Adriana Silva, professora convidada da Universidade do Minho, elenca desafios que o envelhecimento coloca e a que o sistema prisional não está a conseguir responder. Sexto capítulo de uma série sobre o que está a mudar entre grades.
Já lá vai uma década, a leitura do Handbook on Prisons fê-la pensar no envelhecimento em meio prisional. “Em Portugal não havia nada”, lembra. “Consultei as estatísticas e concluí que aumentava de ano para ano o número de reclusos mais velhos, mas esta era uma população invisível dentro do sistema prisional.” Entrevistou reclusas do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo - Feminino e reclusos do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira. E directores, técnicos, guardas prisionais. A tese “Envelhecer e viver na prisão: as vivências de reclusão de reclusos/as idosos/as” é de 2018, mas, integrada no Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho, Adriana Silva não largou o tema e ainda há pouco publicou um artigo sobre idosos e actividade em ambiente prisional.
Porquê 50 anos como idade a partir da qual uma pessoa é considerada idosa na prisão?
Estudos prisionais realizados, nomeadamente nos EUA, referem que este será um limiar etário mais adequado para o estudo do envelhecimento na prisão, partindo da hipótese de que na cadeia os/as reclusos/as estão sujeitos a inúmeros processos que os podem tornar vulneráveis a uma aceleração do envelhecimento a nível físico, de 10 a 15 anos em relação à sua idade cronológica.
O incremento é um mero reflexo do aumento da esperança média de vida ou há outras razões?
Este aumento deve-se ao aumento da esperança média de vida, mas não só. Deve-se muito ao endurecimento das penas de prisão e ao endurecimento das medidas de flexibilização, nomeadamente, a liberdade condicional.
Esta população devia ser vista como especial pelo sistema prisional?
Não diria especial, mas como uma população com necessidades próprias decorrentes da idade e do processo de envelhecimento. O envolvimento dos/as reclusos/as idosos/as nas actividades prisionais é muito circunscrito pois não são adequadas à sua idade e às suas capacidades físicas. Tive um recluso que me contou que abandonou a escola na prisão por não conseguir estudar na cela. “Tem pouca luz”, referiu. Há quem não faça ginástica devido aos seus problemas físicos e aos obstáculos que encontra na prisão, como escadas. Há quem não trabalhe devido ao excesso de ruído no ambiente. Isso significa que passam toda a manhã fechados na cela e durante a tarde estão no pátio, sentados, a jogar às cartas ou simplesmente a conversar. Isso não é um envelhecimento saudável.
Há os primários, que vão parar à prisão numa fase tardia da vida, e os reincidentes, os chamados criminosos de carreira, e os que são condenados a penas longas e envelhecem lá…
As motivações dos/as reclusos/as idosos/as para a entrada no mundo do crime acentuam a perda de papéis sociais que muitas vezes acontece com a entrada na reforma, levando a isolamento, fragilidades emocionais e incertezas económicas face ao futuro.
Vivem um dia de cada vez, sem fazer grandes planos. Disse-me um recluso que a cada dia “rasga mais um dia do calendário”. Isto tem um duplo significado: é menos um dia que falta para ser libertado e menos um dia que ele tem para viver. Adriana Silva
Encontrou uma tipologia que distingue homens de mulheres. No caso delas, é mais homicídio (companheiro/marido) e tráfico de estupefacientes. No caso deles, é mais homicídio (familiares, vizinhos, sócios) e abusos sexuais…
No caso das mulheres primárias, o tráfico de estupefacientes pode ser praticado na esfera doméstica, assegurando aquilo a que a antropóloga Manuela Ivone Cunha chama ‘retaguarda logística e doméstica’. Esta população advém, na sua maioria, de estratos sociais desfavorecidos, representando um segmento da população pobre. Muitas das que cometeram homicídio contra os companheiros tiveram vidas pautadas pela violência doméstica e não dispunham os recursos suficientes para sair dessa situação. No caso dos homens, o homicídio cometido contra companheiras e contra vizinhos pode, em parte, ser explicado pela entrada na reforma e pela perda dos papéis sociais.
Ao que se depreende da sua tese, a idade molda a forma como encaram a entrada na prisão, os anos passados na prisão e a saída da prisão. Logo à partida, há mais conformismo?
