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19.10.21

“A DGS trabalha mal. É incompetência não se conhecer a taxa de suicídio em 2020”: o alerta do diretor do Serviço de Psiquiatria do São João

Isabel Paulo, in Expresso

Miguel Bragança lamenta que em Portugal, “envolto numa profunda sonolência”, se desconheça ainda se a taxa de suicídio se manteve estável, se aumentou ou se diminuiu durante a pandemia. Miguel Bragança refere serem dados fundamentais para os médicos avaliarem a evolução da doença ao longo dos períodos de confinamento e distanciamento social, indicadores monitorizados e publicados regularmente em vários países europeus

O diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital de São João lastima que desde o início da pandemia, em março de 2020, ninguém no poder político ou na tutela da saúde pareça interessado em saber a evolução das taxas de suicídio.“Em Inglaterra são dados revelados trimestralmente, cá ninguém sabe sequer os do ano passado”, afirma Miguel Bragança, que foi um dos intervenientes do “Dia Mundial da Saúde Mental”, assinalado a 10 de outubro e este ano subordinado ao Impacto da Pandemia na Saúde Mental, que decorreu na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Mais de ano e meio após “a contenda” que afetou e mobilizou o mundo, Miguel Bragança destacou como ponto alto a forma como a ciência e a tecnologia “venceram a pandemia, numa espera que parecia infinita” mas que a todos surpreendeu. “O engenho humano está de boa saúde”, disse na sua intervenção. No lado oposto, sinalizou a desigualdade, “que mostrou ser, se não o soubéssemos, o nosso principal problema social, político e humano”.

“A distribuição do impacto da pandemia decalca a narrativa da realidade. Apesar de ter tocado a todos ou a quase todos, são os do costume a sofrer o abandono e a morte prematura, a ausência de cuidados de saúde - seja ela física, mental ou qualquer outra taxonomia que inventemos. O mundo a duas velocidades tornou-se ainda mais visível e caricatural”, afirmou.

Ao Expresso, Miguel Bragança lamenta que a prevalência da doença mental, em crescendo nas sociedades ocidentais, continue a ser no nosso país o parente pobre do SNS, com serviços de psiquiatria a funcionarem em instalações precárias, “quase vergonhosas” e com recursos humanos limitados.

A saúde mental ainda é o parente pobre do SNS?
Infelizmente esta é uma frase estafada mas que continua a ser real, apesar de a prevalência da doença mental ser cada vez mais alta nas sociedades ocidentais, situação que devia implicar um maior investimento no tratamento dos doentes, o que em Portugal não acontece. A doença mental continua a ser silenciosa, negligenciada, estigmatizada. Os doentes mentais não reivindicam como um paciente com doença oncológica ou hepatite.

Por vergonha?

Não é fácil um esquizofrénico ir para a praça pública reivindicar. É uma pessoa reprimida, um fóbico é um sofredor, não uma pessoa reivindicativa. A sociedade sempre conotou a doença mental com problemas de carácter, uma fraqueza, o que leva os próprios pacientes a omitir a doença, a esconder os sintomas. Uma pessoa que vá para o trabalho chorar é vista como um trabalhador frágil, diminuído, que não merece uma promoção.

Os sobreviventes de suicídio

Quem mais sofreu com a pandemia?
As pessoas com doença física ou mental prévia, aqueles que perderam familiares, boa parte dos infetados, os que perderam empregos, os idosos, os adolescentes e jovens adultos. Os mais velhos, sobretudo os residentes em lares, que ficaram privados de ver a família, os mais jovens por estarem numa fase da vida em que têm uma enorme necessidade de conviver com os amigos, namorar, sair de casa. E é preciso não esquecer os profissionais de saúde, heróis previsíveis mas temporários, que lidaram com o risco, o medo do vírus desconhecido, a pressão, o desgaste. Vamos ver se esta crise pandémica trará mudanças nas políticas públicas em relação à doença mental, embora duvide.

Há dados que nos permitam perceber qual foi o impacto da covid e dos confinamentos na saúde mental?
Os departamentos e hospitais de Psiquiatria e Saúde Mental do país não abandonaram os doentes que acompanhavam. Nos confinamentos, a tecnologia ajudou a mitigar a distância e a sensação de abandono. Em concreto, o que hoje se sabe é que a procura de consultas de psiquiatria cresceu, com os centros de saúde a registarem um aumento de pedidos de pacientes para primeiras consultas.

A taxa de suicídio aumentou?
A nível europeu e mundial, o que se sabe pelo que vem sendo publicado em estudos, muitos deles com periodicidade trimestral, é que a taxa se manteve estável ou até diminuiu um pouco. Como nas guerras e grandes catástrofes, o suicídio tende a diminuir. Nas guerras, as pessoas lutam ou fogem de quem as persegue, não se matam. Em Portugal, continuamos envoltos numa profunda sonolência e nem os dados de 2020 são conhecidos.

A que se deve o atraso?
Somos fracos em muitas coisas. A DGS trabalha mal, a taxa de suicídio é um dado mensurável e ninguém sabe qual é a nossa realidade. No poder político e na tutela da saúde parece que ninguém está interessado em saber. Por que razão não se publica a evolução das taxas de suicídio, já não digo de 2021, mas de 2020? Por preguiça, desleixo e incompetência. Pelas certidões de óbito, que são eletrónicas, basta um clique para se saber quantas mortes houve no anterior por comportamentos autolesivos. São dados essenciais para os médicos perceberem a evolução da doença mental em qualquer altura e nos tempos de pandemia em particular.

O Orçamento do Estado é bom para a saúde?
Há um acréscimo de €400 milhões para a saúde em geral, mas desconhece-se que verba vai chegar aos cuidados de saúde mental. No PRR há €85 milhões destinados às doenças psiquiátricas. No plano nacional é comparativamente alto em relação ao que se investiu nos últimos anos mas, na prática, são meia dúzia de tostões num país que conta com apenas 33 serviços públicos dedicados à doença mental, subdimensionados, suborçamentados, a funcionarem em instalações precárias, quase vergonhosas, com recursos humanos limitados, quer em número de médicos-psiquiatras quer em número de enfermeiros. E temos um número risível de terapeutas, assistentes sociais e afins. Em Portugal, o rácio é de um psiquiatra por 100 mil habitantes, muito abaixo do desejável, um rácio tanto mais preocupante já que mais de 50% dos psiquiatras estão fora do SNS. Quem tem dinheiro para ir ao privado safa-se, enquanto os mais carenciados são os esquecidos do costume, os que mais sofrem com a ausência de respostas públicas.

4.10.21

“Não falar do suicídio não faz com que ele não exista”: esta associação quer apoiar os sobreviventes

Carolina Pescada, in Público on-line

A associação Sobre Viver Depois do Suicídio, criada em Junho de 2021, pretende apoiar os sobreviventes de suicídio e sensibilizar a sociedade para o tema. “Um dos primeiros obstáculos que os sobreviventes nos relatam é não serem compreendidos no seio da comunidade.”

