Cláudia Monarca Almeida, in Expresso
“Tenho quatro filhos e não consigo pagar a renda”, “São noites inteiras sem dormir”: o desespero das famílias em risco de despejo
A pandemia suspendeu temporariamente os despejos em Portugal, mas os processos continuam “a decorrer em tribunal e a acumular-se na porta de saída”. Sem apoios ou alternativas, teme-se que o fim do regime excecional, ainda sem data prevista, “atire muitas famílias para a rua”. Famílias que contaram ao Expresso as dificuldades que atravessam e os receios de perderem o direito a uma habitação condigna.
“Eu bem procuro outras casas, mas nunca encontro mais barato. É sempre mais caro. Neste momento não consigo juntar nem para um mês de caução. Se o meu senhorio me conseguir tirar daqui, não vejo saída para mim.” Ana Martins é de Lisboa e tem a vida num reboliço. Emigrou para os EUA, de onde voltou “inesperadamente” em 2015 ficando a morar com os dois filhos na casa onde cresceu com a avó. O divórcio pôs um ponto final no casamento e também no pagamento da hipoteca, o que a forçou a declarar insolvência.
Dois anos mais tarde, mais uma reviravolta. Em 2017 a avó adoeceu e Ana foi "forçada" pela restante família a sair de casa. “Consegui uma habitação de 580 euros, a Santa Casa comprometeu-se em ajudar-me com 350”, conta. Dois meses depois soube que estava novamente grávida e pediu abono pré-natal, que invalidou o anterior apoio social.
No entanto, continuou a receber o FES (Fundo de Emergência Social) até 2018 e conseguiu mudar-se para uma casa com uma renda de 500 euros. Trabalhou num supermercado e num hospital, mas a pandemia puxou-lhe o tapete. Ana Martins esperava passar a efetiva, em vez disso perdeu o emprego.
“Até aí estava tudo descontrolado, mas sempre dava para controlar alguma coisa. Com isto da pandemia fiquei desempregada e a minha situação, que já não era boa, piorou”, afirma. Agora, já com quatro filhos menores a seu cargo, tem quatro rendas em atraso e, embora “o senhorio até seja bastante acessível”, está na iminência de ser despejada.
“É extremamente difícil, porque tudo isto mexe muito psicologicamente e deixa-me com receio que me retirem os meus filhos por muito que eles estejam bem na escola e saudáveis”, relata. “Eu meço 1,72 e o meu peso normal seria 60 quilos, mas já estou com 53. Estes problemas afetam. Não sei como será o dia de amanhã.”
A PANDEMIA COMO TÁBUA DE SALVAÇÃO
A poucos quilómetros de distância, em Queluz, “Pedro” (nome fictício), vive uma situação semelhante. Os problemas financeiros da família começaram com a falência do restaurante da mulher durante a crise financeira de 2008, a que se juntaram dívidas dos clientes num outro negócio de prestação de serviços. O funcionário público conseguiu renegociar a dívida que acumulou nas Finanças através do Plano Especial de Redução do Endividamento ao Estado e Segurança Social (PERES), mas “com tantas despesas houve um mês que resvalou”.
A casa de Queluz é há mais de 40 anos o lar da mãe de 78 anos e do irmão mais novo, de 44, que tem esquizofrenia e recebe pensão por invalidez. Como a habitação foi comprada por “Pedro”, viria a ser leiloada pelas Finanças em 2018. O funcionário público ainda conseguiu garantir um contrato de arrendamento até 2019, mas findo esse tempo o novo dono recusou renegociar contrato e exigiu a casa “para habitação própria”.
“A pandemia foi o que nos salvou”, afirma. As moratórias excecionais aprovadas para fazer frente à pandemia permitiram-lhes ficar - até agora - na casa.
PROCESSOS EM TRIBUNAL SÓ ESTÃO À ESPERA QUE A LEI DEIXE DE ESTAR EM VIGOR
A situação da família de “Pedro” está, neste momento, suspensa ao abrigo da Lei 1-A/2020, Artigo 6.º-E, uma das primeiras medidas aprovadas para fazer frente à pandemia: este “regime processual excecional e transitório” suspende os despejos sempre que o arrendatário “possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
No entanto, a medida é temporária, não se sabendo quando poderá ser revogada, como já aconteceu com outra lei semelhante - a Lei 1-A/2020, Artigo 8.º, que deixou de estar em vigor a 30 de junho, e que pressupõe que os senhorios que não queiram renovar o contrato possam exigir a casa de volta e avançar com ações em tribunal caso o arrendatário não a entregue.
“A única coisa que está suspensa é o ato final do despejo. Portanto, os despejos estão a decorrer em tribunal e estão a acumular-se na porta de saída. Nós estamos muito preocupadas que, se isto for levantado, haja um grande aumento dos despejos e que muitas famílias sejam atiradas para a rua sem qualquer solução, porque não temos alternativas”, afirma Rita Silva da Associação Habita.
