12.1.22

Aumentos salariais em 2022 ainda estão a ignorar a escalada da inflação

Sérgio Aníbal, in Público on-line

A taxa de inflação homóloga em Portugal passou de -0,6% em Junho para 2,8% em Dezembro. Uma escalada repentina que, se os aumentos salariais continuarem, como na função pública, em linha com a inflação do passado, pode levar a perdas do poder de compra.

Com a inflação a disparar nos últimos seis meses e a aproximar-se dos 3% no final do ano passado, 2022 arrisca-se, se os preços não abrandarem e os salários não se adaptarem rapidamente, a ser de perda de poder de compra para muitas famílias. Com excepção do salário mínimo, são poucos ainda os sinais de que os aumentos das remunerações durante este ano possam, em muitos casos, responder integralmente à recente escalada da inflação.

O fenómeno não é exclusivo de Portugal e verifica-se também noutros países europeus e nos EUA: por causa principalmente dos preços dos combustíveis e do efeito dos estrangulamentos registados nas cadeias de distribuição internacionais, a taxa de inflação subiu para valores que já não se viam há muito tempo; mas, em simultâneo, o ritmo de subida dos salários, numa altura em que as empresas enfrentam um aumento dos custos com energia e matérias-primas, tarda em acelerar.

Em Portugal, a divergência entre a inflação e as actualizações salariais projectadas para este ano é particularmente evidente na Administração Pública. Os aumentos salariais de tabela definidos pelo Governo para a função pública em 2022 são de 1%. Foi um valor calculado pelo Governo com base na taxa de inflação média dos últimos 12 meses que se verificava em Novembro (1,2%), retirando ainda 0,1 pontos percentuais referentes à taxa de inflação negativa registada em 2020.

O aumento de 1% fica longe da taxa de inflação homóloga de 2,8% registada em Dezembro, não chega para compensar a taxa de inflação média de 1,8% que é prevista pelo Banco de Portugal para 2022 e nem chega sequer aos 1,3% atingidos pela taxa de inflação média na totalidade de 2021.

Com a fórmula utilizada, o aumento decidido para a função pública em 2022 acaba por levar em consideração apenas uma pequena parte da subida registada entretanto na inflação e, por isso, pode conduzir a perdas do poder de compra no decorrer deste ano.




Aumentos nas empresas

Este mesmo fenómeno pode estar a acontecer também no sector privado, onde, aliás, é comum os valores dos aumentos da função pública servirem como uma das referências nas negociações salariais. É verdade que, em vários sectores e empresas, o valor das actualizações salariais ainda está por decidir e acaba por ser implementado já com o ano a decorrer. E há ainda o salário mínimo nacional, que foi actualizado em 6% este ano, quando no ano passado tinha aumentado 4,7%.

Mas, para além do salário mínimo, os sinais que existem até agora apontam para um cenário em que os aumentos em 2022 são apenas ligeiramente superiores aos registados em 2021, sem que exista ainda um reflexo da aceleração da inflação entretanto registada.

Um inquérito feito a mais de 500 empresas pela consultora Mercer revelou, em Setembro, que a expectativa média de actualizações salariais, que tinha sido de 1,5% em 2021, é agora, para 2022, de 2%, o que significa que as empresas estão a apontar para apenas uma ligeira aceleração do ritmo de subida de salários, mantendo valores de aumentos em linha com aquilo que tem acontecido nos últimos anos.

Como assinala Marta Dias, reward leader (responsável pela área de remunerações) na Mercer Portugal e uma das autoras do estudo, a recente subida da inflação faz com que estas revisões dos níveis remuneratórios projectadas pelas empresas “possam não representar aumentos reais do salário”. “Penso que isso pode levar a que, por parte das empresas, haja uma reflexão sobre se os aumentos não terão de levar em conta a nova realidade ao nível dos preços”, afirma.