Quando o pai de Sara Miguéns se suicidou, em 2019, Sara comentou várias vezes com a psicóloga que sentia a necessidade de fazer parte de um grupo de apoio especializado. “Precisava de ouvir outras pessoas e de falar com outras pessoas que conseguissem mapear-se com os meus sentimentos e as questões que me assombravam numa fase inicial”, recorda, em entrevista ao P3. Foi só há uns meses que encontrou a associação Sobre Viver Depois do Suicídio, num scroll de domingo pelo Facebook. “Achei muito interessante o facto de ser focada na pósvenção, ou seja, em olhar para os designados sobreviventes de suicídio, as pessoas que ficam à volta e que são impactadas pelo suicídio [de alguém], e desenvolver mecanismos para as apoiar.”

Esta associação foi criada, em Junho de 2021, por um grupo de sobreviventes e de profissionais na área da psicologia e do serviço social que sentiram haver uma lacuna no apoio àqueles que perdem alguém desta forma. Apoiada por um programa de aceleração da Casa do Impacto, “um hub de empreendedorismo social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, como explicou Afonso Borga, membro da direcção, ao P3, esta associação trabalha em duas dimensões: uma primeira no apoio directo aos sobreviventes, através de grupos de apoio informal e apoio psicológico especializado; e uma segunda numa perspectiva de comunicação e sensibilização sobre o tema, para combater a estigmatização do mesmo.

“Um dos primeiros obstáculos que os sobreviventes nos relatam é não serem compreendidos no seio da comunidade”, o que impede a “concretização do processo de luto”, explica Afonso Borga. As campanhas de sensibilização e educação sobre o suicídio pretendem levar este tema cada vez mais para dentro da sociedade civil, para que seja encarado como uma questão de saúde pública e assim se possam discutir respostas.

Com a morte do pai, que tinha sido recentemente diagnosticado com bipolaridade, Sara Miguéns, gestora de recursos humanos, sentiu que era fácil cair no estigma e que teria, por isso, de o combater. “O suicídio, o tabu e a sua prevenção acabaram por ganhar uma dimensão importante na minha vida”, diz. Por isso, sentiu a necessidade de se informar, de falar e escrever sobre o tema, para “minimizar um bocadinho essa vergonha”. “Se nós naturalizarmos o assunto, se muitas pessoas falarem sobre isto de uma forma aberta, acredito que possa haver um impacto positivo na prevenção.”

Combater este estigma passa também por combater o estigma associado às doenças mentais. E, para Sara, o primeiro passo é acabar com a ideia de que estas são uma escolha e que conseguimos lidar com elas sozinhos. “Temos de primeiro aceitar que não controlamos tanto quanto achamos aquilo que se passa na nossa cabeça, e que isso pode ter como consequência uma doença mental. E que, tendo uma doença mental, não é suposto sujeitarmo-nos e acharmos que temos de viver com as limitações que ela nos causa, que às vezes são tão grandes. Quando partimos uma perna, não vamos curar a perna sozinhos com força de vontade. Passa-se o mesmo com as doenças mentais.”

Em termos globais, o suicídio é a segunda causa de morte entre os jovens entre os 15 e os 29 anos (apenas superada pelos acidentes rodoviários), de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2018, segundo dados disponíveis pelo Instituto Nacional de Estatística, registaram-se 27 mortes por suicídio na faixa etária entre os 15 e os 24 anos em Portugal, de entre as 989 mortes por suicídio que foram registadas em todas as idades.

Linhas de Apoio e de Prevenção do Suicídio em Portugal


SOS Voz Amiga
Lisboa
Das 16h às 24h
213 544 545 - 912 802 669 - 963 524 660

Linha Verde gratuita - 800 209 899 (Entre as 21h e as 24h)

Conversa Amiga
Inatel
Das 15h às 22h
808 237 327
210 027 159

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
Voades-Portugal
Das 16h às 22h
222 030 707

Telefone da Amizade
Porto - Desde 1982
Das 16h às 23h
222 080 707

Voz de Apoio
Porto
Das 21h às 24h
225 506 070

Todas estas linhas são de duplo anonimato — garantido tanto a quem liga como a quem atende. Para encaminhamento, a linha do SNS24 (808 24 24 24) é assumida por profissionais de saúde.
Partilhar histórias pode inspirar sobreviventes

A 10 de Setembro, Sara participou numa dinâmica da associação no âmbito do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio: quatro sobreviventes de suicídio numa conversa sobre o seu processo de luto. Um pouco à semelhança dos círculos da palavra, que a associação começou a desenvolver uns dias depois, que acabam por ser a materialização dos grupos de apoio especializado que Sara procurava — e a primeira experiência não desiludiu. “Éramos e somos pessoas completamente diferentes. Tínhamos perdido familiares diferentes, estávamos em fases diferentes da vida, mas, apesar de toda esta diferença, deu-me um conforto muito grande poder partilhar e verdadeiramente acreditar que aquelas pessoas conseguiam compreender o que eu sentia, porque passaram pelo mesmo”, explicou Sara.

A conversa, sublinha, trouxe-lhe esperança: “Uma das coisas que tínhamos em comum era o facto de todos termos arranjado formas de, mais do que sobreviver, estarmos a viver.” A partilha de histórias, acredita, pode inspirar outros sobreviventes que venham a integrar os círculos da palavra. “Espero que possam encontrar aqui, por um lado, esta empatia, esta companhia de ‘não estou sozinho a passar por isto’, e, por outro lado, a esperança de olhar em frente e perceber que é possível, demore o tempo que demorar, ultrapassar o enorme sofrimento que agora sentem e ficar bem.”

Fernanda Abrantes, professora de Inglês, também fez parte desta dinâmica e partilha a opinião de Sara. “É bom ter alguém que nos entende quase sem falarmos. As pessoas que não passaram por perdas tão grandes não conseguem entender, e felizmente que assim é.” Fernanda perdeu o filho em Maio de 2018 e acredita que quem passa por uma experiência de proximidade de um suicídio não pode, em caso algum, fechar-se em si próprio. “Seremos sempre pessoas diferentes depois, e cada um faz o luto à sua maneira. Há coisas que ajudam uns e não ajudam outros. Mas aquilo que não ajuda mesmo nada é o silêncio. E daí a necessidade que senti, de partilhar com os outros a ansiedade, a culpa, porque acredito e experienciei que a dor partilhada não desaparece, mas torna-se um bocado mais leve.”

Pouco depois da morte do filho, Fernanda decidiu que tinha de fazer alguma coisa em honra de Pedro Miguel, e que tinha de ser nesta área, falando sobre a saúde mental e alertando para a importância de a desmistificar. “Precisamos de acabar com o estigma, temos de falar sobre o assunto. Porque não falar não significa que não existe. Existe e é pior que exista escondido. Isto não é um mal social de A, B ou C; é de todos”, reitera. E alerta: “Ninguém está livre de vir a passar por uma situação, de não estar bem mentalmente ou de ter alguém por perto que não esteja.” Por isso, quando soube da existência da Sobre Viver Depois do Suicídio, quis de imediato fazer parte do projecto e voluntariou-se. “Acho que a associação será — tenho muita esperança de que seja — uma condutora de boas energias, na partilha, na vivência de diferentes formas de estar e de ser e de encarar o luto.”

