25.1.22

“A prisão deveria ser evitada. Temos de pensar em alternativas mais humanas”

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Sílvia Gomes, professora de Criminologia na Nottingham Trent University, no Reino Unido, considera que devem ser esgotadas alternativas à prisão e sugere que se criem mais opções, por exemplo, para toxicodependentes. Sétimo capítulo da série sobre mudança entre grades.

Doutorada em Sociologia pela Universidade do Minho, com uma tese sobre criminalidade, etnicidades e desigualdades, Sílvia Gomes não se cansa de explorar o universo prisional. No pós-doutoramento, que desenvolveu no CICS.NOVA Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (pólo da Universidade do Minho), em cooperação com a Florida State University e a University of Amsterdam, procurou compreender a reinserção, a reincidência e a desistência criminal. E é nesse estudo longitudinal da realidade portuguesa que continua a trabalhar. Acaba de co-coordenar um livro em dois volumes, Incarceration and generation (Palgrave), que inclui um capítulo com dados da primeira fase, assentes em entrevistas semiestruturadas a 50 homens e a 28 mulheres a cumprir pena em três prisões.

Comecemos por aqui: 11 milhões de pessoas encarceradas no mundo, mais do que a população residente em Portugal.
É um facto que nos deveria deixar preocupados. É o número mais alto que alguma vez tivemos. Inclui mulheres e homens adultos, mas também crianças. O último relatório das Nações Unidas fala em quase 1,5 milhões de crianças encarceradas. Segundo o relatório do Global Prison Trends 2020, a taxa de encarceramento é hoje 20% superior ao que era há 20 anos. Se considerarmos que temos hoje novas formas de reclusão, como são os centros de detenção para pessoas migrantes, o número cresce ainda mais.

Que apreciação faz de Portugal?
O sistema prisional português teve um aumento consistente da taxa de encarceramento desde a década de 1980 até 2017. Em 2015, Portugal tinha uma das taxas mais elevadas da UE. A taxa de entrada é relativamente baixa, mas a de libertação é igualmente baixa. Por outras palavras, entram menos pessoas nas prisões, mas ficam por períodos mais longos. O tempo médio de prisão em Portugal tende a ser três vezes superior à média da UE. Isto faz com que acumulemos pessoas nas prisões.

Apesar da baixa taxa de criminalidade…
Isso é uma falácia. Embora em teoria a prisão seja usada como forma de controlar o crime, na prática estes dois elementos não estão directamente relacionados. O recurso à pena de prisão é uma decisão judicial e política, não é apenas uma resposta ao crime existente.

Desde 2018, a população prisional está em queda. O Governo facilitou o recurso às medidas alternativas à prisão. Depois veio a pandemia e houve medidas excepcionais que provocaram uma descida acentuada.
Lá está, uma decisão política. Devemos ser prudentes e esperar mais um pouco para perceber o que está a acontecer. Acho que estamos perante uma flutuação circunstancial, mas temos de aguardar para compreender que impactos isso realmente teve e se a tendência será para recorrer menos à reclusão como resposta judicial e política.

Os reclusos entre os 16 e os 21 anos já antes estavam a diminuir…
Com base num trabalho conjunto sobre as tendências entre 2000 e 2017, o que posso dizer é que esse grupo tem tido uma diminuição muito considerável. Temos uma população mais envelhecida, mas isto também é um reflexo do recurso a outras penas e a medidas alternativas à prisão nos processos que envolvem este grupo em particular. É um sinal positivo. Contudo, a legislação nacional prevê tratamento diferenciado para menores de 18 anos e há jovens de 16 e 17 a cumprir pena em prisões de adultos. Isto é uma violação grave das normas internacionais. Como apenas o EP de Leiria está reservado aos mais jovens, exigir-se-ia, no mínimo, que fossem alojados separadamente dentro das prisões e integrados em programas adequados à idade.

Qual é a taxa de reincidência? Alguém sabe?
Ninguém sabe. Podemos especular e até estimar, com base naquilo que vamos observando nas diversas investigações feitas em contexto prisional, mas não temos dados oficiais públicos sobre reincidência. Eventualmente esses dados existem, mas não são divulgados.

