Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Projecto-piloto vai durar um ano. Portaria que altera regulamento do programa de apoio a famílias carenciadas foi ontem publicada e dentro de dias deverá sair a que “irá criar e regular o Programa dos Cartões Sociais”.
O paradigma do apoio às pessoas mais carenciadas vai mesmo mudar. O uso de vales ou cartões em formato electrónico ou outro deverá arrancar no último trimestre deste ano, através de um projecto-piloto de um ano que deverá abranger cerca de 30 mil pessoas.
O primeiro passo está dado. Esta quarta-feira, foi publicada no Diário da República a portaria que altera o regulamento do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas em Portugal (POAPMC) e o Fundo de Auxílio Europeu às Pessoas Mais Carenciadas (FEAC), que o co-financia em 85%.
É a transposição para o ordenamento jurídico português do novo regulamento europeu. No meio das perturbações provocadas pela covid-19, em Abril de 2020, a Comissão Europeia admitiu a hipótese de se atribuir os apoios através de vouchers/cartões electrónicos. Portugal manifestou logo o seu interesse, tal como a Roménia e a França (apenas para a região de Mayotte).
Esse processo arrastou-se. Só no início de 2021, a Comissão Europeia adoptou o acto delegado (com indicadores, requisitos técnicos, rastreabilidade, pistas de auditoria e controlo) e ainda tardou a publicá-lo.
Estes cartões serão carregados uma vez por mês num valor que ainda está por revelar. E as pessoas poderão utilizá-los em qualquer comércio a retalho que venha a aderir ao projecto
Já em Agosto de 2021, o Instituto da Segurança Social lançou uma consulta preliminar pública tendo no horizonte a contratação de serviços de emissão, gestão, carregamento e reporte financeiro dos cartões electrónicos. Agora, as peças juntam-se.
Questionado pelo PÚBLICO sobre prazos previstos, o gabinete da ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, disse que ainda esta semana deverá ser publicada outra portaria. E essa, sim, “irá criar e regular o Programa dos Cartões Sociais em Portugal Continental”.
Havendo programa, o Instituto da Segurança Social poderá dar o passo seguinte. Quer isto dizer que deverá lançar, “dentro de dias, o procedimento para a Aquisição de Serviços de Emissão, Gestão, Carregamento e Reporte Financeiro dos Cartões Electrónicos Sociais, que contempla a criação do sistema de informação de suporte”.
Programa abrange 120 mil
Neste momento, o programa abrange cerca de 120 mil pessoas, que recebem uma cesta básica composta por carne, peixe e legumes congelados, cobrindo 50% das suas necessidades nutricionais diárias. No futuro, essa modalidade tradicional coexistirá com a nova. As pessoas mais carenciadas receberão géneros alimentares ou um valor em cartão, conforme as suas características.
Estes cartões serão carregados uma vez por mês num valor que ainda está por revelar. E as pessoas poderão utilizá-los em qualquer comércio a retalho que venha a aderir ao projecto. Serão distribuídos directamente pela Segurança Social ou recorrendo a organizações parceiras, como já acontece com os cabazes alimentares. Não poderão ser usados para comprar qualquer coisa. As entidades responsáveis é que vão definir hipóteses, de acordo com o que está previsto no FEAC. Não tem de ser só comida. Podem constar outros produtos de primeira necessidade, como vestuário, calçado, artigos de higiene, material escolar.
Como no modelo em vigor, este apoio acarreta acompanhamento técnico. Ao que se pode ler na portaria, a entrega do cartão pressupõe, no mínimo, duas acções de acompanhamento, que podem ser assumidas por organizações parceiras: uma incide no uso do cartão e a outra em orientação sobre o princípio da dieta equilibrada.
As pessoas carenciadas têm perfis diversos. Conforme a necessidade que venha a ser detectada, os destinatários poderão ter de assistir a sessões de esclarecimento destinadas ao “reforço da autonomia e capacidade de livre escolha, por forma a capacitá-los na optimização da gestão do orçamento familiar, na selecção dos géneros alimentares e na prevenção do desperdício”.
Para que tudo funcione, a começar pelo projecto-piloto, será preciso determinar quem actuará no terreno como entidade coordenadora (incumbida da gestão dos destinatários) ou mediadora (a quem cabe receber os cartões e proceder à sua entrega e acompanhar quem os usa). De acordo com o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, que com o do Planeamento executa o POAPMC, será lançado outro procedimento para isso.
As entidades coordenadoras terão de alcançar o número de destinatários previsto no território em causa. E as moderadoras terão de ter actividade regular, desenvolvendo “acções de atendimento e acompanhamento social às pessoas mais carenciadas”. Dar-se-á preferência às que já integrarem a distribuição de géneros alimentares e ou bens de primeira necessidade no âmbito do POAPMC.
A legislação europeia, agora transposta, prevê que tal possa acontecer por concurso ou convite – sempre que se entender que há uma “mais-valia para a execução do programa junto dos destinatários finais, designadamente no que respeita à minimização das interrupções nos processos de distribuição de produtos alimentares”; e uma “garantia de rentabilização de investimentos materiais e imateriais anteriormente realizados pelo POAPMC”.
Várias entidades do sector social têm defendido esta mudança de paradigma. O Tribunal de Contas também já o fez, alegando que “a sua implementação permitirá poupar custos e recursos, favorecer a autonomia, reforçar a economia local, obviar aos constrangimentos derivados dos procedimentos de aquisição dos bens e das dificuldades de armazenamento e garantir maior segurança no período da pandemia”. Se tudo correr como previsto, Portugal será um dos primeiros Estados-membros a avançar.