Tanto Fernanda como Sara partilham a opinião de que é urgente aumentar a resposta social aos sobreviventes. “Estas pessoas têm muito mais propensão para a doença mental e, infelizmente, para o suicídio, e não há grande estrutura de acompanhamento, por exemplo, em termos do SNS”, diz Sara, para quem é imperativo garantir os cuidados de saúde mental continuados e consequentes a estas pessoas. Mais do que tudo, Sara acredita que estes cuidados devem ser pró-activos, ou seja, que não seja necessário o sobrevivente procurar esse apoio, mas que, em querendo, ele seja desencadeado de forma quase automática.

A falta de apoio e referenciação de serviços por parte do Estado foi uma lacuna também identificada pela associação. “Nós queremos ter esta vertente de apoio social, de apoiarmos pessoas que não têm possibilidades de pagar um psicólogo”, adiantou Afonso Borga, assumindo que, por agora, este apoio ainda está em desenvolvimento. Em parceria com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, elaboraram já um manual de apoio sobre o suicídio, um guia sobre o tipo de respostas que um sobrevivente pode encontrar. Em agenda está a constituição de uma bolsa nacional de psicólogos, prevista para 2022. O objectivo é que haja, a nível nacional, psicólogos referenciados na área da suicidologia, uma vez que “há questões muito concretas no luto por suicídio”. E alerta ainda para importância de os cuidados serem continuados. “Os principais efeitos neste tipo de luto dão-se muito tempo depois”, pelo que o apoio não pode acontecer só numa fase inicial.

A associação tem estado a trabalhar com a Universidade de Évora e, por isso, uma grande parte da equipa (professores, psicólogos, investigadores) está nessa zona, mas a direcção não sente ainda a necessidade de uma sede. “Queremos que haja uma descentralização dos tipos de apoio e que consigamos chegar a todo o país”, explica Afonso Borga. Nesse sentido, a Internet e as redes sociais – por onde tem passado muita da acção da associação – têm ajudado enormemente. Talvez no futuro pensem em dinamizar os círculos da palavra de forma presencial: “Sentimos que seria diferente o estar presencialmente, mas, por agora, online tem corrido bem.”

10.9.21

Jovens homossexuais ou bissexuais têm probabilidade três vezes maior de suicídio

in Público on-line

A propósito do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, assinalado esta sexta-feira, a Ordem dos Psicólogos Portugueses explica que em Portugal o número de mortes por suicídio “é elevado”, com as estatísticas mais recentes a apontarem para três mortes por dia por esta causa.

Os jovens homossexuais ou bissexuais têm uma probabilidade três vezes maior de cometer suicídio nalguma altura da sua vida, uma possibilidade que aumenta quando a família não aceita a sua orientação sexual, segundo dados divulgados esta sexta-feira.

Os dados constam de um documento com 28 páginas da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), com o título "Vamos falar sobre o suicídio", lançado a propósito do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, assinalado esta sexta-feira.

“Um dos factores que pode espoletar estes comportamentos de suicídio são de facto este desajustamento que a pessoa sente relativamente à aceitação da família quando há questões de orientação sexual ou de identidade de género”, disse à agência Lusa Renata Benavente, da OPP.

A psicóloga explicou que, quando existem estas “dificuldades acrescidas, sobretudo nestas fases de desenvolvimento que são críticas, da estruturação da personalidade, de aceitação de si próprio”, a situação agrava-se.

“A adolescência por si só, e os números mostram isso, já é uma fase difícil em que há um número crescente de suicídios. Se essas dificuldades que são expectáveis da adolescência se associam a outros factores de risco, nomeadamente a identidade sexual, a não-aceitação por parte da família da sua orientação sexual, todas essas dificuldades naturalmente vão aumentar o risco de suicídio”, sublinhou.

No seu entender, é um grupo de jovens e de pessoas que deve merecer uma particular atenção.

Alertou também para “uma problemática muito preocupante” que é o suicídio entre a população mais jovem, a segunda causa de morte entre os jovens em todo o mundo entre os 15 e os 34 anos.

“A primeira {causa] são as mortes por acidente e a segunda é o suicídio, o que nos leva a reflectir sobre porque é que os jovens estão a tomar este tipo de decisão de retirar a própria vida”, sublinhou.

Em Portugal, o número de mortes por suicídio “é elevado”, com as estatísticas mais recentes a apontarem para três mortes por dia por esta causa. No mundo, morrem quase 800 mil pessoas por suicídio anualmente, o que corresponde a aproximadamente uma morte a cada 40 segundos.

“A maior parte das pessoas que morreu por suicídio sofria de problemas de saúde psicológica, nomeadamente depressão e consumo problemático de álcool”, refere o documento.

Por outro lado, apontou Renata Valente, a investigação internacional também mostra que o número de tentativas é 25 vezes superior ao número de suicídios consumados.

“As tentativas de suicídio e os suicídios são um grande desafio em termos da saúde pública e resultam normalmente de situações de grande sofrimento emocional e têm um impacto muito importante, quer pela perda de vidas humanas”, quer nos “sobreviventes”.

“Cada suicídio pode deixar entre seis a 10 pessoas sobreviventes”, como pais, irmãos, filhos, amigos, conhecidos, vizinhos, colegas da pessoa que morreu e profissionais de saúde, refere a publicação.

Sobre o documento, Renata Benavente explicou que o objectivo principal é abordar as temáticas do suicídio e promover a literacia em saúde, “ajudando a população em geral a identificar alguns sinais que possam remeter para alterações que indiciam um eventual comportamento desta natureza”.

“Para muitas é apenas um escape para uma situação transitória que não se consegue lidar de uma forma mais impulsiva e se estivermos atentos a este tipo de indicadores poderemos realmente actuar no sentido de ajudar esta pessoa a aliviar este sofrimento interno e não consumar um ato desta natureza”, salientou.

O documento debruça-se também sobre os motivos que podem conduzir ao suicídio, os factores de risco e protecção, faz recomendações sobre o que se pode fazer e tem uma secção dedicada aos mitos e factos e outra aos sinais de alerta.


15.2.16

Porque é que no Alentejo o suicídio é natural?

