27.10.21

Tráfico de seres humanos, vistos gold e corrupção são pontos fracos

Valentina Marcelino, in DN

Portugal está na 117.ª posição entre os 193 países da ONU no Índice Global da Criminalidade

Organizada de 2021, segundo o qual o Estado é "suficientemente eficaz" no combate a este fenómeno. Os vistos gold são apontados como porta de entrada para corruptos, lavagem de dinheiro e evasão fiscal. O combate à corrupção é considerado um ponto fraco na resiliência do Estado.

Portugal é um "país de trânsito e destino para o tráfico de seres humanos, um dos maiores mercados criminais do país", é um "país de trânsito para tráfico de armas cujo destino é África" e ainda um "país de trânsito e destino para o tráfico de cocaína" e uma "fonte de produção de canábis". De acordo com o Índice Global da Criminalidade Organizada de 2021 são estes os principais fatores que levam a que o nosso país tenha tido uma pontuação de 4,55 (escala de 1, melhor, a 10, pior) nas taxas de criminalidade organizada.

Esta avaliação mundial analisa os 193 países que integram a a Organização das Nações Unidas. Portugal está em 117.º lugar em relação a esse total e em 24.º entre os 44 países europeus. Entre os oito países da Europa do Sul está em 5.º lugar.

A boa notícia é que, segundo este ranking, o Estado consegue ser "suficientemente eficaz" no combate a estes fenómenos, sendo Portugal classificado com uma pontuação de 6,46 (de 1, "não existente" ou "extremamente ineficaz" a 10, "altamente eficaz") no que diz respeito à "resiliência". Está em 29.º lugar entre os 193 países da ONU, em 21.º na Europa e em 2.º entre os países do sul europeus. Aqui as notas mais altas vão para as forças policiais e para o funcionamento da cooperação internacional (com 7,5 pontos), seguidos da "liderança política e governo", das "políticas e legislação nacionais", do "apoio às vítimas" e dos "atores não estatais".

Ainda assim, os vistos gold e os mecanismos de combate à corrupção são vistos como pontos fracos nessa mesma resiliência do Estado. (ver textos em baixo e ao lado).

Na semana passada, na cerimónia de comemoração do 76.º aniversário da PJ, a ministra da Justiça considerou "honrosa" a classificação portuguesa, mas assinalou que, apesar disso, não deixa de ser apontado como um país de trânsito e de destino para o tráfico de seres humanos e para a introdução clandestina de migrantes, bem como para o tráfico de cocaína e de outros estupefacientes, com o registo do aumento da utilização da dark web para o comércio de drogas". Por isso, realçou Francisca Van Dunem, "é crucial aprofundar e acelerar a resposta da Justiça, continuando a modernizar e a apetrechar a Polícia Judiciária para combater estes fenómenos, que afetam a vida dos cidadãos, das empresas e das administrações públicas".

A nível global, este índice, desenvolvido por uma organização não governamental com sede em Genebra, concluiu que "as democracias têm níveis mais elevados de resiliência à criminalidade do que Estados autoritários". Foi ainda constatado que "mais de três quartos da população mundial vive em países com níveis elevados de criminalidade e em países com baixa resiliência ao crime organizado". São salientadas ainda outras quatro conclusões: a Ásia é o continente com níveis mais elevados de criminalidade; o tráfico de seres humanos é o crime mais difundidos globalmente; os funcionários estatais são os mais frequentes em ações para facilitar economias ilícitas e em dificultar a resiliência ao crime organizado. São estes que, sublinha o relatório, "detêm influência sobre as autoridades estatais, os corretores dominantes do crime organizado, e não líderes de cartéis ou chefes mafiosos, como poderia alguém supor".


A resistência do Estado

Combate à corrupção

O crime organizado é uma das principais prioridades do governo português, em termos de prevenção e investigação. O Índice Global da Criminalidade Organizada refere que "a maioria dos casos de corrupção relacionados com o crime organizado são esporádicos", lembrando que "a única prova de corrupção sistémica foi um exemplo de fraude e branqueamento de capitais em 2014, que envolveu altos funcionários do Estado, incluindo o primeiro-ministro na altura" (José Sócrates e a Operação Marquês). No entanto, é frisado que os "mecanismos em vigor em Portugal para acabar com a corrupção estatal são limitados". Além disso, é acrescentado, "a perceção pública sobre corrupção desconfia dos funcionários públicos e da polícia". A nível internacional, Portugal ratificou todos os instrumentos jurídicos internacionais relevantes para o crime organizado e "tem vindo a cumprir a maioria das medidas estabelecidas por estes tratados internacionais". Porém, "a única violação significativa relacionada com a implementação de instrumentos internacionais em Portugal parece ser associada à questão da corrupção".

Justiça e segurança

O relatório assinala que Portugal tem um departamento específico no sistema judicial para investigar o crime violento e organizado (Polícia Judiciária), mas "a sua eficácia tem vindo a ser analisada nos últimos dois anos, devido ao pequeno número de casos investigados". Além disso, nota, "os casos relacionados com o tráfico de seres humanos estão sob a jurisdição de outro organismo policial (SEF), que também é responsável pela investigação dos crimes de auxílio à imigração ilegal" - entretanto o SEF foi extinto e estas competências passaram para a PJ. Diz o documento que "embora seja difícil de avaliar a confiança do público na aplicação da lei, vários meios de comunicação social têm mostrado investigações bem-sucedidas e detenções relacionadas com o crime organizado". "Com a sua extensa linha costeira, a sua localização geográfica e os laços históricos com a América do Sul, Portugal é especialmente vulnerável ao crime organizado transnacional", tendo o sistema de vistos gold sido "identificado como uma potencial ameaça à integridade territorial do país".

