17.1.22

Reclusos com mais de 60 anos quase triplicam em doze anos

Ana Cristina Pereira (texto) e Paulo Pimenta (fotografias), in Público on-line

A população prisional está cada vez mais envelhecida, o que obriga a repensar espaços, mas também modos de funcionar. Sexto capítulo da série sobre o que está a mudar entre grades

Há quem envelheça saudável, mas uns têm dificuldade em subir e descer escadas, outros ouvem mal, alguns até precisam de ajuda para tomar banho, vestir-se, comer. No final do ano, 953 reclusos contavam mais de 60 anos. O mais velho ia nos 91. Seguiam-no, de perto, um com 80 e dois com 88.

Apesar de o número de reclusos estar a diminuir, o peso dos maiores de 60 anos tem crescido de ano para ano: 3,2% em 2010, 5,3% em 2015, 7,8% em 2020. Numa década, esse grupo mais do que duplicou, passando de 327 em 2010 para 889 em 2020. No final de Novembro de 2021, já pouco faltava para triplicar. Maior seria a proporção, se fosse a contar os maiores de 50, como fazem os estudiosos, atendendo ao quanto a prisão acelera o envelhecimento (muitas vezes, as pessoas já entram com vulnerabilidades, que o confinamento exacerba).


Há quem chegue à prisão numa fase tardia da vida, como Carmen, de 79 anos, conduzida ao Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo – Feminino quando, em Julho de 2020, a Polícia Judiciária apreendeu 15 quilos de cocaína num contentor. E há quem tenha envelhecido na prisão, como José, que soma 71 anos.

Num delírio persecutório, José matou o pai e foi declarado inimputável em 1987, saindo só em 2019 da clínica psiquiátrica de Santa Cruz do Bispo – Masculino para a unidade de internamento forense do Hospital Magalhães Lemos, onde, sem qualquer retaguarda familiar, aguarda vaga da Segurança Social numa estrutura residencial para idosos. Desloca-se em cadeira de rodas, já não tem dentes, desenvolveu uma demência. Precisa de ajuda para se levantar, tomar banho, vestir-se, deitar-se. Passa grande parte do dia a ver televisão.

José já não está capaz de conversar. Carmen, sim. “Toda a vida fui empresária”, contou, em castelhano. Vivia entre Portugal e Espanha. “Tinha uma empresa aqui. Importávamos pedra. No último contentor, em Porto Rico, meteram-nos, pela parte de fora, droga. Eu não vi. Não vi porque não estava.” Apresentaria essa estratégia de defesa ao tribunal. Entretanto, tentava manter-se ocupada. “Gosto de aprender. Perguntei se havia Português, disseram-me que sim. Estupendo. Vou duas vezes por semana ao Português. Ocupo o tempo e aprendo, perfeito. Logo, há terapia ocupacional. Também gosto muito. Gosto muito porque me mexo.” E lê muito, uma actividade que poucas idosas portugueses ali costuma atrair, atendendo à sua baixa escolaridade.

O fenómeno está a acontecer em todo o mundo ocidental, reflectindo o envelhecimento da população em geral e as políticas penais. Não é só uma questão de barreiras arquitectónicas, como a existência de degraus e a inexistência de corrimões. Os idosos tendem a ser menos tolerantes ao frio, ao calor, ao ruído, a carecer de mais cuidados médicos, a não ter tanta destreza física ou mental.
Prisões geriátricas ou alas

Pedro das Neves, director executivo da IPS – Innovative Prison Systems, uma empresa de pesquisa e consultoria especializada em serviços de justiça e prisionais, dá o exemplo do Ohio, nos Estados Unidos. Delineou um plano a longo prazo, identificando o que teria de construir ou adaptar. E previu a construção de unidades específicas para idosos perto de hospitais. “A tendência vai ser esta: mudar de uma perspectiva mais punitiva para aquilo que tem mais que ver com a prestação de cuidado a quem tem de cumprir pena e tem já alguma idade.”