É um assunto que se discute demasiado pouco em Portugal?
Diria que sim. Como podemos fundamentar as nossas políticas públicas e a nossa legislação se não sabemos, por exemplo, se o número de anos que as pessoas passam na prisão afecta a sua reinserção social? Como podemos avaliar os programas de reabilitação e de reinserção social que vão existindo, ainda que com muitas limitações e desafios? É trabalhar completamente às cegas. Vão existindo estudos sobre reincidência, mas não cobrem o território nacional.

O tempo médio de prisão em Portugal tende a ser três vezes superior à média da UE. Isto faz com que acumulemos pessoas nas prisões Sílvia Gomes

Costuma ler os comentários nos jornais ou nas redes sociais às notícias sobre pessoas que cometem crimes?
Tenho evitado fazê-lo. São uma janela para aquilo que a sociedade em geral entende sobre o crime, as pessoas que cometem crimes e as prisões. Por regra, o que vemos é um discurso eivado de preconceitos e discriminatório. No limite, entende-se que estas pessoas devem ser fechadas e que a chave deve ser esquecida (no melhor dos cenários, porque também há quem defenda a pena de morte).

O castigo é muito central na cultura católica portuguesa. Se uma pessoa faz algo de errado, tem de ser castigada para aprender. Mas depois não interessa nada se aprende ou não, porque há esta crença de que os criminosos não mudam e que as prisões são como hotéis.

Há que ter em conta que as prisões foram construídas como uma resposta humana ao crime. Não obstante termos mudado muito enquanto civilização e termos encontrado novas formas de punição, parece que não conseguimos dar o passo seguinte. As prisões na maior parte do mundo não são formas humanas de punição, muito longe disso. Mas também não há vontade social que isso mude, pois pensa-se que o criminoso deve ser severamente punido pelos seus actos e penitenciar-se o resto da vida. E ainda queremos falar em reinserção?

A reinserção é um direito?
Claro que é um direito. Está na legislação nacional e é uma directriz internacional. A reinserção social é um elemento central da finalidade da pena e tem de nortear toda a actividade dos profissionais que trabalham nas prisões e das pessoas em reclusão. O Código Penal português vê a execução das penas de prisão como um passo para a reintegração de indivíduos na sociedade. E até diz que o sucesso dessa reintegração é determinado pela existência ou não de reincidência após a libertação, mas, não sabendo a reincidência, não há muito que se consiga fazer de forma fundamentada.

Que reinserção?
O conceito é curioso quando compreendemos a realidade das pessoas em reclusão. A grande maioria não estava inserida. Como se pode falar em reinserção, se não houve inserção antes da prisão? Muitas vezes, estamos a pedir que a prisão encontre, magicamente, resposta a questões para as quais nunca houve solução no exterior. Depois da reclusão, criamos ainda mais entraves. A prisão é uma resposta adequada? Tenho dúvidas.


Neste estudo sobre reinserção encontrou quem visse oportunidade de mudar na prisão, embora referisse os aspectos negativos.
Os impactos negativos e as experiências prisionais negativas são mais evidentes. Falam em violência física, disrupção dos vínculos familiares, falta de programas e de actividades construtivas. Alguns dizem que estas experiências impactam de forma significativa o regresso à prática criminal. Sentem que são deixados à sua sorte. E mesmo as pessoas que conseguem ver alguns “benefícios” não deixam de apontar críticas. As dores da reclusão são consideradas excessivas e desnecessárias, com um impacto muito grande ao nível da sua saúde mental.

Pode exemplificar?
Dentro dos impactos positivos, há pessoas que identificam a oportunidade de participar em programas e actividades. Avançam que a prisão foi um “mal necessário” para reavaliarem a sua vida, o seu envolvimento criminal, pensarem no que querem.

Isto é visível de forma muito especial com ex-toxicodependentes a cumprir pena em Unidades Livres de Drogas (ULD). A prisão é vista como um ponto de viragem, pois entendem que ali estão protegidos, podem fazer tratamento, melhorar as suas chances de não voltar ao consumo e ao crime. Disse-me uma pessoa que, se não tivesse ido presa, o mais provável era já ter morrido. Portanto, a prisão é uma bolha de protecção momentânea, para recuperar, reatar laços, perspectivar uma vida diferente.

Contudo, as ULD têm uma lotação limitada. Nem todas as pessoas que poderiam beneficiar têm acesso a esses programas. O consumo de drogas nas prisões é uma realidade e o oposto a estas histórias também se encontra. Há pessoas que iniciaram consumos problemáticos de drogas na prisão.