Henrique Raposo, in o Observador

No seu novo livro, "Alentejo Prometido", Henrique Raposo usa as suas memórias pessoais para fazer o retrato da região. No capítulo que o Observador pré-publica, tenta responder a uma pergunta incómoda


Alentejo Prometido (da coleção Retratos da Fundação, editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos) é uma viagem familiar. Henrique Raposo conta-nos uma história do Alentejo através de histórias familiares e memórias pessoais. O cenário é a região do Alentejo Litoral, sobretudo o concelho de Santiago de Cacém. Entre cidades e aldeias, este “road movie” lá vai descobrindo segredos familiares enquanto tenta lançar uma nova e implacável luz sobre uma região que se afoga há décadas em lugares-comuns. A ligar todos os quilómetros desta viagem, encontramos três temas: as mulheres, o suicídio e o complexo do desenraizado que acompanha sempre os filhos das migrações. O Observador faz a pré-publicação do capítulo dedicado ao suicídio.

“O Norte de Portugal, que representa 35% da população, sofreu 43 suicídios em 2009, 48 em 2010 e 38 em 2011. O Alentejo, que conta apenas com 7% da população, sofreu 144 suicídios em 2009, 113 em 2010 e 105 em 2011. A diferença é avassaladora, e torna-se demencial quando isolamos o meu Alentejo. Se o Alentejo litoral fosse um país independente, seria a nação com a taxa de suicídio mais alta do mundo, superando até os países eslavos. Na Lituânia, líder mundial, a taxa é de 42 suicídios por 100 mil habitantes. No Alentejo de Odemira e Santiago, os números podem chegar com facilidade aos 45, 50 ou mesmo 60 suicídios por 100 mil habitantes. Há Jacintinhos por todo o lado. Nestas viagens e nas posteriores entrevistas que fiz a alentejanos a viver em Lisboa nunca encontrei uma pessoa sem uma história de suicídio na família. É o fenómeno mais transversal e um factor que reforça a típica tensão alentejana. Sempre considerei um exagero poético aquela ideia dos mortos a assombrar os vivos, mas no caso do suicida há mesmo uma assombração. Familiares e amigos ficam para sempre presos na pergunta mais incómoda: “e se?” E se eu tivesse falado com ele naquele dia? E se eu tivesse falado mais vezes com ele? E se não me tivesse zangado com ele tantas vezes? Estas perguntas ficam a pairar sobre os vivos como abutres em círculo.
A genética até poderá explicar o comportamento dos mortos, mas não explica a atitude dos vivos, isto é, não explica porque é que a sociedade alentejana criou uma cultura que legitima o suicídio.

Mas porque é que os alentejanos se matam com tanta facilidade? Quando se faz esta pergunta, a maioria dos alentejanos (repito: alentejanos) invoca três respostas: solidão, pobreza e o duo paisagem/calor. Eu estava disponível para aceitar a validade das três hipóteses, mas nenhuma sobrevive à realidade. Não, a causa não é a solidão. As pessoas não se matam só porque estão sozinhas. Até há estudos que indicam que o suicídio aumenta nos períodos de maior contacto humano (meses de verão). O reencontro das famílias pode ser um fenómeno penoso. Neste caso, o reencontro traumático ocorre quando regressam à aldeia os irmãos que migraram para Lisboa; os irmãos que ficaram olham para os irmãos lisboetas e sentem que também podiam ter tido aquela roupa fina e aquela mulher decotada. A ascensão social pode ser dolorosa.

A causa não é a pobreza, porque muita gente bem na vida marca um encontro com a corda, a caçadeira, o veneno (605 forte) ou o poço. O tio Jacintinho, o grande detonador deste livro, vivia bem, era seareiro; no dia em que andei por Fornalhas e Vale de Santiago, matou-se um homem nos Foros da Casa Nova que tinha andado na escola com a minha mãe – vivia bem, fazia arroz. Devo ainda salientar que o mapa da distribuição da riqueza não bate certo com o mapa do suicídio. Trás-os-Montes e as Beiras interiores são tão ou mais pobres do que o Alentejo, mas este norte interior tem taxas de suicídio reduzidas. Além do mais, o desemprego e a crise não explicam a maioria dos suicídios. Sines chegou a ter em 2012 uma taxa de desemprego de 18,6%, sendo o concelho onde a taxa de desemprego mais subiu entre 2010 e 2012 (+143,9%). Contudo, o número de suicídios não se alterou, foi sempre o mesmo: cinco por ano. Ao lado, Santiago não conheceu esse pico de desemprego, mas o número de suicídios foi sempre superior. Entre 2009 e 2012, ocorreram 54 casos em Santiago; mais três do que em Odemira.

A causa também não é a paisagem. Percebo a tese que invoca um encantamento da planície sobre o espírito dos homens; é tentador pensar que aquela geometria permite um acesso mais rápido ao absurdo existencialista. Sucede que as regiões espanholas que prolongam a paisagem alentejana, Extremadura e Andaluzia, têm taxas de suicídio baixas. A explicação do suicídio não é paisagística, é cultural. Andaluzia e Alentejo partilham a paisagem e o clima mas são duas culturas opostas. Se o Alentejo é a lamúria do Cante negro, a Andaluzia é o Flamenco vermelho; se o alentejano tem pouca vida comunitária e religiosa, Sevilha é a terra das procissões e das tapas na rua. Para complicar ainda mais as contas da tese geográfica, o suicídio em Espanha está associado à Galiza, o prolongamento do Minho. Lugo é Santiago de Cacém dos espanhóis.

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Há quem diga que a causa do suicídio é a genética. O ADN dos alentejanos, dizem, é propício à depressão. Não ponho isso em causa, mas a genética tem limites. Devido a uma série de factores (endogamia, por exemplo), os genes até poderão explicar porque é que alguns alentejanos cometem suicídio, mas não explicam porque é que a maioria dos alentejanos não critica o suicídio; a genética até poderá explicar o comportamento dos mortos, mas não explica a atitude dos vivos, isto é, não explica porque é que a sociedade alentejana criou uma cultura que legitima o suicídio. A cultura não é uma construção da natureza, é uma construção humana, não é feita de genes, é feita de metáforas, de noções de bem e mal, de linguagens, de palavras, que podem ser tão ou mais poderosas do que os genes.

