6% para 11,2%, o objectivo é reduzir para metade a taxa de pobreza neste grupo.

Mas a ENCP foca-se prioritariamente nos mais novos, de maneira a “quebrar a reprodução dos ciclos de pobreza, não apenas retirando as crianças da situação de pobreza”, mas garantindo que “a condição socioeconómica dos agregados deixe de ser um preditor tão preponderante de sucesso escolar e de percursos profissionais”.

Além de reforçar os apoios à frequência de creches instituindo a sua progressiva gratuitidade, a ENCP propõe-se ainda tornar o pré-escolar “tendencialmente gratuito”, criando assim as condições para tornar a sua frequência obrigatória a partir dos três anos de idade “no médio prazo”.

Portugal não estará sozinho neste propósito, tal como o PÚBLICO noticiou. Apesar de na maioria dos sistemas educativos europeus a escolaridade obrigatória se iniciar aos seis anos, a França, por exemplo, decidiu, em Setembro de 2019, baixar para os três anos a idade de início da escolaridade obrigatória. Já era assim na Hungria. E na Bélgica a idade de início da escolaridade obrigatória baixou, também em 2019, para os cinco anos. Na Grécia, inicia-se aos quatro anos, segundo o último relatório da rede Eurydice sobre o ensino obrigatório na Europa.

Como a escola continua a ser, apesar de todas as suas debilidades, o principal elevador social, a ENCP propõe-se ainda reforçar as medidas de apoio ao acompanhamento dos alunos no contexto pós-pandémico e desenvolver mecanismos de apoio ao estudo para crianças de agregados familiares pobres através da criação de “espaços de estudo acompanhado”.

A detecção precoce de problemas de saúde mental deverá igualmente ficar assegurada por via do anunciado aumento da rede de psicólogos escolares, sendo que o documento prevê ainda, entre uma miríade de outras medidas, a criação de mecanismos de acesso gratuito para crianças inseridas em famílias desfavorecidas a consultas de rotina na área da saúde oral, mental e a rastreios visuais e auditivos.

A ENCP vai, porém, mais longe, propondo medidas concretas nas áreas do emprego, da formação e da habitação. A existência de crianças no agregado familiar deverá ser uma condição prioritária de acesso à habitação. E, a pensar nas dificuldades dos jovens, particularmente dos de menores rendimentos, no acesso à habitação, prevê-se o reforço da habitação com renda acessível, através da criação de um “parque habitacional público a preços acessíveis”, a construir através da reabilitação do património imobiliário do Estado com aptidão para uso habitacional.

É um bom ponto de partida”, reage ainda Farinha Rodrigues, professor no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa, e investigador nas áreas da desigualdade e pobreza, enfatizando o facto de, pela primeira vez, ficar “reconhecido que o problema do combate à pobreza não é exclusivo do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, mas transversal aos vários ministérios”.

660.000 As pessoas que serão retiradas da pobreza até 2030, das quais 170 mil crianças e 230 mil trabalhadores

Para o também membro da comissão de coordenação responsável pela proposta de ENCP falta, contudo, garantir que haverá vontade política para levar a estratégia ao terreno. “É uma questão de vontade política, sendo que estamos num contexto de alguma incerteza”, alerta, dizendo-se satisfeito pelo facto de a estratégia aprovada pelo Governo prever a criação de uma comissão interministerial de acompanhamento e avaliação da execução da ENCP, a qual ficará ainda incumbida de nomear um coordenador nacional da estratégia.

O texto da ENCP é, no entanto, omisso, quanto às esperadas alterações no Rendimento Social de Inserção (RSI), proposto pelos especialistas, que gostariam de ver esta prestação não contributiva alargada a mais beneficiários e não, como até agora, restringida aos mais pobres de entre os pobres.

No último inquérito às condições de vida, feito com base nos rendimentos de 2020, isto é, do primeiro ano da pandemia, o INE fixava em 18,4% os portugueses que estavam abaixo da linha de pobreza, num agravamento de 2,2 pontos percentuais relativamente a 2019. Foi o maior aumento da pobreza desde 2003, segundo os especialistas, que admitiam, porém, poder tratar-se de um efeito transitório da pandemia e não de uma inversão da tendência que, desde a crise iniciada em 2008, vem apontando baixas consecutivas no número de portugueses em situação de pobreza.