Não se sabe ao certo quantas pessoas estão nesta situação. Questionado pelo Expresso, o Balcão Nacional do Arredamento refere apenas que “entre 2018 e 2020, foram emitidos 2704 títulos de desocupação do locado” em todo o país.
Habitação. Porque falha a renda vitalícia?
Contudo, e apesar da suspensão ainda em vigor, a Habita tem denunciado situações de despejo ilegais. Segundo o coletivo, em março deste ano, cinco famílias (incluindo pelo menos sete menores) foram despejados ilegalmente do Bairro do Catujal, em Loures. No final desse mês o tribunal revogou a ordem, reconhecendo a sua ilegalidade, mas o senhorio - que alegadamente quis aumentar a renda de 200 para 400 euros e recusou renegociar os contratos - recorreu da decisão. Quase oito meses volvidos, as famílias continuam sem poder regressar às respetivas casas.
“O Estado não está a conseguir dar respostas adequadas às pessoas que estão a ser despejadas, incluindo famílias e crianças”, critica Rita Silva. “[As famílias do Catujal] foram parar primeiro ao Estoril, depois Vila Franca. As famílias foram, em seguida, dispersas por várias pensões e hostels na Amadora e em Lisboa, duas delas acabaram por ser enviadas para Idanha, na zona de Belas. As crianças estão a ser transferidas de semana a semana de um lado para o outro. Em idade escolar, algumas ficaram a mais de duas horas da escola e não havia transporte. O Estado não tem a capacidade de dar a mínima estabilidade a estas crianças, como não tem para dar a outras pessoas - com doenças, por exemplo.”
POR ENTRE OS PINGOS DA BUROCRACIA: A DIFICULDADE EM CONSEGUIR APOIOS E OS PREÇOS “IMPENSÁVEIS” PARA QUEM PROCURA ALTERNATIVAS
Mesmo querendo desocupar as casas onde residem atualmente, “Pedro” e Ana queixam-se do mesmo fenómeno: os preços atuais do mercado de arrendamento. Segundo o boletim “Estatísticas da Construção e Habitação” do INE, em 2020 a renda mediana dos novos contratos celebrados atingiu os 5,61 €/m2, um aumento de 5,5% face ao ano anterior. “O valor das rendas situou-se acima do valor nacional nas sub-regiões Área Metropolitana de Lisboa (8,57 €/m2), Algarve (6,63 €/m2), Área Metropolitana do Porto (6,12 €/m2) e Região Autónoma da Madeira (5,99 €/m2)”, lê-se no documento.
“Pedro” relata que as únicas zonas onde consegue encontrar casas com rendas a um preço acessível são isoladas e deixariam a mãe sem forma de se deslocar para ir ao supermercado e sem o apoio médico e familiar que necessita. “As outras rendas é tudo 350 euros, 400 euros e por aí fora. Além de que pedem duas cauções, mais a renda. Isto é impensável para pessoas que estão em crise.” Os únicos contratos disponíveis são de um ano, o que não lhes dá quaisquer garantias de que não tenham de repetir o processo de relocalização anualmente, um custo impossível de suportar.
“Pedro” também se queixa da ação do Estado. “Recorri a tudo e mais alguma coisa. [Todos] dizem que realmente ela [mãe] está em condições de usufruir das casas de renda social, mas não dão resposta.”
A mãe de "Pedro" espera desde 2015 por um alojamento concedido pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). A Câmara de Sintra reconheceu, igualmente, que estão reunidas as condições para o acesso ao arrendamento social, mas justifica o atraso com a falta de casas.
Pelo caminho “Pedro” acumulou 300 páginas de documentos e lamenta a enorme dificuldade que tem tido em chegar à fala com os técnicos responsáveis. Relata situações em que os funcionários recusaram dar-lhe os nomes dos responsáveis ou em que foi atendido num hall de entrada por uma rececionista que ia servindo de mensageira entre a família e o departamento competente.
“Uma pessoa farta-se de lutar para se conseguir fazer ouvir e exigir os seus direitos, mas depois fecham-lhe a porta e as janelas. Ficamos sem rede, não sabemos onde vamos cair. São noites inteiras sem dormir, é choro, é muita coisa. Isto pode cair tudo de repente. É muito desesperante.”
“PARA RENDA ACESSÍVEL RECEBO POUCO, PARA CASAS CAMARÁRIAS RECEBO MUITO”
Também Ana aponta o dedo às instituições que deveriam ajudar. “[Numa reunião pública da Câmara de Lisboa] prometeram resolver o meu caso, mas foram só promessas.” Queixa-se que até ao momento, o único avanço no seu processo foi o encaminhamento do caso para a junta de freguesia, através do qual recebe já o FES.