Não faltam experiências pelo mundo fora. A Alemanha, por exemplo, criou há muito uma prisão geriátrica, Singen, em Baden-Württemberg , com lotação para 54 homens. E a República Dominicana criou há pouco, em San Domingo, um complexo com lotação para 150 distribuídos por 25 casas.

Pedro das Neves, que é membro da direcção da International Corrections and Prisons Association, menciona este último modelo, financiado pelas Nações Unidas. “Para além de estarem mais protegidos dos outros reclusos que podem tirar partido das suas vulnerabilidades, têm cuidados de saúde diferenciados”, diz. E exigem menos segurança. “Não quer dizer que um recluso com 65 ou 70 não fuja ou não queira fugir, mas já não tenta subir um muro de sete metros.”

Há soluções intermédias. Ocorre-lhe o exemplo da “Bélgica, onde foram adaptadas alas dentro de prisões para ter estas pessoas separadas da população geral de reclusos e com outro tipo de cuidados”. Já Portugal continua a ter a população prisional mais velha espalhada pelas várias prisões. Vê-se, salienta a socióloga Adriana Silva, que fez tese de doutoramento sobre este tema, alguma virtude na mistura: os mais velhos acalmam os mais novos.

Chegou a aventar-se, em 2017, a possibilidade de transformar o antigo Estabelecimento Prisional da Guarda, que então acolhia o Centro Educativo do Mondego, numa prisão de baixa segurança exclusiva para reclusos mais velhos, mas a ideia não saiu da gaveta. E já nem é referida pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) quando se procura saber, com insistência, de que forma as prisões lidam com o envelhecimento, em particular com os idosos que padecem de doença crónica ou terminal, demência, perda de audição ou incontinência.

No EP de Santa Cruz do Bispo – Masculino, na área reservada aos inimputáveis, há uma pequena unidade destinada aos mais dependentes. Alguns reclusos do regime comum, a quem entretanto é diagnosticado algum tipo de demência, vão sendo encaminhados para aquela prisão. No Hospital Prisional de São João de Deus, em Lisboa, existe uma pequena unidade de cuidados continuados que também recebe gente de muito lado.

Não é tema que a DGRSP goste de ver tratar. Uma reportagem específica nunca foi autorizada, apesar de estar a ser pedida pelo PÚBLICO desde o Verão de 2019. Tão-pouco uma conversa com Jorge Monteiro, responsável pelo Centro de Competências para a Gestão de Projectos e Programas, pedida desde o Verão de 2021.

Limita-se a DGRSP a declarar, por escrito, que o quotidiano dos reclusos mais velhos “segue os horários e as actividades previstas nos regulamentos, naturalmente adaptadas às condições de saúde e físicas das pessoas”. “São seguidos nos estabelecimentos prisionais pelas equipas de saúde (clínicos gerais e enfermeiros), sendo que sempre que necessitam de cuidados especializados recorrem ao hospital prisional ou ao sistema nacional de saúde.”

Houve um reforço dos cuidados de saúde. A DGRSP admite que o modelo que vigorou até 2019, “alicerçado na contratação de empresas privadas, revelou-se ineficaz, senão mesmo prejudicial”. “A forte componente de outsourcing, contratação de empresas privadas prestadoras de cuidados de saúde, apresentava inúmeras fragilidades.” No quadro, cresceu o número de enfermeiros (78 em 2015 para 159 em 2019 para 195 em 2021). O de psiquiatras manteve-se (10), mas aumentou o de contratados (38 em 2020 para 46 em 2021). O de técnicos superiores de psicologia baixou (14 para 12), valor compensado pela subida de psicólogos clínicos contratados (50 para 53). O número de prisões com psiquiatria passou de 40 para 47.

Estudiosos como Adriana Silva, professora convidada da Universidade do Minho, defendem programas específicos para esta população (ver entrevista). Sem programas ajustados, os menos autónomos acabam por limitar-se a jogar às cartas ou às damas, a ver televisão, a conversar.

Pouquíssimas prisões oferecem a terapia ocupacional de que fala Carmen. Santa Cruz do Bispo – Feminina, que é gerida em parceria com a Santa Casa da Misericórdia do Porto, tem um programa de reabilitação psicossocial para pessoas mais vulneráveis, que envolve desporto, estimulação psicomotora, apoio psicológico. Explica a directora, Paula Leão, que as reclusas incapacitadas para trabalhar ou estudar são aí desafiadas a fazer exercícios físicos e exercícios de estimulação cognitiva e incentivadas a frequentar a biblioteca, as artes ou a música.

Há quem seja faxina na prisão, estas pessoas assumiram que são cuidadoras. Têm uma formação específica e, enquanto estão ali, fazem esse trabalho. Pedro das Neves, sociólogo

Isabel só conta 46 anos, mas integra esse programa de reabilitação psicossocial. O consumo de drogas deu-lhe cabo da saúde. Antes de ali chegar, para expiar uma pena por tráfico de estupefacientes, já somava “oito pneumonias, dois acidentes vasculares cerebrais, um tumor na cabeça”. Está “cega de um olho”, custa-lhe manter o equilíbrio, tem osteoporose. Desloca-se com a ajuda de uma muleta.

Antes, partilhava a cela com uma mulher que a ajudava. “Depois, ela foi embora e eu desanimei.” Durante um tempo, nem à terapia ocupacional queria ir. “Agora estou numa cela com uma idosa que teve um AVC ou dois. Ela está paralisada e eu...outro dia cai no polibã. Estava a tomar banho e escorreguei, mas ela não pôde fazer nada. Ela não me pôde ajudar.”

Houve um projecto experimental, o MenACE, destinado a melhorar a resposta aos distúrbios de saúde mental e os serviços prestados à população idosa. Na prática, desenvolveu-se formação, em e-learning, para profissionais da DGRSP. O caso de Isabel mostra como é preciso ir além das chefias e dos técnicos.
Formar os guardas, fazer os reclusos cuidadores

Pedro das Neves alerta para a urgência de formar guardas. “Alguém que é mais velho reage de forma mais lenta ao que lhe é pedido. Às vezes nem reage, ou porque não ouve ou porque não dá conta”, sublinha. “Quando um guarda diz a um recluso para se levantar e ele não se levanta, tem de perceber que por trás daquela recusa pode não estar uma recusa. A questão da capacitação é fundamental.”

Os assistentes operacionais escasseiam dentro das prisões. A investigação de Adriana Silva, do Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho, revela que reclusos mais jovens vão servindo de cuidadores de reclusos mais velhos. Sem preparação, sem remuneração, a título de voluntariado.

Pedro das Neves conhece administrações penitenciárias, por exemplo nos Estados Unidos, que oficializaram essa prática. “Há quem seja faxina na prisão, estas pessoas assumiram que são cuidadoras. Têm uma formação específica e, enquanto estão ali, fazem esse trabalho.” Pode ser um trabalho pago, como qualquer outro. “No fundo, vai substituir um conjunto de serviços que teriam que existir. A questão é como olhamos para o problema e desenhamos um programa para lidar com ele. Depois pode levantar-se a questão da remuneração, mas primeiro é preciso encarar a situação.”

Tudo isto se lhe afigura tanto mais indispensável quanto nem todos os países admitem a libertação por questões humanitárias. “Em Portugal isso acontece, mas às vezes entre o pedido de libertação compassiva e a autorização já a pessoa morreu”, torna. “É preciso que a pessoa esteja numa situação muito debilitada e que os serviços prisionais não tenham condições para responder.”

A possibilidade de cumprir pena em regimento de permanência na habitação também é, em Portugal, muito reduzida. E aí é igualmente “preciso fazer algum trabalho de sensibilização”. “Da mesma maneira que posso ter uma pessoa a cumprir uma pena em casa, poderia ter num lar de terceira idade”, exemplifica Pedro das Neves.

Não há um regime específico para delinquentes maiores de 65, como para os que têm entre 16 e 21. Ora, sobram estudos que evidenciam como o envelhecimento acelera dentro das prisões. E é grande a dificuldade de reinserção social destes reclusos, que carregam um duplo estigma.