Ao contrário do que muitos pensam, as palavras não são só palavras. Os materialistas pensam que as palavras são irrelevâncias de amanuenses, porque tudo o que interessa são os factos. Não percebem que nós vemos os factos através das palavras; são as palavras que constroem as lentes objetivas que nos permitem ver (ou não) a realidade empírica. No extremo oposto, os pós-modernos pensam que as palavras são meros jogos florais sem implicações na realidade humana, é como se os textos vivessem num mundo paralelo meramente estético. Não percebem que nós vemos a moral e a legitimidade através das palavras; são as palavras que constroem as lentes subjetivas que nos permitem detetar os dilemas morais que são a essência da condição humana. Ora, o que distingue o Alentejo não é a pobreza, a paisagem, o calor, a solidão ou a genética, mas sim a arrumação do suicídio na prateleira amoral, no ângulo morto da moral. O alentejano não vê o suicídio, ou melhor, não o encara enquanto fenómeno ilegítimo ou passível de criar dilemas. E isto sucede porque a cultura alentejana não tem as palavras que permitem a contestação moral do suicida. Tal como eu não tinha a palavra certa (pobreza) para descrever a casa dos meus avós, tal como a tia Albertina não tinha a palavra necessária (malária) para sentir piedade por quem fervia em febres tropicais, tal como a minha avó não tinha os conceitos morais necessários (escolher, livre arbítrio) para compreender o meu desejo pela leitura, tal como os meus avôs não tinham o conceito moral (criança) capaz de gerar carinho pelos filhos, tal como os alentejanos do passado que não tinham a palavra certa para diabolizarem os filhos ilegítimos (bastardo) e tal como as alentejanas que não possuíam o termo certo (violação) para condenarem os abusos que sofriam, os alentejanos de hoje ainda não têm a linguagem adequada para condenarem o suicídio. Em todos os dias desta aventura, quer nas cidades quer nas aldeias, ouvi sempre variações das seguintes frases: “antes que dê trabalho, mato-me” e “então não se havera de matar!”. Ouve-se isto a qualquer hora e em qualquer lugar, no café, na tasca, no supermercado, na rua, em casa de conhecidos ou familiares. São frases bordão que aparecem com enorme espontaneidade. O alentejano, aliás, só é espontâneo para dizer “mato-me”. E quando ouve vezes sem contas frases espontâneas como “eu também me matava se me tivesse acontecido aquilo”, uma pessoa habitua-se, o indizível passa a ser dizível e a porta abre-se (os tabus não existem por acaso). Quando percebe que ninguém da sua lidação contesta o argumento “é um grande homem porque se matou”, uma pessoa começa a pensar que aquilo que era ilegítimo é, na verdade, um imperativo categórico. No Alentejo, a eutanásia não é um debate, é um modo de vida; o suicídio alentejano não é um ato individual, é uma prática colectiva.

A normalidade do suicídio começa no omnipresente estado da natureza. A maioria da população alentejana encara o suicídio como um fenómeno natural, tão natural como o vento a passar nos sobreiros. O laço da corda no pescoço é visto como um acontecimento da história natural e não da história humana; é um ato amoral da natureza e não uma escolha moral do homem. Certa vez, quando tentava abrir a porta de um restaurante, uma senhora que passava avisou-me: “’tá fechado, ele matou-se. Tá vendo aquele ajuntamento além? É o funeral”. Ela proferiu estas palavras com uma naturalidade desapiedada, como se estivesse a comentar o tempo, a forma das nuvens ou o canito da vizinha; o tom da voz não se alterou, ficou plano como a planície; era como se o senhor tivesse ido trocar uma nota na loja ao lado. Qual é o grande problema desta visão naturalista? Torna impossível contestar o fenómeno. Como é que se contesta um desastre natural? Ele simplesmente ocorre. Um terramoto não tem agência moral, não quer fazer mal ou bem, apenas acontece. A partir do momento em que encara o suicídio como um pequeno terramoto interior, o alentejano fica fora do alcance de qualquer argumentação moral, fica fora do alcance das palavras. Na mente alentejana, discutir se o suicídio é moral ou imoral é uma contradição em termos, da mesma forma que é uma contradição em termos discutir a moralidade de um maremoto ou tempestade. Tragicamente, o olhar do suicida também tem algo de natural ou animal. Quando se tenta argumentar com uma pessoa prestes a cometer suicídio, ela responde com os olhos baços e desapiedados do tubarão que aparece no BBC Vida Selvagem.
Santiago é um concelho fustigado pelo suicídio, que, por vezes, assume a forma de epidemia familiar: o pai mata-se, o filho mais velho mata-se, o filho mais novo mata-se.

Claro que esta visão naturalista denota a ausência da linguagem católica. Não é novidade para ninguém que a fraca religiosidade é uma alavanca suicida. No norte, a cultura católica sempre viu no suicídio o pecado da soberba, o pecado de Judas que se matou porque pensava que era especial, porque era orgulhoso ao ponto de considerar que não tinha perdão. Pedro também traiu Cristo, mas foi o primeiro Papa. Longe da visão católica, o Alentejo aproximou-se de Judas e afastou-se de Pedro. Em conversa com o padre de Santiago, fiquei a saber que nos últimos anos apenas uma católica se tentou matar no concelho inteiro. Não é um dado de somenos importância. Este é um concelho fustigado pelo suicídio, que, por vezes, assume a forma de epidemia familiar: o pai mata-se, o filho mais velho mata-se, o filho mais novo mata-se. A explicação religiosa porém não chega. A distância em relação à Igreja e à fé é apenas uma das parcelas do estado da natureza que tem moldado a cultura alentejana. Como já tentei mostrar, o estado da natureza normaliza ou naturaliza todas as formas de violência humana (suicídio incluído) e cria uma distância entre o alentejano e a comunidade e – acima de tudo – entre o alentejano e a própria família. Esta desconfiança ou falta de à-vontade com os próprios familiares revela-se, por exemplo, na viuvez dos homens. Quando ficam viúvos, os alentejanos entram num infernal mundo novo, descobrem que não conseguem fazer nada sozinhos, nem cozer um ovo, e descobrem sobretudo que não confiam em ninguém no que toca à higiene pessoal, o maior melindre das pessoas idosas. Nem confiam nos filhos ou filhas para essa tarefa. Ainda hoje é fácil encontrar no Alentejo (e na família) homens que revelam esta absurda incoerência: enquanto são adultos autónomos exigem que as filhas façam tudo em casa, porque homem-que-é-homem não deve cozinhar, pôr e levantar a mesa, lavar e passar roupa, fazer e desfazer a cama, fazer compras; mais tarde, quando perdem a autonomia devido à velhice, recusam a ajuda das filhas. É um absurdo quase cómico: forçaram as filhas a fazer aquilo que eles deviam ter feito enquanto estiveram bem de saúde e depois são incapazes de aceitar a bondade alheia quando perdem a independência. Os alentejanos encaram a caridade como uma ofensa, recusam depender da bondade de estranhos mesmo quando os estranhos são os filhos.

Este orgulho transforma qualquer viúvo alentejano num suicida em potência. A GNR isolou 39 mil idosos em Portugal que acumulam duas características: vivem com enormes debilidades motoras mas recusam deixar a sua casa. Apesar da baixa densidade populacional, Beja é o distrito com mais casos: 3914, logo seguido por Viseu com 3755; Leiria apresenta o número mais baixo, 822. Mas o problema aqui não é a quantidade mas a qualidade. Se Beja e Leiria trocassem de números, os 822 alentejanos provocariam mais suicídios do que os 3914 idosos da zona oeste. Há idosos orgulhosos e ciosos da sua independência em qualquer parte do país, mas é no Alentejo que existe uma cultura que autoriza de imediato o salto para a solução mais rápida. Fiéis ao velho porte alentejano, muitos homens preferem o fim abrupto na corda do que um fim prolongado e acarinhado pelas filhas e filhos. “A mim ninguém lava o cu, mato-me logo”, costuma dizer um familiar.

