Uns ainda trabalham, outros estão na reforma, parar é que não. Mexer, sempre. Há uma geração que não quer ver horas a passar em vão e que vive os dias intensamente. Homens e mulheres que passaram os 60 e que têm muito para fazer. Envelhecer já não é o que era.
Maria Adriana da Conceição é enfermeira, mulher determinada e resiliente, aposentada, mas não reformada, como faz questão de distinguir. Nunca deixou de trabalhar, sempre a bulir. Todos os dias, conduz 50 quilómetros para cada lado, mora em Águeda, trabalha em Vagos. Há quatro anos, aos 63, foi a duas entrevistas de emprego, acabou contratada pela coordenadora do departamento de Saúde e Segurança da Grestel, empresa de cerâmica que produz peças em grés fino, em Vagos. Está grata pela confiança e pela oportunidade de entrar no único ramo da sua arte que lhe faltava: enfermagem do trabalho. Faz de tudo: curativos, testes covid, vacinação da gripe, apoio aos médicos, formação. Tem 67 anos, madeixas cor-de-rosa no cabelo, está de bem consigo e com a vida. Sexagenária? Nada disso. “Sexy-genária”, corrige com graça.
“Tenho um know-how acumulado ao longo dos anos que não quero colocar dentro de uma gaveta”, conta. Fez muita coisa desde miúda. Trabalhou numa agência de viagens, num escritório de contabilidade, foi administrativa na área da saúde. Aos 30 anos, voltou a estudar para concretizar a vontade de tirar o curso de Enfermagem. Passou pelos cuidados de saúde primários, esteve à cabeceira numa clínica, no bloco operatório, foi ainda enfermeira-chefe, professora convidada da Universidade de Aveiro, deu formação de desenvolvimento pessoal na universidade sénior da cidade dos canais. Especialista em saúde mental, psiquiatria, pedagogia da saúde. “Toquei em muitas áreas.” Faz voluntariado, no verão passado, estava no centro de vacinação de Aveiro. “Ficar em casa, para mim, não é solução. Sinto-me ativa e sinto que tenho muita coisa para fazer.”
João Mesquita também não pára. Tem 65 anos, reformado há dez, começou a trabalhar cedo, aos 14, foi pintor na fábrica de porcelana da Vista Alegre, desenhador numa serigrafia, bombeiro voluntário. O sofá de casa quase não aquece. Depois de se levantar da cama, 30 a 40 flexões e é tempo de tratar de vida – mais parada, entretanto, por causa da pandemia. As rotinas estão agora a voltar aos eixos.
A música corre-lhe nas veias. João Mesquita é tenor e membro da direção do Orfeão de Vagos, faz teatro musical num grupo que integra um projeto da Câmara de Ílhavo. Toca cajón, instrumento de percussão que parece uma caixa, criou o grupo Amigos da Música, entrou noutro conjunto que é um quarteto e mais uns quantos músicos. Canta e toca com muito gosto e os dias tornam-se bem mais leves. Há melodia e harmonia no seu tempo que de desocupado tem muito pouco. “Em vez de estar sentado no sofá a ver televisão, tenho a cabeça ocupada e estou entretido.” Volta e meia, diz aos amigos da sua geração para saírem de casa, para esticarem as pernas e desligarem a televisão. Olha para a vida com boa disposição. “Encaro-a positivamente. Estou vivo e ainda bem.” Qualquer empecilho pelo caminho, é dar a volta e seguir em frente.
A longevidade aumenta, surgem novos paradigmas, o modo de estar na vida muda. Envelhecer já não é o que era. Aquela imagem de jogar às cartas num banco de jardim passou à história. Sara Ferreira é psicóloga clínica e vê mudanças nesta passagem dos anos e do tempo. “Atualmente, as pessoas mais idosas, na sua generalidade, parecem de alguma forma recusar esse papel mais ‘passivo’ em relação ao processo de envelhecimento. Cuidam-se mais, vivem com melhor qualidade de vida, procuram estimular-se e nutrir-se, fazendo o que mais gostam, seja viajar, praticar algum desporto ou tendo hobbies e realizando diversos tipos de atividade de forma consistente”, constata.