O conformismo foi a categoria que mais emergiu dos discursos dos entrevistados quando confrontados com o passar dos anos na prisão. Isso pode ser explicado recorrendo à literatura. Alguns estudos efectuados em Portugal apontaram para conformismo com o processo de envelhecimento. Posto isto, e face ao que os dados vieram a mostrar, pode concluir-se que o conformismo com o processo de envelhecimento é vertido no conformismo com a reclusão.
Da mesma forma que encaram o envelhecimento com um processo do qual não podem fugir, compreendem que a reclusão tem de ser vivida. Vivem um dia de cada vez, sem fazer grandes planos. Disse-me um recluso que a cada dia “rasga mais um dia do calendário”. Isto tem um duplo significado: é menos um dia que falta para ser libertado e menos um dia que ele tem para viver.
Não encontrou nenhuma actividade específica, embora os mais idosos possam frequentar a biblioteca, as artes ou a ginástica. Que actividade específica poderia ser?
Eu não encontrei [ao fazer a tese] nenhuma actividade ajustada às capacidades e limitações dos reclusos idosos. As actividades prisionais e os programas educacionais e de formação existentes nos estabelecimentos prisionais são elaborados sem terem em conta as características da população idosa.
O que é mais importante? Criar ocupação apropriada, ajustar os serviços clínicos, adequar os espaços à mobilidade reduzida, tudo isso?
Acho que os reclusos idosos têm óptimos cuidados de saúde. Alguns possuem melhores cuidados de saúde na prisão do que fora, na medida em que o acompanhamento é mais presente e vigiado dentro do sistema prisional. Seria importante implementarem políticas que colmatassem os obstáculos físicos, como as escadas, e as condições de vida na prisão, como o frio e a falta de luz ou o excesso de ruído.
Também fala no medo da morte dentro da prisão. Surpreendeu-a o significado que atribuem à possibilidade de morrer na prisão?
Era um dado que já esperava encontrar uma vez que a maioria dos estudos internacionais sobre reclusos idosos menciona isso. E temos de concordar que morrer na prisão é muito diferente de morrer no meio livre. Os/as reclusos/as admitem que essa possibilidade surge no seu pensamento com significados negativos, pois morrer na cadeia é morrer sozinho, sem a família, sem possibilidade de se despedirem. E preocupam-se com os efeitos negativos que isso teria na sua família. Morrer atrás das grades seria uma vergonha. Disse-me um recluso: “Eu penso nos sentimentos dos meus filhos ao dizerem: ‘O meu pai morreu na cadeia.’ Seria um trauma para eles.”
A certa altura escreve que, à saída da prisão, estas pessoas têm de lidar com o estigma da prisão, mas também com o da idade. O que é preciso mudar para que a reinserção destas pessoas seja mais eficaz?
O tema da reinserção é muito complexo e de difícil resposta. Esta população é esquecida no sistema prisional porque estes reclusos/as não dão problemas. O que mais me preocupa são os desafios que os reclusos idosos colocam ao sistema prisional e que têm sido ignorados por esta população ser invisível. A verdade é que o estatuto de recluso se sobrepõe sempre ao estudo de idoso.
A propósito das constelações familiares que existem nas prisões associadas ao tráfico, questiona-se: quem são os seus cuidadores após a libertação? Esse é um aspecto que tem de ser afinado?
Sim, esse seria um aspecto a ter em conta. Muitos têm necessidades especiais relacionadas com problemas de saúde e limitações físicas, precisando de cuidados, podendo não ter, fora da prisão, cuidadores. Isto poderá ser potenciado, nalguns casos, pela quebra de relações familiares durante a reclusão e noutros casos pela existência de uma reprodução do crime na família. Há famílias inteiras presas.
A maioria dos/as reclusos/as idosos relataram que existem relações de solidariedade da parte da restante população prisional. As reclusas com limitações físicas são auxiliadas pelas companheiras. Adriana Silva
Algumas também se identificam como cuidadoras de pessoas que têm cá fora….