Durante o almoço no café de São Domingos, tornou-se evidente que era necessária uma segunda volta na conversa com a Ti Cidália. Este segundo take teve lugar na casa da nossa anfitriã, que é a típica casa alentejana: fresca e asseada como nenhuma outra. Mendiguei uma segunda ronda, porque restava um novelo por explorar. Durante o almoço, quando falou de passagem no “Jacintinho”, Cidália deu uma entoação sarcástica ao inho e de seguida disse: “essa peste de que me livrei”. Disse isto no pressuposto de que eu sabia. Mas é claro que não sabia. No estrito respeito pelo omertà sulista, a minha mãe nunca se sentiu confortável para me contar que Cidália foi a primeira mulher de Jacintinho; Ti Cidália foi a tia Cidália. Aturou-o durante alguns anos, mas acabou por fugir para Lisboa via Grândola, deixando para trás os filhos. “As mulheres sofriam muito nesse tempo, meu menino”, disse em jeito de justificação. Não a censuro. Se tivesse ficado, teria sido ela a receber a picareta de Jacintinho na jugular, teria sido o sangue dela a colorir a parede tarantinesca que me despertou há vinte e cinco anos. E, com ou sem picareta, a verdade é que as mulheres alentejanas sofriam mesmo muito. As minhas avós não foram excepção. Embalada pelo ato de contrição, Cidália foi buscar ao armário fotos antigas do meu pai sem bigode ou barba, sentou-se na poltrona e desbobinou o passado da minha avó materna.

Perto do final da vida, já com filhos casados, o avô Manel casou com a sua mulher de sempre para que ela tivesse direito à pensão de viuvez criada por Marcello Caetano. A noiva, a minha avó Joaquina, era filha de uma mulher idêntica a Maria Francisca. Ou seja, a minha bisavó materna, de seu nome Maria Genoveva, era um clone da minha bisavó paterna: também teve vários filhos de três homens diferentes — a avó Joaquina (filha de outro pai incógnito), Emílio (filho do segundo homem), Etelvina, Conceição e o fundamental Jacintinho (filhos do terceiro e derradeiro companheiro). Com todo o rigor genealógico, posso então adiantar que tenho na família os quatro tipos de mãe alentejana inventariados pela antropóloga Isabel Marçano; entre avós e bisavós, tenho a mãe solteira, a mãe solteira que casa posteriormente com um homem que não o pai da criança, a mãe em união de facto com pai da criança, a mãe solteira que casa com o pai da criança. Não, não tenho uma árvore genealógica, tenho uma floresta genealógica composta por uma interminável rede de meios-tios, meios-tios avôs, meios-primos.

A maioria da população alentejana encara o suicídio como um fenómeno natural, tão natural como o vento

Além de ter sofrido com a ausência do pai, Joaquina sofreu com o esmero alcoólatra do marido. Manel era alto, bonito, bêbado e imprestável. Dos Foros do Sobralinho até São Domingos eram duas horas a pé por três caminhos alternativos: Corgo Fundo, Aldraba, Vale Dioguinho. Fosse qual fosse o caminho, o cenário era sempre o mesmo: a minha avó levava um filho pela mão, outro ao colo e ainda equilibrava um cesto na cabeça; ele ia atrás leve como uma pena. Protótipo do pai biológico, Manel nem sequer tocava na prole. A minha mãe lembra-se do dia em que recebeu o primeiro e último carinho do pai: por mero caso afagou-lhe o rosto enquanto vestia uma saia nova. Manel tinha ainda o hábito de levar lá para casa os camaradas da taberna que comiam a comida reservada para a minha mãe e tios. Este hábito até atingiu um pico cinematográfico: certo dia, acolheu um maltês que havia fugido da prisão. À tardinha, o homem chegou ao monte e entrou de imediato na galhofa com Manel, que deu ordens à mulher, “mata uma galinha para o jantar”. Mordendo a boca de raiva, Joaquina lá fez o jantar com a preciosa galinha enquanto Manel aprendia a atirar com o revólver do bandido, sem nunca se aperceber do medo estampado no rosto dos filhos. O maltês manjou a galinha com o revólver pousado na mesa, dormiu no casão, acordou, comeu outro manjar raro ao pequeno-almoço (ovos e linguiça frita), saiu e foi roubar um rebanho de ovelhas numa herdade vizinha. Era assim a vida com o avô Manel. O meu outro avô, apesar de nunca ter propiciado estes momentos de thriller, também não era santo. Havia dias em que forçava a avó Diamantina a levar-lhe a comida à venda; passava dias fora de casa de baile em baile, um hábito que se manteve já na velhice. Ia com o meu pai, mãe, tios e tias aos bailes nos Foros da Casa Nova, Bicos ou Fornalhas. A avó ficava em casa comigo e com os meus primos e nem considerava a situação como uma humilhação.

Ao ouvir estas histórias de irresponsabilidade e violência dos meus avôs e demais homens alentejanos, lembrei-me das histórias das ONGs que trabalham hoje em dia em África. Melinda Gates, por exemplo, tem uma regra de ouro: o dinheiro da ajuda internacional deve ser dado às mães e não aos pais; dar dinheiro aos homens é o mesmo que dar dinheiro à taberna, à sala de jogo, ao bordel; dar dinheiro às mulheres significa apostar na alimentação, saúde e educação das crianças. O Alentejo dos meus avôs era assim. Não os censuro mais uma vez. Naquele contexto, eu teria sido o maior pândego. No entanto, se não os censuro, também não posso evitar uma óbvia aritmética sentimental: quer no lado materno quer do lado paterno, devo tudo às minhas avós. Posso respeitar os avôs, mas só posso acarinhar as avós. Devemos-lhes tudo. Basta olhar para os factos. Em meados do século XX, a taxa de mortalidade infantil de Portugal era a mais alta da Europa. Em 1960, ainda era de 83 bebés mortos em 1000. Nem a Roménia era pior. O que isto tem de relevante? As minhas duas avós tiveram dezasseis partos e nenhum bebé ficou para trás, todos sobreviveram. Não foi milagre ou sorte. Houve, isso sim, um esmero maternal que tinha o seu quê de revolucionário. No seu clássico antropológico do início do século XX, Através dos Campos, Silva Picão afirmou que, apesar do infanticídio directo já não ser frequente, ainda se praticava infanticídio indirecto no Alentejo. Os casais pobres com quatro ou mais filhos rezavam para que Deus levasse dois ou três; nem sequer se preocupavam em alimentá-los ou acudi-los na doença; os moços andavam semi-nus pelos campos com as próprias mães a apelidá-los de “filhos da curta”; eram criados como crias de uma ninhada e só ganhavam o respeito dos pais quando começavam a trabalhar aos sete anos. Esta educação darwinista, digamos assim, começou a ser contestada pela geração das minhas avós, que faziam trinta por uma linha para, por exemplo, comprarem cabras para que não faltasse leite aos bebés e crianças. A história um dia fará justiça a esta geração de mulheres que criou o conceito de criança entre o fim da roda dos expostos (final século XIX) e o advento da pílula. E o que é mais espantoso é que elas iniciaram esta revolução mental contra a miséria, contra os elementos e, sobretudo, contra a cultura marialva dos maridos.