Segurança privada na mira do crime organizado

O Índice Global da Criminalidade Organizada refere que "Portugal tem várias disposições para prevenir atividades relacionadas com o crime económico financeiro" mas os quadros regulamentares legislativos nem sempre são respeitados". É sublinhado que "alguns setores da economia também parecem estar sob a influência de grupos do crime organizado, particularmente o mercado de segurança privada e o setor da agricultura". Existem também várias entidades responsáveis por investigação de infrações associadas ao branqueamento de capitais, mas tem havido casos reportados "que envolveram não só agentes criminosos, mas também altos funcionários estatais".

Mercados criminosos em Portugal

Tráfico de seres humanos

Segundo o Índice Global, "Portugal é um país de origem, trânsito e destino de tráfico de seres humanos, que é um dos dois maiores mercados criminosos do país". A Espanha é o destino mais comum para as pessoas traficadas de Portugal. Alguns relatórios, assinala ainda este estudo, indicam que Portugal também se tem tornado parte de uma rota de redes criminosas da África subsariana. A exploração laboral é a forma mais comum de tráfico identificado pelas autoridades. Contudo, aí têm sido incidentes de tráfico para fins sexuais, exploração e mendicidade forçada.

O Índice refere que as redes de imigração ilegal ou "contrabando de migrantes" têm Portugal como origem, passagem e destino.

A agricultura e a hotelaria são os setores mais comuns que empregam migrantes em situação irregular e este contrabando envolve frequentemente redes criminosas com ligações a empresas. "Também tem havido casos em que o contrabando humano envolveu a participação de atores estatais, incluindo a polícia de fronteiras, mas estes são exceção em vez da norma", frisa o relatório.

Tráfico de armas

"Portugal é um país de trânsito para o tráfico de armas de fogo para África", aponta o Índice Global. Assinala que "a conversão de armas de fogo é um mecanismo popular para adquirir armas ilícitas no país e a sua importação em Portugal está a aumentar". A dark web é utilizada para fazer circular armas ilegais, especialmente as que já se encontram no mercado negro. A dark web também é utilizada para desviar armas que são legalmente detidas. Diz o relatório que "a participação de funcionários estatais no mercado do tráfico de armas é bastante comum, juntamente com grupos mafiosos".

Tráfico de droga

Portugal é um país de trânsito e destino do tráfico de cocaína, tendo a maior parte da cocaína apreendida origem na América Latina e Caraíbas. É distribuída internamente ou traficada para outros países europeus. Há funcionários estatais e grupos mafiosos envolvidos. As autoridades têm manifestado preocupação com o aumento da utilização da dark web para este comércio. No que diz respeito à canábis, Portugal é considerado um "país de origem", com países da Europa, Brasil e Guiné-Bissau como principais destinos. É notado que "embora a produção interna pareça continuar, apesar da pandemia de covid-19, tem havido uma diminuição da disponibilidade e um aumento no preço".

Nas drogas sintéticas, "Portugal é um país de trânsito e destino chave", refere o relatório. O MDMA/ecstasy é considerado como o segundo fármaco mais usado em Portugal. Os fármacos são geralmente traficados para o país a partir dos Países Baixos, seguidos de Espanha, Bélgica e França. Há grupos mafiosos envolvidos na distribuição interna de metanfetaminas.

No que diz respeito à heroína, o nosso país é simultaneamente um país de trânsito e de destino, com as autoridades portuguesas a verificar que "o tráfico tem vindo a ganhar relevância". A maior parte da heroína apreendida em Portugal provém de Espanha e Moçambique e é depois vendida internamente ou traficada para a Europa. A maior parte da heroína apreendida foi transportada por terra.

Inação e vistos gold

As redes que operam em Portugal aliam-se frequentemente a redes estrangeiras, que são responsáveis pela produção e o transporte de drogas, ou para o recrutamento e transporte de vítimas de tráfico de seres humanos, para Portugal. Segundo este estudo, "existem vários grupos criminosos estrangeiros em Portugal que estão envolvidos em roubos, violência geral e homicídios". Os casos em que há ligações a intervenientes estatais "relacionam-se com situações em que funcionários governamentais facilitam crimes pela sua inação". O Índice Global destaca que "o mais notável é a utilização do esquema dos vistos gold, que proporciona uma porta de entrada para os corruptos, indivíduos e empresas para entrar na Europa, e permite lavagem de dinheiro e evasão fiscal".

Sublinha o relatório que apesar de o crime organizado não ser considerado como uma "questão importante em Portugal", houve, no entanto, "alguns tipos específicos de grupos mafiosos organizados, identificados como operando no mercado doméstico" tais como os Hells Angels (detidos e em julgamento) e Los Bandidos (já não existentes), que "estiveram em conflito uns com os outros por disputas territoriais". Estes grupos estiveram envolvidos em homicídios, extorsão, roubo, tráfico de droga e posse e tráfico ilegais de armas e munições.