Para ultrapassar as dificuldades relacionadas com o cálculo das despesas mensais e evitar conflitos com os trabalhadores, há empresas que decidiram pagar um valor fixo a quem está em teletrabalho. Outras ainda estão a analisar como vão aplicar o novo regime do teletrabalho.
Muitas empresas ainda estão a analisar como vão aplicar o novo regime legal do teletrabalho que entrou em vigor a 1 de Janeiro. E há quem alerte para a dificuldade de calcular as despesas a pagar pelo empregador e defenda uma clarificação da lei. Para contornar estas dificuldades, e evitar conflitos, algumas empresas já decidiram pagar aos trabalhadores um valor fixo para fazer face ao acréscimo de despesas com o teletrabalho, em vez de calcularem as despesas caso a caso, mediante as facturas apresentada pelos empregados.
Depois de, nos últimos dois anos, um número inédito de pessoas ter estado em teletrabalho por causa da pandemia, a nova lei só viu a luz do dia no final do ano passado, prevendo, de forma imperativa, que quem paga as despesas inerentes a esta modalidade de trabalho é a empresa.
Assim, a Lei 83/2021 passa a determinar que são integralmente compensadas pelo empregador “todas as despesas adicionais que, comprovadamente, o trabalhador suporte […], incluindo os acréscimos de custos de energia e da rede instalada no local de trabalho […], assim como os de manutenção dos equipamentos e sistemas”.
Cabe ao trabalhador provar que tem despesas que não existiam antes do acordo do teletrabalho ou que elas são mais elevadas, por comparação com as despesas homólogas mensais antes de ter iniciado o teletrabalho.
“Se a despesa com a aquisição de equipamentos e sistemas necessários à realização do trabalho e à interacção do trabalhador com o empregador é de fácil quantificação, o mesmo já não sucede com as despesas relacionadas com os consumos, como a electricidade ou a Internet”, sublinha Sofia Monge, advogada e sócia da Carlos Pinto de Abreu e Associados.
O modelo, alerta, traz várias dificuldades. Por um lado, a “elevadíssima probabilidade” de trabalhadores que desempenham as mesmas funções e utilizam o mesmo tipo de recurso virem a receber comparticipações desiguais. Por outro, aplicar esta solução em grandes empresas é “difícil, moroso e burocrático”, pois exige uma análise trabalhador a trabalhador e mês a mês.
A lei também não ajuda em casos de teletrabalho simultâneo entre coabitantes, por exemplo, de que forma é que as entidades empregadoras podem sindicar o que de facto a cada uma lhes compete? Pedro da Qutéria Faria
Além disso, acrescenta, o facto de o trabalho ser prestado no mesmo local onde o trabalhador tem também o centro da sua vida pessoal e familiar torna “difícil destrinçar com exactidão o que são despesas de consumo provocadas pela actividade profissional e aquelas que se referem à sua vida pessoal e familiar”.
Pedro da Quitéria Faria, responsável pelo departamento do trabalho da Antas da Cunha Ecija e Associados, não tem dúvidas de que a solução que a lei veio consagrar vai trazer “enormes dificuldades” ao cálculo das despesas adicionais. E dá vários exemplos: situações em que as facturas estejam em nome do cônjuge, o que poderá fazer com que a entidade empregadora não assuma as despesas, ou situações de arrendamento em que as despesas venham em nome do senhorio.
“A lei também não ajuda em casos de teletrabalho simultâneo entre coabitantes, por exemplo de que forma é que as entidades empregadoras podem sindicar o que de facto a cada uma lhes compete, nem como se deverá proceder a tais comunicações entre as próprias e eventuais acertos. Apenas por estas simples possibilidades reais verificamos a amplitude de conflitualidade que a lei pode vir a redundar, e que era absolutamente desnecessária”, antecipa.
À falta de uma regulamentação da lei e perante as dificuldades, algumas empresas estão a enveredar por soluções alternativas, pagando um valor fixo aos trabalhadores.
Empresas tentam evitar conflitos
“Existem empresas que, por exemplo, entregaram a cada trabalhador um hotspot portátil e que fizeram um estudo acerca dos kilowatts gastos por um computador ligado durante um dia, multiplicaram esse valor pelos dias de trabalho durante um ano (contemplando até períodos que não são de trabalho, como períodos de férias) e pagam no início de cada ano aos trabalhadores em regime de teletrabalho o valor correspondente a esse custo”, exemplifica Sofia Monge, alertando que o facto de as empresas enveredarem por estas soluções “não impede que um trabalhador se possa sentir lesado e vir a exigir o acréscimo que resultaria do cálculo previsto no Código do Trabalho”.
Perante a dificuldade em apurar de forma objectiva o acréscimo de despesas “muitas empresas optaram de forma consensual, justa e equilibrada, com métricas objectivas, e com o acordo do teletrabalhador, lograr um acordo para o pagamento de um valor/dia ou de um valor/mês
A experiência de Pedro da Quitéria Faria leva-o também a concluir que perante a dificuldade em apurar de forma objectiva o acréscimo de despesas “muitas empresas optaram de forma consensual, justa e equilibrada, com métricas objectivas, e com o acordo do teletrabalhador, lograr um acordo para o pagamento de um valor/dia ou de um valor/mês (quando o trabalhador se encontra sempre em teletrabalho), o que se tem revelado como uma opção mais pacífica e, aparentemente, que vai ao encontro das expectativas de ambas as partes”.
“Dos casos com que temos trabalhado, os valores propostos são relativamente generosos precisamente para que as empresas consigam o desiderato fundamental: a tentativa de inexistência de conflitos sobre esta matéria em concreto”, acrescenta.
