Andrea Cunha Freitas, in Público on-line
Experiência com 435 crianças de apenas um ano de idade comprovou que os bebés de famílias com baixos rendimentos apresentam uma actividade cerebral distinta dos bebés que crescem em famílias com mais dinheiro.
A experiência levada a cabo nos EUA é mais ou menos simples: um grupo de mães com recém-nascidos recebeu mensalmente uma quantia de 333 dólares e outro grupo recebeu apenas uma mesada de 20 dólares. Um ano após o nascimento das crianças, uma equipa de investigadores analisou os padrões de actividade cerebral de 435 bebés nos dois grupos. Os resultados, publicados na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), revelam que a redução da pobreza tem um impacto na actividade cerebral durante a primeira infância. Os cérebros de crianças em contextos mais abonados não serão melhores nem piores, mas este estudo indica que são diferentes.
Não é novidade que a pobreza é um factor de risco para um mau aproveitamento escolar, menos oportunidade de melhores salários e pior saúde (física e mental), entre muitas outras desvantagens. Outros estudos também já demonstraram que a pobreza pode ser associada a diferenças no desenvolvimento cerebral em crianças, quanto mais não seja porque os seus cérebros se adaptam às experiências e ambientes que os rodeiam.
“No entanto, até agora, não temos sido capazes de dizer se a própria pobreza causa diferenças no desenvolvimento infantil, ou se o crescimento na pobreza está simplesmente associado a outros factores que causam essas diferenças”, constata Kimberly Noble, investigadora na Universidade de Colúmbia que coordenou este trabalho. É o velho debate da correlação e da causalidade, desta vez, aplicado à pobreza e ao cérebro.
Noutras investigações, notam os autores do artigo, a pobreza também já foi correlacionada com o desenvolvimento estrutural e funcional de algumas regiões cerebrais implicadas em áreas como a linguagem ou memória. Desta vez, a equipa de cientistas quis explorar o impacto que a pobreza e os factores que a rodeiam podem ter no neurodesenvolvimento, analisando os padrões de actividade cerebral de crianças com um ano de idade que cresceram em diferentes contextos.
A ideia era precisamente perceber se existe de facto uma relação de causalidade entre uma coisa e outra. “Devido ao desenho do ensaio controlado aleatório, os autores conseguiram distinguir correlação e causalidade, concluindo que dar dinheiro directamente às mães que vivem na pobreza pode traduzir-se em mudanças na actividade cerebral dos seus bebés”, destaca o comunicado de imprensa da Universidade da Colúmbia.
O estudo apoiou-se num projecto norte-americano maior, que envolve 1000 mães com baixos rendimentos, chamado Baby’s First Years e que tem como objectivo analisar o impacto da redução da pobreza nos primeiros anos de vida. Neste caso, a pandemia da covid-19 atrapalhou os planos dos cientistas, e a equipa mediu a actividade cerebral numa amostra mais pequena de 435 crianças de um ano que participam nesse grande estudo.
“Pouco depois de terem dado à luz, as mães participantes foram agrupadas para receber ou uma grande oferta em dinheiro de 333 dólares por mês ou uma oferta nominal em dinheiro de 20 dólares por mês”, explica o comunicado de imprensa, adiantando ainda que as “prendas” foram entregues em cartões de débito, e as mães, a maioria das quais eram negras ou latinas, eram livres de gastar este dinheiro como quisessem, sem qualquer compromisso.
A neurocientista Kimberly Noble, que, além de autora deste artigo, é também uma das coordenadoras no projecto Baby’s First Years, nota que já sabemos que o cérebro das crianças se adapta às suas experiências, mas também observa que não é possível rotular essas diferenças.
“Todos os cérebros saudáveis são moldados pelos seus ambientes e experiências, e não estamos a dizer que um grupo tenha cérebros ‘melhores’. Mas, devido ao desenho aleatório, sabemos que os 333 dólares por mês devem ter mudado as experiências ou ambientes das crianças, e que os seus cérebros se adaptaram a essas circunstâncias alteradas”, observa.
A actividade cerebral foi medida usando electroencefalografia (EEG), uma técnica usada para registar a actividade eléctrica do cérebro e que permite olhar para a potência e frequência (as oscilações em diferentes regiões) desta actividade. As ondas cerebrais existem em frequências diferentes (delta, teta, alfa, beta e gama) que podem ser mais altas ou mais baixas.
“A investigação passada tem ligado a alta frequência – ou seja, rápida – da actividade cerebral ao desenvolvimento do pensamento e da aprendizagem. O estudo relata que as crianças cujas mães receberam 333 por mês tiveram mais actividade cerebral de alta frequência em comparação com as crianças cujas mães receberam 20 dólares por mês”, refere o comunicado.
Os bebés nas famílias que receberam a maior quantia de dinheiro “mostraram nos EEG mais média a alta frequência nas bandas alfa, beta e gama”, especificam os autores no artigo. No caso das frequências teta, a equipa refere que não foi possível detectar diferenças significativas.
As mudanças identificadas após as análises e testes realizados reflectem a adaptação ao ambiente, comprovando a esperada neuroplasticidade. Assim, com alguma cautela, os autores deste artigo referem que reuniram provas suficientes para concluir que existe “um impacto causal plausível das doações em dinheiro”.
Os cientistas sublinham ainda que “o padrão de actividade cerebral observado está associado ao desenvolvimento de competências cognitivas”. “Os padrões de actividade neural que observamos no grupo das dádivas de dinheiro elevado foram correlacionados com pontuações mais elevadas nas áreas da linguagem, cognitiva e socioemocional, mais tarde na infância e adolescência”, argumentam.
Seria incorrecto arriscar uma leitura simplista de “melhor ou pior” perante as diferenças detectadas que podem ou não ter um impacto no desenvolvimento cognitivo e comportamental das crianças. Até porque, para já, é também impossível dizer se as diferenças detectadas nos padrões de actividade cerebral se vão manter ao longo do tempo. Por fim, também fica por esclarecer o tipo de experiências específicas que terão influenciado de forma mais directa estas diferenças.
Outras investigações já em curso vão agora “examinar potenciais mecanismos, incluindo a forma como as mães gastaram o dinheiro, e como é que ter mais dinheiro pode ter alterado os comportamentos parentais, as relações familiares e o stress familiar”, confirma a equipa.
Apesar das limitações e das muitas incertezas sobre o como e porquê e também sobre o impacto destas marcas detectadas na actividade cerebral no futuro destas crianças, a equipa sublinha que este estudo “sem precedentes” deve servir como prova de que “as políticas antipobreza podem e devem ser vistas como um investimento nas crianças”. Porém, os investigadores também reconhecem: “Embora possa ser tentador tirar conclusões políticas, advertimos que as presentes conclusões dizem apenas respeito aos primeiros 12 meses de um projecto que analisa o impacto da transferência de dinheiro durante vários anos.”