Eugénio Fonseca, opinião, in Público on-line
O que desejo é que as medidas previstas não sejam apenas um enunciado de boas intenções. Tenho a plena convicção de que isso não dependerá só do Governo, seja ele qual for, pois tem de ser um compromisso de todos nós, cada um assumindo a responsabilidade de acordo com as suas possibilidades.
Pelas preocupações com a pandemia talvez não se tivesse dado conta de que, a 29 de dezembro, foi publicada em Diário da República uma das medidas mais, para não dizer a mais importante, deste Governo. Uma medida pública que honra qualquer Governo. Foi, finalmente, divulgada a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP).
Fiquei satisfeito com a maioria das medidas que se pretende concretizar para se cumprir, fundamentalmente, um dos direitos humanos, mas também dar um bom contributo para se alcançarem alguns dos objetivos do desenvolvimento sustentável e se efetivar o Plano de Ação para o Pilar dos Direitos Sociais. Oxalá não venham a ser, como diz o adágio, “mais as vozes que as nozes”, ou ainda, “quando a esmola é grande, até o pobre desconfia”. O que desejo é que as medidas previstas não sejam apenas um enunciado de boas intenções. Tenho a plena convicção de que isso não dependerá só do Governo, seja ele qual for, pois tem de ser um compromisso de todos nós, cada um assumindo a responsabilidade de acordo com as suas possibilidades. Ninguém pode ficar de fora.
Apesar de o documento ter estado em discussão pública, durante algum tempo, ao que está plasmado na Resolução do Conselho de Ministros (184/2021), tem de ser fazer uma análise mais profunda que não cabe neste espaço. Realço, em linhas gerais, os aspetos que considero positivos e algumas reservas que mantenho.
Foram felizes as escolhas das áreas da saúde, educação, trabalho digno, habitação, desenvolvimento local, coesão territorial em que se fixam os seis eixos estratégicos, os indicadores e as metas.
Antes de mais, o país tem uma estratégia para um combate (prefiro o termo “erradicação”), a um dos seus maiores flagelos humanos e sociais. Finalmente, está assumido aquilo para o qual há muito vinha a chamar a atenção: jamais se teria alguma eficácia, com a eficiência que este tipo de problemas sociais exigem, com medidas avulsas e, a maior parte delas, concentradas num único ministério. Agora, está assumido que esta estratégia é “um instrumento de política pública com um conjunto de ações coerentes e articuladas”, estando prevista, para isso, a criação de “uma comissão interministerial de alto nível (CIAN)”, admitindo-se a possibilidade de “convidar a participar nas suas reuniões, quando tal se justifique, membros do Governo responsáveis por outras áreas governativas”. Mesmo assim, penso que deveriam fazer parte do CIAN os ministérios da Economia e da Justiça. Prevê-se ainda a criação da figura de um coordenador nacional, o único a ser remunerado, de uma comissão técnica de acompanhamento da ENCP e de um “fórum consultivo”.
Trata-se de aproveitar todos os recursos específicos já existentes e potenciá-los. Pode ficar, assim, garantida a solução de um erro, que já parecia crónico, que é o de se gastar mais dinheiro com as estruturas e os seus técnicos do que, propriamente, com os destinatários das medidas. É também importante a criação de “Fóruns Locais de Combate à Pobreza”. Preferiria, contudo, que se fizesse uma remodelação nas comissões locais de freguesia e nas redes sociais a nível concelhio para que tivesse sempre este objetivo como o fundamental, evitando-se a existência de mais uma estrutura. Agrada-me, ainda, o estabelecimento de metas e de tempos que serão monitorizados regularmente. Que não seja uma avaliação a partir de bonitos relatórios, mas presencial, com a auscultação permanente dos visados pelas medidas e dos que atuam no terreno. Serão aproveitados os programas já existentes e alguns serão sujeitos a reavaliação e aperfeiçoamento. Preferiria até que alguns mudassem de nome, pela estigmatização social que sofrem.
Foram felizes as escolhas das áreas da saúde, educação, trabalho digno, habitação, desenvolvimento local, coesão territorial em que se fixam os seis eixos estratégicos, os indicadores e as metas. São medidas públicas, mas que assentam a sua aplicação a nível local, cumprindo assim o princípio de intervenção social mais eficaz que é o da subsidiariedade. Quem está mais perto dos problemas conhece-os melhor e encontra soluções mais assertivas, mas sem coartar a possibilidade da participação de todas as organizações, mesmo as mais informais. Tenho pena que não se evidenciasse o contributo do voluntariado, que já deu provas mais que suficientes de ser imprescindível, na concretização do relacionamento de proximidade que muitas destas medidas exigem. Há uma porta aberta que são os chamados “Projetos de Adesão”, mas há uma reflexão a fazer sobre a missão do voluntariado nesta estratégia.
O problema maior para a concretização desta estratégia está na efetivação do Eixo 6, que é “Fazer do combate à pobreza um desígnio nacional”. Muitas vezes o tenho referido, empregando a designação, que funcionou no combate à covid-19, de um “Pacto de Regime”. Receio que, se outro partido político assumir o governo do país, esta estratégia seja adulterada ou mesmo “metida na gaveta”, como é frequente. Desejaria que, semestralmente, o Parlamento fizesse um “Debate da Nação” só sobre a pobreza e a avaliação desta estratégia e que não se deixasse de fora a missão de acompanhar e supervisionar que compete ao Presidente da República. Todos os relatórios mais significativos deviam ser sujeitos à sua apreciação.
Por fim, o problema maior é a mudança de mentalidades sobre a pobreza que esta estratégia exige. Sem se acreditar que é possível a erradicação da pobreza e que os pobres são vítimas de um sistema gerador de desigualdades, é difícil conseguir-se alcançar tão nobre desígnio.
Ontem já foi tarde, o presente e o futuro, nesta área tão sensível à construção de um desenvolvimento integral, têm de começar já. Recusar-se a fazer este caminho é violar um dos direitos humanos fundamentais. Caminhemos juntos e na mesma direção.
Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado