12.1.22

Comissão vai investigar 72 anos de abusos sexuais na Igreja Católica

Cristiana Faria Moreira e Natália Faria, in Público on-line

Quantos crimes de abuso sexual de menores foram cometidos no seio da Igreja Católica portuguesa desde 1950 até à actualidade? Esta é uma das perguntas a que a comissão de investigação presidida por Pedro Strecht vai procurar responder até ao final do ano. Mas não é a única.

Quantas crianças foram sexualmente abusadas no seio da Igreja Católica portuguesa nos últimos 72 anos? Qual o perfil dos abusadores? E das vítimas? Onde ocorreram os abusos? E como é que isso mudou a relação dos portugueses com a Igreja? Estas são algumas das perguntas a que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja (CIEAMI) vai procurar responder até ao final deste ano.

O plano de trabalho está definido e os canais abertos: qualquer denúncia relativa a abusos sexuais de menores perpetrados no seio do clero português pode ser apresentada pelo número 917 110 000), pelo email geral@darvozaosilencio.org ou através do inquérito na página online https://darvozaosilencio.org. Do lado de lá, e já a partir desta terça-feira, estarão os membros do grupo presidido pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que gozarão de “total autonomia” para destapar a realidade dos abusos sexuais no seio do clero português desde 1950 até à actualidade.

“Não sabemos onde vamos chegar, mas podem contar connosco para não desistirmos”, prometeu Strecht, numa conferência de imprensa realizada esta segunda-feira para apresentar as metodologias de trabalho. Entre a análise de material publicado na imprensa, denúncias somadas na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, Instituto de Apoio à Criança e Procuradoria-Geral da República, e documentos guardados nos arquivos da Igreja Católica, além da auscultação das vítimas ou testemunhas, a CIEAMI propõe-se investigar tudo quanto possa ter acontecido em Portugal desde 1950 até à actualidade, num arco temporal em tudo semelhante ao escolhido em países como França e Alemanha, que desencadearam investigações semelhantes.

O primeiro semestre deverá ser dedicado à recolha de denúncias e à análise documental. No final de 2022, deverá surgir o primeiro relatório. Neste, a equipa procurará ir além da mera recolha quantitativa dos casos ocorridos. “Queremos saber que características têm esses abusos, se se repetem, se há perfis de vítimas, de pessoas abusadoras, de locais de abuso”, adiantou a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida. De caminho, esta membro da CIEAMI, a par do ex-ministro da Justiça Laborinho Lúcio, do psiquiatra Daniel Sampaio, da assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e da cineasta Catarina Vasconcelos, vai querer também estudar a forma “como evoluiu a relação dos portugueses com a Igreja Católica”.

De entre as certezas, destaca-se a de que as denúncias que não tenham prescrito e sejam passíveis de investigação serão encaminhadas para as autoridades, nomeadamente para a Procuradoria-Geral da República e Polícia Judiciária. “Não estamos a fazer uma avaliação criminal. Nós estamos a fazer um estudo”, adiantou Laborinho Lúcio, explicando que o grupo “acordou” um critério objectivo para a definição dos casos de abuso que vão considerar no estudo: actos sexuais que têm relevância jurídico-criminal no Código Penal.

Apesar de não ter contactado directamente com os 21 bispos diocesanos, que respondem directamente perante o Vaticano, não detendo a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) poder para forçar a abertura dos respectivos arquivos, Strecht reiterou a sua convicção de que a equipa contará com “total disponibilidade” por parte da Igreja, isto é, poderá ir vasculhar nos arquivos diocesanos, quando e se necessário. E, sendo certo que o trabalho da CIEAMI vai ser custeado pela Igreja, por via de um orçamento “lúcido”, cujos números não chegaram, porém, a ser divulgados, Strecht reiterou que a autonomia face à hierarquia da Igreja é um pressuposto fundamental. De resto, porventura para reforçar esta mensagem, o presidente da CEP, D. José Ornelas, não esteve na conferência de segunda-feira. Nos anteriores encontros com os jornalistas, D. José Ornelas vincara já que a Igreja está predisposta a prestar contas e até a sancionar atitudes de encobrimento destes crimes por parte da hierarquia eclesial.

As metodologias explicitadas esta segunda-feira continuam, porém, a não responder cabalmente a algumas das interrogações que se prendem, conforme chegou a adiantar ao PÚBLICO Nuno Caiado, um dos subscritores da carta em que quase 300 católicos apontavam a urgência desta investigação histórica, com a indefinição quanto ao âmbito da investigação: “Vai ficar pelas dioceses ou vai também aos movimentos e às outras organizações da Igreja, dependentes ou não das dioceses?”.

Independentemente das dúvidas, a Igreja Católica portuguesa junta-se aos países que mostram estar a levar a sério o apelo do Papa para que enfrentem este flagelo. Esta segunda-feira, aliás, Francisco reiterou a sua “firme vontade” de esclarecer os casos de abusos sexuais cometidos no seio de instituições católicas, nomeadamente em centros educativos, paróquias e escolas sob a tutela da Igreja. “Trata-se de crimes sobre os quais deve haver uma firme vontade de esclarecer, examinando os casos individuais para apurar as responsabilidades, fazer justiça às vítimas e impedir que se repitam no futuro semelhantes atrocidades”, declarou.

Alemanha obriga dioceses a documentar casos

O mea culpa da Igreja segue, porém, algo descompassado nos diferentes países europeus. Na Alemanha, por exemplo, o arranque de 2022 já marcou a entrada em vigor da obrigatoriedade de todas as dioceses documentarem de forma “uniforme, transparente e vinculante” todas as denúncias de abusos sexuais imputados aos membros do clero alemão. Isto porque a investigação de 2018 no seio da igreja alemã, e que apontou 3677 casos de abusos cometidos por 1670 clérigos alemães ao longo de setenta anos, concluíra que a maior parte das dioceses vinha fazendo uma “gestão desastrosa dos arquivos”, o que contribuíra para o encobrimento destes crimes, tendo algumas chegado a destruir ou a adulterar documentos incriminatórios.

Em França o processo também segue avançado, tendo os bispos franceses decidido, em Novembro, alienar património para indemnizar várias do que se calcula terem sido as 216 mil vítimas de abusos cometidos por cerca de três mil sacerdotes, entre 1950 e 2020. Já em Itália, nada foi feito ainda para apurar a realidade histórica do clero nesta matéria.

Em Espanha, por seu turno, o problema só agora começou a ser investigado de forma alargada e não por iniciativa dos bispos espanhóis, mas pela Congregação para a Doutrina da Fé, que centraliza as investigações relacionadas com a pedofilia no universo católico. A investigação foi anunciada logo depois de o jornal El País ter depositado nas mãos do Papa Francisco um relatório de 358 páginas contendo denúncias deste tipo de crimes envolvendo 251 membros do clero espanhol.

A interpelação directa do jornal ao Papa deveu-se à recusa dos bispos espanhóis assumirem a dianteira na investigação do seu passado histórico, apesar de, desde que aquele jornal criou um email específico para este tipo de denúncias, terem sido tornados públicos mais de 600 casos, além dos 251 constantes do referido relatório. Na grande maioria dos casos, os crimes foram cometidos no seio de ordens religiosas.