O que propõe?
Pergunto se faz sentido estas pessoas estarem na prisão. Não poderia haver uma resposta distinta, integrada e até em colaboração com o SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências], noutros espaços, com outras condições, outros recursos, ainda mais respostas e programas para esta população em particular? Até porque, se recaem na ULD, voltam para as alas “comuns”, onde estão expostas a drogas e onde a reabilitação se torna um desafio acrescido. Retirá-las da prisão seria mais sensato. Há várias formas de pensar alternativas à prisão. A prisão não tem de ser resposta para muitas das situações que lá encontramos actualmente.

As prisões são tão diferentes umas das outras. É preciso uma dose de sorte?
Sorte e muita paciência. As prisões não têm recursos para garantir que todos cumprem o plano individual de readaptação. Nem humanos, nem materiais. Isto é mais evidente em prisões centrais, mas acontece nas regionais.

Muitas vezes, estamos a pedir que a prisão encontre, magicamente, resposta a questões para as quais nunca houve solução no exterior. Depois da reclusão, criamos ainda mais entraves Sílvia Gomes

As pessoas podem passar muito tempo desocupadas, não porque querem, mas porque não têm acesso a actividades produtivas. Isto tem impacto ao nível da saúde mental, gera revolta (a prisão é vista apenas como um repositório) e pode fomentar actividades ilícitas.

Se pensarmos que a avaliação do recluso está relacionada com o seu comportamento e com as actividades que cumpre, compreendemos porque se torna tão difícil usufruir de medidas de flexibilização da execução da pena, como a licença de saída jurisdicional, a licença de saída administrativa ou a liberdade condicional.

Escreve que os programas de educação, formação e emprego disponíveis nem sempre são úteis. Como podem ser mais eficazes?
Há aqui duas questões. Por um lado, por vezes assiste-se a uma desconexão entre ensino, formação e emprego na prisão e no exterior. O trabalho de faxina, por exemplo, não corresponde na maior parte das vezes ao que estas pessoas fazem no exterior, nem àquilo que irão fazer quando saírem. A formação também pode estar desconectada daquilo que é o mercado de trabalho actual. Em termos de educação, há uma clara consciência de que o nível é muito inferior e, por isso, não vêem, como não viam muitas vezes antes da reclusão, vantagens nela. Portanto, havendo uma maior conexão entre o que é oferecido na prisão e no exterior, estas actividades poderiam ser mais interessantes, produtivas e construtivas. Mas esta formação só será “eficaz” se puder ser aplicada no exterior. Se não houver oportunidades de trabalho aquando da libertação, não servirá de muito adquirir competências na prisão. No final do dia, toda a gente precisa de dinheiro para sobreviver.

O género tem influência?
Ser-se homem ou mulher tem implicações a nível do envolvimento criminal e da reincidência. Os obstáculos até podem ser os mesmos, mas há questões específicas. Por exemplo, os obstáculos na inserção laboral afectam homens e mulheres. Ambos valorizam o trabalho como forma de conseguir ter um estilo de vida normativo e não voltar ao crime. Aliás, conseguir um trabalho está no centro das suas preocupações. No entanto, os homens referem que o trabalho é essencial para sustentar a família e as mulheres focam-se mais no trabalho como meio de reconstruir o vínculo com a família, especialmente quando têm filhos, em particular se perderam a custódia e necessitam de cumprir uma série de requisitos para a recuperar.

O que mais contribui para a reincidência? As condições das prisões, as histórias criminais, a construção social do género, o contexto ao qual regressam?
Tudo isso e mais alguma coisa. Os estudos internacionais identificam vários factores. Em Portugal, como não temos dados sistematizados sobre reincidência, torna-se difícil pintar um quadro adequado à realidade.

Os homens culpam mais o sistema?
Encontrei um discurso mais assertivo e até mais revoltado nos homens, especialmente nos reincidentes. Não quer dizer que não haja mulheres críticas do sistema prisional e da falta de oportunidades, ou da forma como as oportunidades dadas não satisfazem as necessidades. Mas, realmente, entrevistei um conjunto de homens reincidentes que expuseram algumas das falhas.

Dizem, por exemplo, que não lhes são dadas oportunidades de trabalho na prisão por serem reincidentes. Havendo falta de trabalho, entende-se que o que há deve ser “dado” a reclusos primários. Falam em terem sido deixados à porta da prisão no dia da libertação sem dinheiro para o bilhete de autocarro de regresso a casa.