Uma das preocupações mais prementes das reclusas é a separação da família. Algumas idosas, até à entrada na prisão, cuidavam de netos e/ou cônjuges e esse papel teve de ser imputado a terceiros ou deixou de ser exercido. Isto vai ao encontro do trabalho da socióloga Rafaela Granja: os/as reclusos/as idosos/as atribuem sentido à sua ausência do meio doméstico, julgam que a sua presença era primordial para o equilíbrio familiar.
E quem cuida dentro da prisão?
A maioria dos/as reclusos/as idosos relataram que existem relações de solidariedade da parte da restante população prisional. As reclusas com limitações físicas são auxiliadas pelas companheiras. Disse-me uma delas: “Temos aqui uma que anda com um andarilho. Vamos buscar o tabuleiro para ela pôr a comidinha, pomos o tabuleiro em cima da mesa, que as guardas não fazem nada disso, somos nós. E fazemos limpeza à cela.”
Há um grande respeito da parte da população prisional pelos reclusos mais velhos. Um dos dados mais significativos que encontrei é o facto dos/as reclusos/as idosos/as funcionarem como elemento de consenso e mediador de conflitos junto da restante população prisional, principalmente dentro da população mais jovem. Nesse sentido, não reproduzem as ideologias que vigoram na sociedade, em que os idosos são vistos como um entrave e vítimas de violência.
Um outro dado importante é que os reclusos idosos se afastam muito de situações que possam originar conflitos, daí muitas vezes as suas relações prisionais serem com a população mais velha. Daqui resulta que não são promovidas as relações intergeracionais que são tão necessárias a fim de evitar o isolamento da população idosa.
E os guardas? Estão sensibilizados para as questões do envelhecimento?
Os reclusos idosos têm um bom comportamento prisional, por isso as relações com os guardas prisionais são isentas de conflitos e tensões, sendo baseadas no respeito, respeito esse que é recíproco da parte dos guardas prisionais.
Há países que avançaram para prisões geriátricas. E países que optaram por alas geriátricas dentro das prisões. Qual é a sua opinião sobre isso? Que vantagens/desvantagens vê em cada uma dessas opções?
A literatura internacional não é consensual. Os autores a favor da “integração” argumentam que a prisão deve espelhar a sociedade. Se na sociedade há mistura de indivíduos, na prisão também deve haver. Ao estarem misturados com os jovens, fomenta-se a possibilidade de se desenvolverem relações intergeracionais. Há benefícios pois os/as mais velhos/as possuem um efeito calmante e apaziguador junto dos/as mais jovens em meio prisional. Quantos aos autores que defendem a “segregação”, os seus argumentos têm por base, por exemplo, a ideia de que se deve proteger os mais velhos do elevado ruído existente na prisão.
Os dados mostram que os/as reclusos/as idosos acham que há necessidade da criação de uma ala específica, mas têm a consciência do papel que desempenham no meio dos jovens (efeito calmante). Acham que esse papel não deveria ser seu. Percebem que o sistema prisional sabe que funcionam como um elemento de consenso e por isso não terão, como políticas institucionais, a criação de uma ala com base na idade.
Na minha opinião, mais do que fomentar o debate integração versus segregação, é necessário reconhecer e dar visibilidade a esta população prisional. Porque aquilo que se denota é que ainda é uma população que está muito na sombra por representar uma fatia que consideram pequena, mas acima de tudo por ter bom comportamento. É necessário que o sistema prisional olhe para esta população com as suas especificidades nas vivências prisionais, mas acima de tudo que olhe para esta população aquando da sua libertação. No caso desta população, a preparação para a liberdade ainda é mais desafiante e o sistema prisional não está a atender a isso.
Mas o que propõe para melhorar essa preparação para a liberdade?
Acima de tudo é necessário olhar para as condições sociais destes homens e mulheres pois, atendendo à sua idade, vão possuir um duplo estigma, o que criará ainda mais obstáculos à sua reinserção social bem-sucedida. Muitas vezes, as pessoas estiveram em reclusão e foram reabilitadas, mas quando chegam cá fora nada mudou: as condições económicas, familiares e sociais são as mesmas. Muitas vezes, as motivações que os levaram para o crime continuam lá. Tudo permanece igual. Sendo alguns destes reclusos já de idade muito avançada é necessário que tenham cuidadores fora da prisão.