19.10.21

“A DGS trabalha mal. É incompetência não se conhecer a taxa de suicídio em 2020”: o alerta do diretor do Serviço de Psiquiatria do São João

Isabel Paulo, in Expresso

Miguel Bragança lamenta que em Portugal, “envolto numa profunda sonolência”, se desconheça ainda se a taxa de suicídio se manteve estável, se aumentou ou se diminuiu durante a pandemia. Miguel Bragança refere serem dados fundamentais para os médicos avaliarem a evolução da doença ao longo dos períodos de confinamento e distanciamento social, indicadores monitorizados e publicados regularmente em vários países europeus

O diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital de São João lastima que desde o início da pandemia, em março de 2020, ninguém no poder político ou na tutela da saúde pareça interessado em saber a evolução das taxas de suicídio.“Em Inglaterra são dados revelados trimestralmente, cá ninguém sabe sequer os do ano passado”, afirma Miguel Bragança, que foi um dos intervenientes do “Dia Mundial da Saúde Mental”, assinalado a 10 de outubro e este ano subordinado ao Impacto da Pandemia na Saúde Mental, que decorreu na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Mais de ano e meio após “a contenda” que afetou e mobilizou o mundo, Miguel Bragança destacou como ponto alto a forma como a ciência e a tecnologia “venceram a pandemia, numa espera que parecia infinita” mas que a todos surpreendeu. “O engenho humano está de boa saúde”, disse na sua intervenção. No lado oposto, sinalizou a desigualdade, “que mostrou ser, se não o soubéssemos, o nosso principal problema social, político e humano”.

“A distribuição do impacto da pandemia decalca a narrativa da realidade. Apesar de ter tocado a todos ou a quase todos, são os do costume a sofrer o abandono e a morte prematura, a ausência de cuidados de saúde - seja ela física, mental ou qualquer outra taxonomia que inventemos. O mundo a duas velocidades tornou-se ainda mais visível e caricatural”, afirmou.

Ao Expresso, Miguel Bragança lamenta que a prevalência da doença mental, em crescendo nas sociedades ocidentais, continue a ser no nosso país o parente pobre do SNS, com serviços de psiquiatria a funcionarem em instalações precárias, “quase vergonhosas” e com recursos humanos limitados.

A saúde mental ainda é o parente pobre do SNS?
Infelizmente esta é uma frase estafada mas que continua a ser real, apesar de a prevalência da doença mental ser cada vez mais alta nas sociedades ocidentais, situação que devia implicar um maior investimento no tratamento dos doentes, o que em Portugal não acontece. A doença mental continua a ser silenciosa, negligenciada, estigmatizada. Os doentes mentais não reivindicam como um paciente com doença oncológica ou hepatite.

Por vergonha?

Não é fácil um esquizofrénico ir para a praça pública reivindicar. É uma pessoa reprimida, um fóbico é um sofredor, não uma pessoa reivindicativa. A sociedade sempre conotou a doença mental com problemas de carácter, uma fraqueza, o que leva os próprios pacientes a omitir a doença, a esconder os sintomas. Uma pessoa que vá para o trabalho chorar é vista como um trabalhador frágil, diminuído, que não merece uma promoção.

Os sobreviventes de suicídio

Quem mais sofreu com a pandemia?
As pessoas com doença física ou mental prévia, aqueles que perderam familiares, boa parte dos infetados, os que perderam empregos, os idosos, os adolescentes e jovens adultos. Os mais velhos, sobretudo os residentes em lares, que ficaram privados de ver a família, os mais jovens por estarem numa fase da vida em que têm uma enorme necessidade de conviver com os amigos, namorar, sair de casa. E é preciso não esquecer os profissionais de saúde, heróis previsíveis mas temporários, que lidaram com o risco, o medo do vírus desconhecido, a pressão, o desgaste. Vamos ver se esta crise pandémica trará mudanças nas políticas públicas em relação à doença mental, embora duvide.

Há dados que nos permitam perceber qual foi o impacto da covid e dos confinamentos na saúde mental?
Os departamentos e hospitais de Psiquiatria e Saúde Mental do país não abandonaram os doentes que acompanhavam. Nos confinamentos, a tecnologia ajudou a mitigar a distância e a sensação de abandono. Em concreto, o que hoje se sabe é que a procura de consultas de psiquiatria cresceu, com os centros de saúde a registarem um aumento de pedidos de pacientes para primeiras consultas.

A taxa de suicídio aumentou?
A nível europeu e mundial, o que se sabe pelo que vem sendo publicado em estudos, muitos deles com periodicidade trimestral, é que a taxa se manteve estável ou até diminuiu um pouco. Como nas guerras e grandes catástrofes, o suicídio tende a diminuir. Nas guerras, as pessoas lutam ou fogem de quem as persegue, não se matam. Em Portugal, continuamos envoltos numa profunda sonolência e nem os dados de 2020 são conhecidos.

A que se deve o atraso?
Somos fracos em muitas coisas. A DGS trabalha mal, a taxa de suicídio é um dado mensurável e ninguém sabe qual é a nossa realidade. No poder político e na tutela da saúde parece que ninguém está interessado em saber. Por que razão não se publica a evolução das taxas de suicídio, já não digo de 2021, mas de 2020? Por preguiça, desleixo e incompetência. Pelas certidões de óbito, que são eletrónicas, basta um clique para se saber quantas mortes houve no anterior por comportamentos autolesivos. São dados essenciais para os médicos perceberem a evolução da doença mental em qualquer altura e nos tempos de pandemia em particular.

O Orçamento do Estado é bom para a saúde?
Há um acréscimo de €400 milhões para a saúde em geral, mas desconhece-se que verba vai chegar aos cuidados de saúde mental. No PRR há €85 milhões destinados às doenças psiquiátricas. No plano nacional é comparativamente alto em relação ao que se investiu nos últimos anos mas, na prática, são meia dúzia de tostões num país que conta com apenas 33 serviços públicos dedicados à doença mental, subdimensionados, suborçamentados, a funcionarem em instalações precárias, quase vergonhosas, com recursos humanos limitados, quer em número de médicos-psiquiatras quer em número de enfermeiros. E temos um número risível de terapeutas, assistentes sociais e afins. Em Portugal, o rácio é de um psiquiatra por 100 mil habitantes, muito abaixo do desejável, um rácio tanto mais preocupante já que mais de 50% dos psiquiatras estão fora do SNS. Quem tem dinheiro para ir ao privado safa-se, enquanto os mais carenciados são os esquecidos do costume, os que mais sofrem com a ausência de respostas públicas.