Marta Dias diz ainda que “o processo de revisão salarial nas empresas leva em consideração uma série de factores”. “Um deles é a inflação, mas há outros: os resultados da empresa, o desempenho do próprio trabalhador ou o posicionamento face ao mercado, o que significa, por exemplo, que quando há escassez de mão-de-obra no mercado, o valor aumenta”, afirma. São estes factores que explicam que se registem, no inquérito da Mercer, diferenças nas expectativas de aumentos salariais entre sectores. As actualizações são cerca de 0,75 pontos percentuais mais elevadas, por exemplo, nas empresas das tecnologias de informação, um dos sectores onde o dinamismo do mercado, com relatos de escassez de oferta de mão-de-obra, tem sido maior.

Também na contratação colectiva, os sinais de uma aceleração dos salários face ao último ano ainda não surgiram. Os valores médios dos aumentos anualizados presentes nos contratos colectivos de trabalho publicados têm-se mantido relativamente estáveis ao longo deste ano, principalmente quando se olha especificamente para sectores como o da indústria transformadora ou do comércio.

Também o valor médio da remuneração bruta calculada pelo INE, que registou variações anuais mais elevadas durante a crise (pelo facto de o aumento do desemprego ter sido mas evidente em profissões com salários mais baixos), tem vindo a regressar progressivamente ao longo de 2021 para variações mais próximas das registadas antes da crise, ligeiramente acima de 2%.
Negociações em curso

Para as centrais sindicais, uma coisa é certa: o aumento da inflação a que se tem assistido ainda não se está a reflectir nos salários negociados. Sérgio Monte, dirigente da UGT, lembra que parte dos contratos colectivos celebrados em 2021 teve como pressuposto o aumento de 0,9% anunciado para a Administração Pública, valor que fica muito abaixo da inflação prevista para 2022.

“Defendemos que todos os acordos que prevêem aumentos na ordem de 0,9% devem ser rapidamente revistos em linha com a inflação esperada, que é muito mais alta. Essa preocupação estará presente na nossa política reivindicativa para 2022”, adianta ao PÚBLICO, reconhecendo, contudo, a dificuldade em accionar as cláusulas de salvaguarda previstas em alguns contratos colectivos.

Também a CGTP ainda esta semana chamou a atenção para o “crescente desfasamento entre a evolução dos rendimentos e o aumento do custo de vida”.

“Esta subida da inflação apenas reforça a reivindicação da CGTP quanto à necessidade do aumento significativo do salário mínimo nacional e dos restantes salários”, destaca Rogério Silva, membro da comissão executiva da CGTP, alertando que “há um problema que dificulta este processo e que está relacionado com o bloqueio da contratação colectiva”.

As centrais sindicais têm identificado sinais preocupantes em alguns sectores, onde as empresas argumentam que o aumento dos preços das matérias-primas condiciona a margem para aumentos salariais.

Entre as empresas que responderam ao PÚBLICO à questão sobre qual seria este ano, a actualização salarial adoptada, as intenções reveladas são muito variadas, a começar pelo facto de algumas estarem ainda em processo de decisão e negociação e outras terem já o aumento definido.

A Altice diz que assinou com “um conjunto alargado das estruturas representativas dos trabalhadores da empresa” uma revisão do acordo colectivo de trabalho que inclui “aumentos salariais de 15 euros ao mês para todos os trabalhadores no activo”, sendo que “para os salários mais baixos é garantido um vencimento mínimo de 760 euros”.

O Lidl, por seu turno, garante que “a subida salarial média para todos os colaboradores em Portugal será de mais 3%”, assinalando ainda que o ordenado de entrada na empresa passou este ano “a ser de 750 euros (para uma carga horária de 40 horas), representando 12% de aumento face a 2021”.

O grupo Jerónimo Martins afirma que, nos salários de entrada, haverá aumentos entre os 7% e os 25%, garantido que estas alterações “implicam também revisões nos escalões superiores, de modo a manter a diferenciação salarial para as diferentes tipologias de funções”.

A Galp limita-se a dizer que, “como em anos anteriores, os aumentos salariais serão objecto de análise e ponderação, envolvendo também as associações sindicais”, enquanto a Vodafone apenas revela que “prevê efectuar aumentos salariais no decorrer do ano de 2022”.

Entre os bancos, a CGD diz que, com a actual proposta para tabela salarial, “o aumento ficará em 1,5%”, enquanto o BCP revela que “este tema está a ser tratado com os sindicatos”.