A idade da reforma está no meio dos 60 e essa circunstância é um pormenor importante. “Talvez seja este o maior desafio, a passagem da vida ativa, maioritariamente ligada ao trabalho, para a reforma, um período para muitos seniores de difícil adaptação”, refere Ângelo Valente, animador sociocultural que há anos trabalha com os mais velhos. “Envelhecer é o maior fenómeno da nossa sociedade e um privilégio que deve ser vivido e celebrado por todos”, sublinha.
Saúde, felicidade, qualidade de vida
A idade é um pormenor, um número que quase não lhe sai à primeira, demora uns segundos a dizê-lo. Conceição Ferreira tem 68 anos, adora viajar, passear, sentir a Natureza, faz desporto, natação e pilates três vezes por semana, caminhadas de uma hora todos os dias, tem uma alimentação saudável, gosta de cantar, de escrever histórias infantis, de ouvir música, ir a concertos. É uma mulher divertida, franca, bem-disposta.
Conceição está reformada, trabalhou numa solicitadora e numa imobiliária, teve um restaurante. É apaixonada por Espanha, onde passou a passagem de ano, não se importa de voltar aos sítios onde foi feliz, de repetir destinos. Envelhecer não é coisa que lhe ocupe a cabeça, costuma dizer que o futuro não é amanhã. “Estou a viver o meu futuro, o meu futuro é hoje. Sei que não quero ter no meu futuro, nem nos dias que correm, horas a morrer. Tenho de ter coisas para fazer”, confessa. Ou são os afazeres domésticos, as viagens para planear, a natação que a tira da cama bem cedo, tratar dos animais, uma cadela e quatro gatos, estar com as filhas e com a neta, passear com o companheiro. Não há momentos mortos. “Busco tempo para mim e exerço a gratidão. Sou grata por tudo o que fiz e a tudo o que tenho.” Quer continuar a realizar os seus sonhos. “Viver bem, ser feliz, ter qualidade de vida, ter gosto no que faço, envelhecer bem.” É isso que lhe importa.
Se o tempo de vida estica, a expectativa de uma vida saudável aumenta, surgem ideias e vontades para depois da reforma. “A velhice deve ser encarada como uma etapa plena da vida e não como apenas viver na inquietação de ver os dias chegarem ao fim. Com saúde, autonomia e inseridos na sua comunidade, os anos da velhice podem ser vividos como uma experiência renovadora e partilhada com as gerações mais novas”, salienta Sara Ferreira, psicóloga clínica. Há muitos sexagenários que não se resignam a ver passar as horas e os minutos, muitos mantêm atividades profissionais, físicas, de lazer, convívio, passeio. Dão luta ao envelhecimento.
Maria Adriana dedica-se à jardinagem no seu quintal que é um jardim, tem um bananal, relva debaixo das árvores de fruto, e ainda uma horta de onde apanha vegetais e legumes para comer na hora sem sal. “Gosto muito de ler, gosto muito de pensar projetos, gosto muito de viajar. Tenho um marido maravilhoso, um companheiro para a vida.” São 46 anos de casamento e 48 e meio de namoro.
A relação e a partilha com os outros são fundamentais nos seus dias. “Ponho amor em tudo o que faço”, garante Maria Adriana. O visual é importante, sim, mas as rugas não lhe tiram o sono. “Sei lidar com as perturbações físicas que a vida me traz”, assegura. “Se conhecermos as competências do nosso corpo e da respiração, podemos ter uma atitude positiva perante a vida”, acrescenta.
“Envelhecer significa o simples avançar do tempo”, observa Sofia Nunes, gerontóloga. Não é um processo triste. “É um privilégio conseguirmos viver mais anos, com mais qualidade de vida, felizes e com condições para concretizarmos todos os projetos que queremos para nós e para quem nos rodeia.” Com a constante evolução do conhecimento científico e da tecnologia, realça, “cada vez temos mais condições para o fazer, sendo importante refletir acerca do acesso a essas condições para que viver mais anos com qualidade de vida não seja um privilégio de apenas algumas pessoas”.
