5.10.21

Mulheres sem abrigo são mais do que parece. Algumas identificam-se como mães, embora desacompanhadas

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Primeira tese de doutoramento sobre mulheres em situação de sem abrigo traça caminho percorrido até aquele ponto e mostra importância que atribuem às relações, sobretudo as de maternidade.

As mulheres em situação de sem abrigo não são tão poucas como parece: mais depressa encontram alternativas à rua e quando não o fazem tendem a camuflar-se. Muitas continuam a identificar-se como mães, apesar de não estarem acompanhadas pelos filhos.

A primeira tese de doutoramento feita em Portugal sobre mulheres sem-abrigo tem natureza exploratória e está escrita em inglês: Wome’s Homelessness and Housing Exclusion in the Northern Lisbon Metropolitan Area: An In-depth Exploratory Study.

É uma médica especializada em Gastrenterologia a autora desta tese de doutoramento em Ecologia Humana, defendida em Junho deste ano na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Chama-se Sónia Nobre e conta 45 anos.

Em 2011, durante a crise da dívida, começou a fazer voluntariado numa organização não-governamental, a Médicos do Mundo, na Área Metropolitana de Lisboa. Nunca lidara com pessoas sem tecto. As rondas que fazia prestando cuidados de saúde primários levaram-na a questionar-se sobre tudo aquilo. “Até que ponto a intervenção é eficaz?”

A medicina não lhe dava todas as respostas. Percebendo a importância dos contextos, procurou-as nas ciências sociais e humanas. Em 2014, suspendeu a actividade médica para se dedicar ao doutoramento.

Chegar às mulheres era, por si só, um processo lento. Nessa busca, percorreu as ruas de Lisboa com “muita persistência”. Também pediu ajuda a várias instituições que trabalham no terreno.

Fixou-se em 34 mulheres dos 18 aos 68 anos. Algumas viviam na rua, outras em centros de alojamento temporário. Queria percebê-las, conhecer as suas rotinas, o seu quotidiano. “Ficava a conversar com elas de forma informal. Acompanhava-as ao café. Fazia-lhes companhia.”

O trabalho, feito entre 2015 e 2018, combina a etnografia com entrevistas biográficas aprofundadas. Traça caminhos percorridos até à situação de sem abrigo, estratégias usadas para lidar com a situação, as representações, o acesso à habitação, as percepções sobre o futuro.
Conceito mais abrangente

Sónia Nobre não quer que se pense que “as mulheres em situação de sem abrigo são poucas e estão na rua”. Isso é só um estereótipo.

O conceito adoptado por Portugal é restrito. Os últimos dados conhecidos, apurados em Dezembro de 2019, apontam para 4340 sem-abrigo, isto é, pessoas a viver em centros de alojamento temporário, alojamentos específicos para pessoas sem casa, quartos pagos pelos serviços sociais. E 2767 pessoas sem tecto, isto é, a viver no espaço público (ruas, jardins, viadutos, estações de transportes públicos), locais precários (carros abandonados, vãos de escada, casas abandonadas). Num caso e noutro, as mulheres representavam apenas 20%.

A investigadora adoptou a “Tipologia Europeia sobre Sem-Abrigo e Exclusão Habitacional”. O conceito abrange, por exemplo, os centros para mães solteiras e as casas abrigo para vítimas de violência doméstica. Para que se tenha uma noção da volta que isso dá aos números globais bastará saber que no segundo trimestre deste ano havia 718 mulheres e 16 homens nas estruturas da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

A investigadora refere outras situações de sem abrigo camufladas que mais depressa são protagonizadas por mulheres: passar uns tempos em casa de familiares ou amigos; aceitar trabalhar como empregada interna; precipitar a coabitação com um namorado só para ter onde morar. “São soluções em regra temporárias, precárias e eventualmente inseguras, mas é, muitas vezes, quando se esgotam estes recursos informais que as mulheres recorrem aos serviços de apoio”, diz. A situação pode ir de casas de familiares para quartos, centros de alojamento, rua.

Mesmo quando pernoitam no espaço público, as mulheres tendem a ser menos avistadas. Um número significativo (26 em 34) das que Sónia Nobre estudou esteve algum tempo sem tecto. Todas empregavam estratégias de invisibilidade. “Pernoitam em sítios escondidos, pelo mínimo tempo possível, habitualmente sozinhas.”

Nem só a segurança as levava a fazer um esforço de ocultação. Disfarçar é uma forma de conservar alguma dignidade. Sónia reparou como cuidar da aparência e da higiene pessoal é importante para elas. “Quem olhasse para a maioria delas não as reconheceria como sem-abrigo”, acredita. “Apresentam-se como qualquer pessoa, de modo convencional. Desafiam a imagem convencional da pessoa que está na rua, de aparência descuidada, suja, carregada de pertences. Ficam, por exemplo, no aeroporto, numa sala de espera de hospital, num carro.”
Culminar de longo percurso

A investigadora também quer desfazer a ideia feita de que “as mulheres em situação de sem abrigo são todas toxicodependentes, envolvidas em trabalho sexual, com doença mental”. “Quando nos aproximamos o suficiente para conhecer as suas histórias de vida percebemos o quanto essa imagem é redutora, o quanto a situação de sem abrigo é condicionada por factores estruturais, como a pobreza persistente ou o acesso à habitação.”