No Ikea, para além de assegurarem que o salário de entrada se situa acima do salário mínimo nacional, os seus responsáveis assinalam que “a revisão salarial é um processo individual, dependente da avaliação de desempenho do colaborador no ano anterior, a sua função, nível de experiência, inflação, entre outros factores”.

A EDP garante que “a empresa procura sempre recompensar o esforço e dedicação de todos os colaboradores, através de um pacote salarial e de um conjunto de benefícios atractivos e competitivos nos diferentes mercados onde se encontra presente”, ao passo que a PwC diz que, tal como aconteceu durante a crise, haverá prémios e actualizações salariais. “A massa salarial subiu, assim, no último ano, 5% e neste ano deverá subir mais outros 5%”, afirma a consultora.
Menos pressão sindical

A tendência de moderação salarial não é de agora. A última década tem sido, tanto em Portugal como no resto da Europa, de aumentos salariais ligeiros, em linha com níveis de inflação também muito baixos. Ao ponto de o Banco Central Europeu ter chegado a apelar, na sua tentativa de fazer sair a inflação dos níveis perigosamente baixos em que permaneceu durante vários anos até agora, para que as empresas avançassem com aumentos salariais mais generosos, que pudessem reforçar o consumo, conduzindo depois a variações de preços mais saudáveis.

Esse apelo não levou a uma alteração de comportamentos e têm sido várias as explicações dadas para esta persistência da moderação salarial, como os custos baixos trazidos pela globalização ou a redução do poder e influência dos sindicatos. Agora, é possível que estes factores continuem a fazer com que seja difícil que os salários se adaptem rapidamente à subida da inflação.

“Há 20 anos, a pressão sindical era maior. Desde aí, passámos por um período muito grande de inflação baixa e de erosão do poder sindical. E isso faz com que hoje em dia seja mais difícil ajustar salários de acordo com a inflação”, afirma o economista João Cerejeira, que vê como factores mais determinantes para uma eventual subida dos salários uma continuidade da descida do desemprego, que, reduzindo a oferta no mercado de trabalho, force as empresas a pagar mais pela mão-de-obra que necessitam.

Na actual conjuntura, contudo, o professor da Universidade do Minho vê um problema: “Esta inflação está também a fazer-se sentir nos custos suportados pelas empresas, por exemplo com matérias-primas e com combustíveis. E, portanto, como estão a ser penalizadas, a disponibilidade das empresas para pagar salários mais elevados também pode estar reduzida.”

Este tipo de discussão está em curso um pouco por todo o mundo, numa altura em que é generalizada (e, na maior dos casos, de forma mais acentuada do que em Portugal) a escalada da inflação. Nos EUA, onde a taxa de inflação homóloga já supera os 6%, o índice de custo de trabalho aumentou 4,2% em Setembro, menos que os 5,4% que se verificaram nesse mês na inflação.

Nas principais economias europeias, as negociações salariais já realizadas não revelam ainda um impacto significativo da subida de preços. Numa análise ao que está a acontecer em países como a Alemanha, Espanha ou Itália, a Standard & Poor’s afirma que “o ritmo das subidas de salários mantém-se abaixo dos ganhos de produtividade esperados para 2022”.

Esta é uma questão muito importante para o Banco Central Europeu, que, apesar de continuar a prever que a subida registada na inflação seja temporária, teme a ocorrência de uma espiral de salários e preços, em que, como resposta à subida da inflação, as empresas subam os salários, acabando depois, perante o acréscimo do consumo e em resposta ao seu próprio aumento de custos, por subir ainda mais o preço dos seus bens e serviços, fazendo disparar a inflação. Nessas circunstâncias, o banco central seria levado a actuar, subindo mais rapidamente as taxas de juro, para travar a inflação.

Um cenário deste tipo, para já, não se está ainda a materializar, tanto na zona euro como um todo, como especificamente em Portugal. O que, em contrapartida, pode implicar que 2022 seja, por causa da inflação alta, um ano de perda de poder de compra para muitos trabalhadores. Com Raquel Martins