Poderíamos supor que uma sociedade progressista na hora do casamento só pode ser uma sociedade progressista na hora do divórcio ou separação, mas essa suposição estaria errada. No campo dos costumes, o Alentejo era progressista e reaccionário ao mesmo tempo. O progressismo alentejano terminava quando rapaz e rapariga se juntavam. A partir desse momento, ela era dele. Até aos anos 90, o Alentejo foi tão ou mais tradicionalista do que o norte no tema do divórcio/separação. Até corria na Igreja um adágio que dizia “no Minho há sacramentos sem mandamentos, no Alentejo há mandamentos sem sacramentos”. Ainda me recordo de mães que deixaram de falar às filhas que pediram o divórcio e de mães que até tomaram o partido do ex-genro.

Como se vê, a cultura machista do sul é idêntica à cultura machista do norte. Neste sentido, poderíamos supor de novo que a violência doméstica no Alentejo só pode ter números similares aos do norte. Mais uma vez, a suposição lógica estaria errada. A esmagadora maioria dos homicídios da violência doméstica – feminicídios – ocorre na Grande Lisboa e no norte; os Manuéis Palitos fazem parte da paisagem humana do norte, não do Alentejo. Quando confrontado com a traição (real ou imaginada), o nortenho mata a mulher em nome da honra; quando confrontado com a possibilidade de ser corno, o alentejano salva a honra masculina de outra forma: mata-se. Os números disponibilizados pela UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) confirmam este abismo cultural entre o homem do norte e o homem do sul. Os números do feminicídio nos distritos de Beja, Évora e Portalegre são baixíssimos; no distrito de Setúbal os números são elevados devido à Margem Sul. Em todo o distrito de Évora apenas quatro mulheres foram assassinadas entre 2004 e 2014 em contexto de violência doméstica; ocorreram nove feminicídios em Beja e seis em Portalegre. Quando afinamos a recolha por concelho, esta curiosidade torna-se ainda mais visível: durante uma década (2004-2014), Odemira, Santiago do Cacém e Sines nunca aparecem nos registos de feminicídio; ocorreram feminicídios em apenas quatro concelhos alentejanos (Évora, Elvas, Beja e Castro Verde). Quando reorientamos a pesquisa para as tentativas falhadas de feminicídio, as diferenças acentuam-se de novo. No distrito de Beja, entre 2004 e 2010, ocorreram duas tentativas falhadas, em Aveiro registaram-se trinta e quatro. Claro que o distrito de Aveiro (735 mil habitantes) tem mais população do que o distrito de Beja (150 mil), mas essa diferença populacional não é dois para trinta e quatro.
Muitos alentejanos preferem a morte física à morte social. Deste modo, a par da viuvez, o divórcio ou a ameaça de divórcio é a grande causa cultural do suicídio dos homens alentejanos.

Estes números não significam que o alentejano é mais decente do que o nortenho. O machismo do sul é tão virulento como o machismo do norte, a diferença está na canalização da violência; lá em cima a violência marialva provoca uma explosão, cá em baixo provoca uma implosão, o suicídio. No Alentejo, o divórcio ou a mera possibilidade do divórcio ainda representa a morte social, sobretudo na subcultura da taberna e do Cante. Antecipando o massacre de perguntas e insinuações do grupo de petiscos e das cantorias (“então, a tua ex-mulher anda com outro!”), muitos alentejanos preferem a morte física à morte social. Deste modo, a par da viuvez, o divórcio ou a ameaça de divórcio é a grande causa cultural do suicídio dos homens alentejanos. À semelhança da viuvez na velhice, a separação conjugal na meia-idade provoca uma crise no ideal masculino que é resolvida com o suicídio. Embora elas tenham mais razões de queixa, são eles que se revelam mais frágeis.

Quando saímos da casa da Ti Cidália, o meu pai foi à procura de um homem que tinha “sementes das boas”. Já um pouco cansado deste quixotismo agrícola, tentei explicar-lhe que as sementes são todas iguais, que não há pureza na semente alentejana por oposição à semente que encontra em qualquer loja da Grande Lisboa, mas ele não quis saber. Estava a encher o carro de sementes com os “sabores antigos” e não havia nada que o demovesse: “se tu estás a encher esse caderno de memória, eu estou a encher a bagageira de sementes”. Não encontrámos porém o tal mago das sementes, e voltámos para o carro. No caminho de regresso, passámos mesmo junto à igreja onde são realizados os funerais da família. Sem dizer nada, o meu pai sentou-se, calado e soturno, no banco exterior da casa mortuária onde há quatro anos passou 24 horas de agonia durante o velório do irmão mais velho, o tio Francisco. É outro estranho paradoxo: poderíamos assumir que o povo que aceita o suicídio com normalidade só pode ser um povo que não sofre com a morte (natural) dos outros. Novo erro. Não há momento mais doloroso do que um funeral alentejano. Ir a um enterro em São Domingos, Alvalade, Bicos ou Santiago é entrar numa rara experiência de desespero. Para começar, ninguém abandona o corpo durante a noite do velório. Na primeira vez em que assisti a um funeral no norte (Sepins), fiquei surpreendido quando por volta das oito da noite toda a gente foi para casa, deixando o corpo sozinho na sala mortuária. Nunca tinha visto semelhante coisa. Nos nossos funerais (no Alentejo e em Lisboa), os familiares nunca abandonam o corpo durante a noite. Só as crianças podem fazer gazeta. Como não se acredita em Deus e na eternidade da alma, resta este derradeiro respeito presencial pelo corpo. Ficar ali ao estilo de uma guarda de honra é a nossa maneira de rezar. A raiz histórica do fenómeno é fácil de explicar: hoje em dia, os padres demoram quarenta e cinco minutos a chegar às aldeias; antigamente estavam a meio dia de distância; o ritual do velório ficava assim a cargo das pessoas, que, sem acesso às senhas litúrgicas, só podiam prestar respeito ao corpo.

Há nesta guarda de honra uma evidente nobreza de carácter, é uma espécie de ética militar que não deixa ninguém para trás. Contudo, é uma nobreza de faroeste, é uma grandeza que esconde o lado abrasivo da morte no Alentejo. No dia seguinte, quando o corpo se prepara para beijar a terra, rebenta um enorme descontrolo emocional. Em comparação com o norte, há mais gritos e desmaios. Há desespero — sinal de uma cultura que não acredita na transcendência e que, em consequência, vê no funeral um final absoluto e não um ponto de passagem. Por outro lado, a ausência do ritual religioso impede a criação de um filtro para o desespero, cada um sofre para seu lado porque não há uma ritualização coletiva da morte. É o exato oposto do que se passa no norte. Nem de propósito, o sogro da Marta morreu durante estes dias, forçando-me a um triste e inesperado reencontro com a religiosidade nortenha.