Procurando o que precipitou a situação, Sónia Nobre encontrou “dificuldades em casa, saída de lares de crianças e jovens em perigo, fim de relações amorosas, violência doméstica, despejo ou risco de despejo, uso de substâncias, saída da prisão”. Através das entrevistas biográficas, foi percebendo como aquilo era “o culminar de circunstâncias e eventos complexos e entrelaçados”.

Muitas das suas entrevistadas viveram episódios dramáticos logo no início das suas vidas que “minaram os seus percursos”. A morte de familiares, a negligência, a violência doméstica, o abandono escolar precoce. Que rede informal de apoio tem quem cresceu numa família desestruturada ou numa instituição? A que salário pode aspirar quem nem fez a escolaridade obrigatória?

A falta de conhecimento sobre os serviços disponíveis é uma barreira. Muitas pessoas nem sabem que, vendo-se na iminência de ficar na rua, podem ligar para a linha de emergência social (144).
Mães não acompanhadas

Não se identificam como sem-abrigo, as mulheres que participaram neste estudo. Admitem não ter habitação, mas não deixam que isso as defina. “Elas articularam uma infinidade de experiências e papéis através dos quais se foram definindo, incluindo ser mães, avós, filhas, esposas, amigas, trabalhadoras, ajudantes de outros, vítimas de violência doméstica, ex-reclusas, toxicodependentes e por aí fora.”

Nas conversas que iam tendo com a investigadora, falavam amiúde nas suas ligações. “As suas fontes de motivação e alegria passam amiúde pelas relações interpessoais, pelo anseio de retomar contacto ou de voltar a viver com os seus filhos”, enfatiza Sónia Nobre.

Muitas (26) identificam-se como mães. Algumas (13) até têm filhos menores à guarda de familiares ou instituições. “Tinha havido uma separação por motivos que frequentemente envolveram a falta de recursos económicos, habitacionais, de apoio informal”, descreve. “Quando entram nos serviços, o seu estatuto de mães não é reconhecido e, por conseguinte, as suas necessidades relacionadas com a maternidade não são tidas em conta.”

Essa falta de reconhecimento de que são mães não acompanhadas prejudica a sua inclusão. “A resposta habitacional para quem tem crianças é mais rápida. Quem não tem crianças não tem prioridade. Isto é perverso”, ajuíza. “Estas mulheres muitas vezes separaram-se dos filhos por não terem condições para ficar com eles em contextos de violência doméstica. Depois não conseguem ser apoiadas para se reunir com eles.”

Mesmo sem filhos, algumas não abandonam o papel. Diz a investigadora que nisso as mais velhas se distinguem das mais novas. Tendem a permanecer nos abrigos por períodos mais longos pelo baixo rendimento, pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, pela protecção social insuficiente, pela falta de habitação acessível, mas também por serem mais propensas a desempenhar o papel de ajudantes ou cuidadoras das outras.

Recomendações

A investigadora conhece bem a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2017-2023. Em seu entender, não presta atenção às necessidades específicas das mulheres. Faz recomendações muito “focadas na prevenção da situação de sem-abrigo no feminino e em intervenções destinadas a responder às necessidades específicas das mulheres nesta situação”.

Na prevenção, receita “reduzir a pobreza e a desigualdade de género, reforçar os meios de protecção social, ter uma política habitacional favorável”. No plano da intervenção, reclama medidas concretas.

“É preciso mais informação sobre os serviços e os apoios disponíveis”, aponta Sónia Nobre. “É preciso considerar subgrupos nas políticas de intervenção, nomeadamente mulheres jovens e idosas. É preciso agir em pontos de maior vulnerabilidade, como despejo, violência doméstica, saída de estruturas de acolhimento para crianças e jovens e de estabelecimentos prisionais”, prossegue. “É preciso que os políticos se comprometam com a aplicação efectiva do que está preconizado na estratégia, incluindo soluções habitacionais estáveis e seguras.”

O estudo põe em evidência a diferença entre mulheres de idades distintas: “As necessidades e prioridades de uma jovem que aspira a formação, emprego e a reunir-se com seus filhos menores são diferentes das de uma mulher de meia-idade que tem uma história de consumo de drogas, está envolvida em sexo de sobrevivência, tem problemas de saúde, ou as de uma mulher idosa com incapacidade permanente que não tem recursos pessoais ou financeiros, excepto a prestação para a inclusão”, lê-se.

A tese demonstra que, apesar de separadas dos filhos, a maternidade integra a “identidade” destas mulheres, é “uma fonte de motivação e de propósito de vida”. Defende-se então que os serviços devem reconhecer a condição de mães dessas mulheres e apoiá-las nos seus esforços para fortalecer ou restaurar esse papel.

A investigação também enfatiza a relação entre violência doméstica e sem-abrigo. Tradicionalmente, os dois fenómenos têm sido tratados separadamente. Faz a defesa da importância de aumentar a conscientização de quem trabalha nesta área sobre esta relação para que estas mulheres não vão parar à rua e para que se possa “responder de forma mais adequada às necessidades das vítimas em termos de oferta de habitação segura e sustentável”.

Na tese, Sónia Nobre chama ainda a atenção para a relevância do acompanhamento. “Para algumas, o apoio personalizado e contínuo após a saída de um abrigo, combinado com soluções habitacionais diversas e sustentáveis ​​e uma fonte de rendimento adequada e confiável (por exemplo, por meio da integração no mercado de trabalho, embora nem todas as mulheres sejam empregáveis), pode garantir que continuam abrigadas e não embarcam num ciclo de retorno.”