Ângelo Valente fala em preparação: “Ser ‘velho novo’ é um dos maiores desafios para envelhecermos com felicidade esperada e devida, um processo que devemos preparar desde a nossa juventude”. Sofia Nunes e Ângelo Valente trabalharam no Centro Comunitário da Gafanha do Carmo, em Ílhavo. Colocaram a instituição no mapa com várias atividades fora da caixa, vídeos bastante criativos, iniciativas que tiveram projeção nacional. Continuam na área, dedicados aos mais velhos com o projeto Interage. Juntos organizam atividades, como workshops e eventos, que promovam um envelhecimento saudável e sobretudo feliz.
Planear e preparar fazem sentido. Os anos da velhice podem, segundo Sara Ferreira, ser vividos como uma experiência renovadora e partilhada com as gerações mais novas. “Envelhecer num ambiente protetor é o desafio de construir uma sociedade para todos, sobretudo para os nossos velhos. E, para isso, creio ser fundamental planear. Desde cedo. Educar e empoderar o jovem de hoje, que será o idoso de amanhã. Sim, a boa velhice começa cedo, bem cedo.” E a qualidade das relações mais íntimas é fundamental. “Afinal, uma vida boa constrói-se com boas relações. Surpreendentemente, os dados têm-nos feito chegar à conclusão de que o segredo para envelhecer bem não é ‘apenas’ sinónimo de uma alimentação correta, evitar álcool e tabaco ou fazer alguma atividade física: o grande segredo é a qualidade das relações que uma pessoa desenvolveu ao longo da vida.” A solidão mata e os conflitos dão cabo da saúde.
Expectativas, ambições, projetos
Maria Adriana quer manter-se ativa, mas quando tiver de ser, e a reforma for mesmo uma realidade, já sabe o que vai fazer. “Descobri que tenho muito jeito para o artesanato.” Aprendeu a costurar e a bordar, viu vídeos na Internet, faz arte aplicada em telas, trabalhos com corda e tecidos, macramé. Gostava de aprender a fazer bilros, mas não encontra quem lhe ensine, e tem vontade de aprender a tocar um instrumento, talvez violino. “Gosto de pensar que vim ao Mundo para mudar o mundo à minha volta. Podemos ser um exemplo e espalhar coisas boas à nossa volta”, afirma.
Com jeito para a pintura, João Mesquita deu aulas de Arte na Universidade Sénior de Vagos durante um tempo. Conheceu o país e algumas cidades europeias com o Orfeão. Há momentos em que é complicado gerir a agenda e tem de optar, é impossível estar em dois sítios ao mesmo tempo. Gosta de viajar e de andar de bicicleta quando o tempo permite. “Caminhadas de bicicleta”, como lhes chama. “Faço o que posso para manter-me ativo.”
Conceição Ferreira dá muita atenção à saúde do corpo, da mente, e das emoções, que vê como um todo. “Nunca fui uma mulher de exageros, sempre fui muito equilibrada.” E a sua saúde agradece. “Para estar bem, tenho de estar na Natureza. Sou uma pessoa de terra, preciso ver árvores, plantas, pássaros. Se estiver muito tempo sem ver verde, não ando bem.” Em 1997, criou o projeto Macinhata Espanta, mostra de espantalhos em Macinhata da Seixa, em Oliveira de Azeméis, durante três meses, uma forma de homenagear a tradição da história agrícola dos habitantes da freguesia. A mostra deu lugar a um festival com 400 espantalhos em varandas, ruas e jardins, entretanto suspenso por causa da pandemia. Conceição já escreveu um livro sobre a história da Francisca OAZ, espantalho que ganha vida e que se tornou o rosto da iniciativa. “É um projeto que nasce de mim, que me tem dado muito que fazer, e que me preenche completamente.”
O envolvimento na comunidade traz anos de vida, as experiências têm muita importância. O rótulo da velhice já não cola nos sexagenários. “Muitas pessoas com 60 anos ou mais estão, felizmente, a derrubar mitos e a provar saudavelmente que os limites da vida se expandiram”, adianta Sara Ferreira, que avisa que é necessário, portanto, repensar conceitos. “Urge atualizar e redefinir as fronteiras da idade e dos ‘rótulos’ mais antigos e desfasados dos tempos atuais”, defende. “Afinal, o tempo é, até certo ponto, uma perspetiva: há pessoas cronologicamente jovens, mas muito menos dinâmicas, vívidas e ativas do que outras que podem ter superado a linha dos 60 anos, mas que apresentam ainda níveis de vigor e vitalidade verdadeiramente inspiradores.”
Os mais velhos têm obviamente o seu espaço na sociedade e envelhecer faz parte da vida. Sara Ferreira considera que o paradigma do envelhecimento ativo é a chave para promover qualidade de vida e bem-estar e que “não deve ser apenas uma intenção, mas uma dinâmica que chegue a todos os idosos”.
Vive-se mais tempo, com maior qualidade de vida, e a soma dos anos acaba por ser um pormenor. Sofia Nunes alarga as perspetivas do assunto. “As pessoas mais velhas não estão necessariamente mais jovens, simplesmente podem usufruir de melhores condições de vida, em comparação com anteriores gerações”, verifica a gerontóloga que lembra que o envelhecimento é um fenómeno universal que não toca apenas aos outros, calha a todos. “É por muitas vezes não contemplarmos a universalidade deste processo que falhamos, como sociedade, na determinação de políticas e ações.” Por isso, avisa, “é necessário refletir acerca do que esperamos, enquanto sociedade, do nosso próprio envelhecimento”. Pensar em expectativas, ambições, projetos de vida. E tentar viver da melhor forma possível, sem o peso dos anos, com a leveza dos dias.
O envolvimento na comunidade traz anos de vida, as experiências têm muita importância. O rótulo da velhice já não cola nos sexagenários. “Muitas pessoas com 60 anos ou mais estão, felizmente, a derrubar mitos e a provar saudavelmente que os limites da vida se expandiram”, adianta Sara Ferreira, que avisa que é necessário, portanto, repensar conceitos. “Urge atualizar e redefinir as fronteiras da idade e dos ‘rótulos’ mais antigos e desfasados dos tempos atuais”, defende. “Afinal, o tempo é, até certo ponto, uma perspetiva: há pessoas cronologicamente jovens, mas muito menos dinâmicas, vívidas e ativas do que outras que podem ter superado a linha dos 60 anos, mas que apresentam ainda níveis de vigor e vitalidade verdadeiramente inspiradores.”
Os mais velhos têm obviamente o seu espaço na sociedade e envelhecer faz parte da vida. Sara Ferreira considera que o paradigma do envelhecimento ativo é a chave para promover qualidade de vida e bem-estar e que “não deve ser apenas uma intenção, mas uma dinâmica que chegue a todos os idosos”.
Vive-se mais tempo, com maior qualidade de vida, e a soma dos anos acaba por ser um pormenor. Sofia Nunes alarga as perspetivas do assunto. “As pessoas mais velhas não estão necessariamente mais jovens, simplesmente podem usufruir de melhores condições de vida, em comparação com anteriores gerações”, verifica a gerontóloga que lembra que o envelhecimento é um fenómeno universal que não toca apenas aos outros, calha a todos. “É por muitas vezes não contemplarmos a universalidade deste processo que falhamos, como sociedade, na determinação de políticas e ações.” Por isso, avisa, “é necessário refletir acerca do que esperamos, enquanto sociedade, do nosso próprio envelhecimento”. Pensar em expectativas, ambições, projetos de vida. E tentar viver da melhor forma possível, sem o peso dos anos, com a leveza dos dias.