Num inquérito feito pelo PÚBLICO a uma dezena de grandes empresas, apenas duas assumiram que estão a calcular um valor fixo a pagar a quem está em teletrabalho.
A maioria das empresas que responderam asseguram que fornecem aos trabalhadores os equipamentos e os meios de acesso a programas e plataformas electrónicas e que vão cumprir a lei, mas ainda estão a equacionar a solução que melhor se adequa à sua situação
A Ikea assegura que a partir do momento em que o teletrabalho se tornou obrigatório, ainda em 2020, disponibilizou as ferramentas de trabalho essenciais aos seus trabalhadores e foi prevista a possibilidade de compensar custos adicionais com a Internet.
Com a nova lei, “percebemos que a intenção será compensar os trabalhadores que viram as suas despesas com electricidade e Internet crescer com a mudança para a situação de teletrabalho”. A empresa sueca lamenta que o cálculo “envolva procedimentos tão complexos e burocráticos, que a tornam virtualmente impossível de aplicar no dia-a-dia” e optou por estimar um valor médio mensal para todas as pessoas que estão em teletrabalho.
Também a Randstad está a equacionar pagar um montante fixo aos seus trabalhadores e poderá ter de reajustar o pacote de dados que já é oferecido a quem está em trabalho remoto. “Ainda estamos a estudar os detalhes”, adiantou ao PÚBLICO Mariana Canto e Castro, directora de recursos humanos, sublinhando que esta solução “simplifica a vida” à empresa e aos próprios trabalhadores.
As associações de empregadores não têm recebido queixas relacionadas com a aplicação da lei do teletrabalho ou com o cálculo das despesas
A consultora PwC garante que, antes de qualquer medida imposta pela lei, foi dado a todos os trabalhadores um voucher para poderem adquirir equipamentos e mobiliário para a sua casa. Ao passo que na Jerónimo Martins, que tem apenas 3% dos seus trabalhadores em regime de teletrabalho, o pagamento das despesas é feito em função da demonstração por parte do trabalhador de que houve um incremento dos custos e são usados os canais já instituídos para o pagamento das ajudas de custo.
UGT alerta para princípio do tratamento mais favorável
A maioria das empresas que responderam asseguram que fornecem aos trabalhadores os equipamentos e os meios de acesso a programas e plataformas electrónicas e que vão cumprir a lei, mas ainda estão a equacionar a solução que melhor se adequa à sua situação.
A Vodafone, por exemplo, assegura que dá aos funcionários todos os equipamentos necessários e acesso ilimitado à Internet, mas quanto a outras despesas ainda está a aguardar clarificações para apurar a fórmula de cálculo. Também o BPI está a analisar, assim como a Galp, a EDP e a Altice.
As associações de empregadores não têm recebido queixas relacionadas com a aplicação da lei do teletrabalho ou com o cálculo das despesas. “Até este momento não temos queixas de empresas”, adiantou ao PÚBLICO João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), antecipando que eventuais problemas possam surgir no final do mês, quando os trabalhadores começarem a apresentar comprovativos de despesas.
Também à UGT não têm chegado casos. O dirigente Sérgio Monte destaca a importância de a lei prever o princípio de que o trabalhador deve ser ressarcido pelas despesas adicionais com o teletrabalho, mas sublinha que as empresas podem negociar com os trabalhadores ou com os sindicatos as despesas a considerar ou o valor a pagar desde que respeite o princípio do tratamento mais favorável.
“As empresas só terão dificuldades se não seguirem o caminho de tentar adequar a lei à sua realidade ou se não se sentarem com os trabalhadores para definirem a atribuição de um valor fixo”, destaca. com Ana Brito, Isabel Aveiro, Pedro Crisóstomo, Rosa Soares e Victor Ferreira
Teletrabalho para quem tem filhos até 8 anos gera dúvidas
O novo regime do teletrabalho alarga as situações em que os trabalhadores têm direito ao trabalho remoto, mas na prática isso só se concretizará se a actividade for compatível e se as empresas tiverem recursos e meios que permitam a passagem a esta modalidade.
Até ao final do ano passado, o teletrabalho era um direito dado apenas a trabalhadores com filhos até três anos (a obrigatoriedade para outras situações foi introduzida na legislação de emergência para responder à pandemia e não faz parte do Código do Trabalho). De Janeiro em diante, com a nova lei, este direito foi alargado a quem tem filhos até aos oito anos, desde que haja partilha entre os dois progenitores e estejam em causa empresas com 10 ou mais trabalhadores. Estão também abrangidas famílias monoparentais e as situações em que apenas um dos progenitores tem um emprego compatível com o teletrabalho.
Embora a lei diga que o empregador não pode opor-se ao pedido do trabalhador, agora, como no passado, este direito depende da compatibilidade da actividade desempenhada com o teletrabalho e do empregador dispor de recursos e meios para o efeito.
Na prática, se o empregador provar que não tem condições e justificar por escrito, este direito pode não se concretizar. Por outro lado, o facto de as funções do trabalhador terem sido desenvolvidas em teletrabalho durante o período em que ele foi obrigatório pode fragilizar a argumentação da recusa e pode ter um peso na argumentação a favor do trabalhador.
Pedro da Quitéria Faria, advogado, reconhece que “existem empresas que não encaram de forma apelativa e interessante” esta possibilidade de imposição unilateral do teletrabalho, por a considerarem “prejudicial à sua normal actividade”. E alerta que tanto isso como o facto de ter de haver partilha entre progenitores (tendo como período de referência seis meses para cada) pode gerar “dúvidas interpretativas” que, com o tempo, acabarão por se “pacificar”.