7.1.22

Por uma transformação digital justa

Jorge Moreira da Silva, opinião, in DN

Apar das alterações climáticas e das questões demográficas, a digitalização representa uma das tendências globais com maior potencial disruptivo no curso da economia, da democracia e da sociedade. Ora, hoje estamos perante um momento verdadeiramente definidor dos contornos deste processo de digitalização: a pandemia acelerou a adoção de soluções digitais em todo o mundo; a evolução das tecnologias digitais, nomeadamente, no 5G, na inteligência artificial, na robótica e na internet das coisas, entrou numa nova fase; e surgiram novos padrões internacionais, como os princípios da OCDE para a regulação da inteligência artificial e a fiscalidade sobre as multinacionais digitais.

Mas, como sempre sucede com transformações desta magnitude, a digitalização tanto pode esbater como pode exacerbar as desigualdades dentro e entre países. É verdade que a digitalização foi uma autêntica tábua de salvação, durante a pandemia de covid-19, para muitos cidadãos - facilitou o pagamento de apoios sociais e de compensações às empresas, o acesso a cuidados de saúde e de educação e a manutenção de empregos. Entre 2019 e 2021, mais de 800 milhões de pessoas conectaram-se à internet pela primeira vez. Ao mesmo tempo, a pandemia, ao confirmar a nossa dependência do mundo digital, também expôs a enorme vulnerabilidade dos cidadãos com menor acesso às infraestruturas e às competências digitais.

Cerca de 2900 milhões de pessoas estão hoje excluídas do mundo digital e das respetivas oportunidades. Essa exclusão digital agrava as desigualdades e trava a mobilidade social. A grande maioria das pessoas desconectadas vive em países em vias de desenvolvimento (o acesso à internet na Europa é de 83%, enquanto em África é de apenas 29%), penalizando desproporcionalmente as mulheres (que têm um acesso 15% inferior ao dos homens). Mas os obstáculos no acesso à digitalização não resultam apenas da falta de redes de fibra ótica terrestre ou de acesso a banda larga móvel: cerca de 43% das pessoas com acesso à banda larga móvel não a utilizam por falta de literacia digital e pelos custos elevados dos pacotes de utilização de dados e dos dispositivos digitais. Sendo que a maioria dos países pobres não dispõem de condições (no apoio social e na formação) para reconverter uma força de trabalho amplamente informal para os novos setores digitais. Na ausência de políticas educativas, científicas, económicas e empresariais adequadas, aqueles países vão ficando para trás nas oportunidades proporcionadas pela massificação do comércio eletrónico e pela digitalização dos processos empresariais.

Contudo, as oportunidades e os riscos da digitalização ultrapassam as dimensões social e económica. As tecnologias digitais, que proporcionam uma maior participação dos cidadãos na política, também colocam novos riscos, nomeadamente, pelo uso indevido da inteligência artificial e do big data, nos planos do respeito pela dignidade da pessoa humana, do funcionamento da democracia e da perda de influência da comunicação social independente.

A digitalização é, assim, uma faca de dois gumes e é crucial, como sublinhado no recente relatório "Shaping a just digital transformation", produzido pela minha equipa na OCDE, que no plano global se avance em duas frentes. Em primeiro lugar, fazer do acesso a infraestruturas, tecnologias e competências digitais, nos países em vias de desenvolvimento, uma das maiores prioridades das políticas de cooperação para o desenvolvimento dos países doadores. Caso contrário, esses países ficarão ainda mais para trás. Em segundo lugar, atendendo aos novos riscos decorrentes de questões cada vez mais complexas - como a tributação das multinacionais digitais, a cibersegurança, a privacidade e proteção de dados, a desinformação e autocratização - é fundamental a harmonização das regras a nível global, ultrapassando ilusórias perspetivas soberanistas na digitalização. Mas a adoção desses padrões globais só será verdadeiramente inclusiva e eficaz se envolver, nesse desenho, a participação plena dos países mais pobres.



Diretor da Cooperação para o Desenvolvimento, OCDE