Nas igrejas de Santiago, São Domingos ou Alvalade, o choro da viúva é um som isolado que faz eco nas paredes nuas e que nunca é acompanhado por um coro; o choro alentejano é um diálogo sem direito a banda sonora de fundo, choramos sozinhos. Na aldeia do Vasco, encontrei um choro diferente, um choro que nunca está sozinho, porque há dezenas de vizinhas a rezar o terço, marcando a atmosfera com a cadência ritmada do Pai Nosso Que Estás No Céu Santificado Seja O Vosso Nome Seja Feita A Vossa Vontade. Rezar o terço deve ser o ritual mais gozado da pós-modernidade, mas devíamos ter a humildade para abrir os ouvidos: dezenas de mulheres a rezar o terço criam uma cortina de som que protege a viúva, os filhos, os irmãos; aquele ritmo cadenciado comove-nos e ampara-nos, é a comunidade unida na dor, o funeral deixa de ser uma travessia individual, a morte torna-se menos desesperante. Se o tivesse aprendido a tempo e horas, eu teria rezado o terço ali naquela aldeia junto à fonte do Mondego.”

27.4.15

Morre-se mais por suicídio do que nas estradas

Dina Margato, in Jornal de Notícias

A cada dia que passa, pelo menos três pessoas põem termo à vida em Portugal, elevando os óbitos por suicídio para mais do dobro das mortes ocorridas na estrada.

Em 2014, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses registou 1074 casos de suicídio, contra 480 mortes em acidentes.

Na leitura de João Pinheiro, vice-presidente do Instituto, o número das mortes autoinfligidas nos últimos anos "tem sido constante", mesmo quando o ângulo de análise estabelece a relação com o total de autópsias. Em 2014, os suicídios corresponderam a 39% do volume global de diagnóstico de mortes ali realizado (5998). Em 2013, equivaliam a 38% do total de autópsias (6220). Nos anos anteriores, andaram entre os 34% e os 38%.

16.2.15

Um em cada cinco suicídios tem a ver com o desemprego

Ana Gerschenfeld, in Público on-line

O fenómeno é global – e causa nove vezes mais suicídios do que a recessão económica, conclui um novo estudo.

Cada ano, cerca de 45.000 pessoas põem fim à vida porque estão desempregadas. E isso já acontecia antes da recessão económica dos últimos anos – embora a crise global de 2008 tenha obviamente exacerbado a situação. Esta é a principal conclusão de um artigo publicado nesta quarta-feira na revista The Lancet Psychiatry por investigadores Universidade de Zurique (Suíça).

Já se sabia que existe uma relação entre desemprego e suicídio, explica em comunicado aquela instituição. Mas em geral, os especialistas têm-se focado apenas no pós-crise de 2008 e apenas num dado país ou região do mundo.

Agora, pela primeira vez, a equipa do sociólogo Carlos Nordt fez uma análise mais dilatada no tempo, com base em dados recolhidos entre 2000 e 2011. E em termos geográficos, o novo estudo também é muito mais abrangente do que os anteriores, considerando quatro regiões: América do Norte e do Sul; Europa do Norte e Ocidental; Europa do Sul e Oriental; e fora da Europa e América.

Para determinar quantos suicídios tiveram a ver com o desemprego durante a primeira década do século XXI, os cientistas recorreram, por um lado, aos dados de mortalidade de 63 países, incluindo Portugal, vindos da Organização Mundial da Saúde (OMS); e, por outro, a dados sobre as respectivas situações económicas desses mesmos países vindos do Fundo Monetário Internacional. Contudo, ficaram excluídos, por falta de dados, a China e a Índia, bem como grande parte de África. Isso explica, como faz notar Carlos Nordt ao PÚBLICO num email, que o número total de suicídios por ano estimado no estudo ronde os 230.000, ao passo que estimativa global da OMS para 2012 é de 800.000.

Com base nos seus cálculos estatísticos, os autores concluem, como já se suspeitava, que o desemprego associado à crise de 2008 provocou efectivamente um excesso de suicídios: cerca de 5000. Mas os novos resultados revelam uma realidade bem mais assustadora: mesmo em tempos de estabilidade económica (anos antes da crise), cerca de 45.000 pessoas suicidaram-se por ano porque não tinham emprego. Ou seja, o estudo mostra que o número de suicídios anuais associados ao desemprego é nove vezes maior do que o número directamente relacionado com a crise.

“O que isto quer dizer é que se nos focarmos apenas no ‘ano da crise’, estamos a subestimar o efeito do desemprego na taxa de suicídios”, disse-nos Nordt. “Por exemplo, se a taxa de desemprego era de 7% antes da crise e passou a ser de 10% durante a crise, analisar apenas o ano da crise leva-nos a estimar o efeito de apenas 3% do desemprego. Ora, é óbvio que, mesmo com uma taxa de 7% de desemprego, muitas pessoas já tinham, antes da crise, um risco de suicídio mais elevado.”

Assim, cerca de um suicídio em cada cinco é devido ao desemprego e, em todas as regiões consideradas, o risco de uma pessoa desempregada se suicidar é 20 a 30% mais elevado do que o risco de uma pessoa empregada se suicidar.

Os resultados mostram também que, de uma forma geral, tanto as mulheres como os homens, e tanto os mais novos como os mais velhos, são vulneráveis face às variações da taxa de desemprego.

Todavia, diz Nordt no referido comunicado, o estudo “sugere que nem todas as perdas de emprego têm o mesmo impacto: o efeito sobre o risco de suicídio parece ser mais forte nos países onde estar desempregado é uma situação invulgar. É possível que um aumento imprevisto do desemprego desencadeie maiores receios e insegurança nesses países do que naqueles com níveis de desemprego [normalmente] mais elevados”.

Interrogado mais especificamente sobre a situação portuguesa e de outros países do Sul da Europa particularmente afectados pela crise (Grécia, Irlanda e Espanha), Nordt diz-nos acreditar “que Portugal foi o mais afectado em termos de suicídios ligados ao desemprego” – ressalvando contudo que “a qualidade dos dados disponíveis (o número registado de suicídios) era bastante fraca”, já que faltavam os anos de 2004 a 2006. Quanto à evolução da situação de Portugal desde 2011 – e ao impacto da austeridade sobre as taxas de suicídios –, o cientista responde-nos que tem dados relevantes.

Uma outra conclusão notável do estudo é que os suicídios associados à actual recessão económica mundial começaram a aumentar seis meses antes do início “oficial” da crise em 2008. “A evolução do mercado de trabalho foi claramente antecipada e as incertezas relativas à situação económica já tiveram, naquela altura, consequências negativas”, diz o psiquiatra Wolfram Kawohl, co-autor do estudo. “O aumento da pressão no local de trabalho – nomeadamente através das restruturações – pode portanto fomentar os suicídios.”