Não poderia haver uma resposta distinta, integrada e até em colaboração com o SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências], noutros espaços, com outras condições, outros recursos, ainda mais respostas e programas para esta população em particular? Sílvia Gomes

Também falam em ter encontrado as mesmas circunstâncias que tinham antes da reclusão, muitas vezes potenciadoras de comportamentos criminais, com a agravante que têm um histórico criminal que os impossibilita de conseguir inserir-se na sociedade e virar a página. Sem intervenção adequada nas prisões e sem apoio no exterior, sentem que são deixados ao acaso. Há muito a ideia de que eles é que têm de se desenrascar, porque não têm apoio.

Há ainda quem refira que a prisão leva à associação a outras pessoas com percursos criminais, expandindo as relações de pares de risco para a continuação do comportamento criminal aquando da libertação. Portanto, a prisão agiria como elemento de risco e não como elemento ressocializador ou de preparação para reinserir na sociedade.

O que falta no exterior para reduzir a reincidência?
Muita coisa. A reinserção social é algo bidireccional. Não podemos acusar alguém de não se reinserir quando a sociedade não permite que essa reinserção exista. O acompanhamento existente no exterior é limitado e vai no sentido de redireccionar as pessoas para serviços como o IEFP ou a Segurança Social. Não há uma estratégia integrada, com recursos suficientes. Mas falta também a sensibilização da população em geral. Afinal, ninguém quer ter um “criminoso” como vizinho ou como funcionário...

Tudo se complica no caso dos reclusos mais velhos?
Claro. Não bastava o rótulo de terem estado na prisão, ainda encontram o entrave de não serem encarados como produtivos no mercado de trabalho.

Há um crescente entendimento de que ter idosos na prisão nem sempre é necessário, apropriado ou se justifica?
Ter pessoas mais velhas na prisão implica gastar mais dinheiro, pois necessitam de cuidados de saúde acrescidos. Por vezes, estão tão debilitadas que não conseguem ter uma existência condigna dentro de uma prisão. Para além disso, a probabilidade de reincidência nesta faixa etária é muito reduzida. Portanto, a prisão, de facto, não é uma medida que se justifique. Uma pena alternativa, como vigilância electrónica, podia eventualmente ser mais adequada.

Vamos ter de pensar num regime especial para os maiores de 60 ou 65, como há para os que têm entre 16 e 21?
É uma possibilidade. Se não houver vontade política para seguir nesse sentido, pelo menos que sejam criadas alas específicas para estas populações e que haja programas e cuidados que espelhem as necessidades deste grupo em particular, que haja dignidade.

Na minha perspectiva, seja qual for o grupo etário, a prisão deveria ser evitada. Temos de pensar em alternativas mais humanas. As condições da reclusão e as práticas em algumas prisões violam muitas vezes o Direitos Humanos – Portugal tem sido chamado à atenção em relatórios internacionais a este respeito, por exemplo.

A prisão tem um impacto muito negativo na vida das pessoas que cumprem pena, mas também tem consequências para os familiares e as comunidades. Mesmo nos casos em que a prisão pode apresentar algumas vantagens, pelo efeito protector que possa ter, não é a solução ideal. Há alternativas. Menos prisão deveria ser o caminho para uma sociedade mais humana.

Nesta série, “Dentro. Entre grades o mundo também muda”, já vimos, por exemplo, que há quatro prisões a experimentar ter telefones nas celas e uma a testar ter todos os reclusos em regime aberto virado para o exterior e que todas receberam ordem de articulação com os serviços sociais numa busca de solução para quem sai sem casa nem retaguarda. Como interpreta estes sinais de mudanças?
Interpreto como sendo sinais positivos. Parece que estas medidas vão no sentido de criar uma maior abertura à manutenção dos laços com o exterior e mitigar os obstáculos de reinserção social. Ao mesmo tempo, são medidas circunscritas. Parece-me que estamos a fazer pequenos remendos, não a trabalhar as questões de fundo. Temos uma falta gritante de recursos humanos e materiais, que afectam o dia-a-dia das pessoas em reclusão e dos profissionais que trabalham nas prisões. Estas medidas, por muito bem-intencionadas que sejam, não resolvem a sobrelotação prisional [que persiste em algumas prisões, embora já não se verifique a nível global desde 2018], a violência, o não acesso a actividades e programas, à saúde mental, etc.