Por outro lado, acumula “cinco anos de inscrições para ter acesso às casas da Câmara, sem sucesso”. No entanto, refere que o facto de estar insolvente já lhe “anula um certo tipo de requisitos” para receber apoios. “Para renda acessível recebo pouco, para casas camarárias recebo muito, mesmo recebendo só o subsídio de desemprego. Onde quer que vá contabilizam-me os abonos, mas os abonos não dão para tudo e não são para sempre. A minha filha mais nova tem 20 meses. O apoio é até aos 36 meses e eu não vejo que a situação vá melhorar.” Entretanto, no início do mês, conseguiu um emprego, mas ficará a receber o salário mínimo (mais 125 euros do que recebia pelo fundo de desemprego).
Contactada pelo Expresso, fonte oficial da vereação da habitação da Câmara Municipal de Lisboa (do executivo que estava no poder aquando da reunião mencionada, e que entretanto cessou funções) afirma que a CML tem “consciência que o final da moratória pode agravar problemas de direito à habitação”. A mesma fonte refere ainda que a vereação tentou encontrar “soluções específicas adequadas para cada caso”, cabendo a cada família optar ou não por aceitá-las.
Ana recusa-se a voltar a ser ajudada pela Santa Casa, depois de em 2017 ter decidido desvincular-se desse apoio: “Pediam-me imensa documentação, não me estavam a pagar nada e começaram a ser muitos deveres quando ninguém me ajudava”, alega.
AMEAÇAS E MEDO DE EXPOR OS PROBLEMAS
“Fui ameaçada várias vezes que se não tivesse casa, de uma certa maneira, podia correr o risco de me tirarem os meus filhos. Tinham de fazer visitas domiciliárias para saber se eles estavam em risco. Foram à minha casa, abriram-me diversas vezes o frigorífico e não estavam a ajudar-me com um euro sequer. Pagaram-me aqueles dois meses, depois tiraram-me o dinheiro, mas mesmo assim os deveres mantinham-se.” E acrescenta: “Isto deixa as pessoas com medo de exporem os problemas, porque nos sentimos ameaçados e de cada vez que expomos também não somos ajudados”. O Expresso questionou a Santa Casa, mas até ao momento da publicação deste artigo não obteve resposta.
O desespero de quem precisa de um teto para viver é seguido desde há muito por associações com a Habita que ajuda a resolver problemas relacionados com "habitação social, inquilinos, pessoas que têm créditos à banca ou que não têm casa”. Noutra frente, trabalham com partidos e câmaras para que haja regulamentação da lei de bases da habitação. “Até hoje, dois anos depois da aprovação, o nosso sistema jurídico não foi adaptado à Lei de Bases da Habitação, então esta continua sem qualquer valor”, critica Rita Silva.
É com base nesta experiência que a Técnica de Desenvolvimento Comunitário afirma que “a precariedade na habitação está a aumentar muito”. “Assistimos a um aumento do número de pessoas a viver em carros, carrinhas, em novas barracas que estão a ser construídas de forma escondida em vários lugares. O número de pessoas que ocupam casas que estão vazias e abandonadas, às escondidas, também é elevado.”
“A HABITAÇÃO CONTINUA A NÃO SER UM DIREITO NESTE PAÍS. A PROPRIEDADE VALE MAIS DO QUE O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E A HABITAÇÃO DE MUITAS FAMÍLIAS”
Se por um lado adiou despejos, a pandemia empurrou muitos para situações de fragilidade. “Muitas pessoas que perderam trabalho durante a pandemia não tiveram qualquer apoio social. Muitas trabalhavam sem declarar na área da restauração e turismo, faziam biscates, não conseguindo provar a perda de rendimentos. Há [também] uma quantidade enorme de pessoas que, mesmo não trabalhando informalmente, não conseguiu cumprir os critérios cumulativos para ter apoio.”
No entanto, a associação considera que o problema antecede a crise pandémica ou até a crise financeira da década passada. “[O problema] é uma política de habitação extremamente errada, que transformou a habitação num produto de investimento e que está a perder a função social.”
“A habitação transformou-se, sobretudo depois da crise financeira, num objeto de investimento de capitais internacionais, de pessoas ricas e fundos. Isto está a levar a uma enorme desigualdade, a que muitas pessoas sejam completamente excluídas da habitação, o que afeta duramente os grupos mais vulneráveis, mas também vai penetrando pela classe média e nos jovens, que cada vez têm mais dificuldades em ter um sítio onde morar. É cada vez mais transversal.”
Por outro lado considera que “as pessoas estão muito mal informadas sobre os seus direitos e sobre o que devem fazer”. E deixa um alerta: "se receberem alguma carta, tentem logo ir à procura de informação e não deixem passar os prazos”, acrescentando que devem procurar a ajuda de associações.
Quanto ao regime excecional defende que “não pode haver a abertura da suspensão dos despejos se não há, da parte do Estado, capacidade para responder adequadamente às pessoas”. “A habitação continua a não ser um direito neste país. A propriedade vale mais do que o direito fundamental à vida e à habitação de muitas famílias, que estão numa situação muito complicada neste momento. Isto afeta realmente a vida delas, é um assunto de vida ou morte.”