4.10.21

“Não falar do suicídio não faz com que ele não exista”: esta associação quer apoiar os sobreviventes

Carolina Pescada, in Público on-line

A associação Sobre Viver Depois do Suicídio, criada em Junho de 2021, pretende apoiar os sobreviventes de suicídio e sensibilizar a sociedade para o tema. “Um dos primeiros obstáculos que os sobreviventes nos relatam é não serem compreendidos no seio da comunidade.”

Quando o pai de Sara Miguéns se suicidou, em 2019, Sara comentou várias vezes com a psicóloga que sentia a necessidade de fazer parte de um grupo de apoio especializado. “Precisava de ouvir outras pessoas e de falar com outras pessoas que conseguissem mapear-se com os meus sentimentos e as questões que me assombravam numa fase inicial”, recorda, em entrevista ao P3. Foi só há uns meses que encontrou a associação Sobre Viver Depois do Suicídio, num scroll de domingo pelo Facebook. “Achei muito interessante o facto de ser focada na pósvenção, ou seja, em olhar para os designados sobreviventes de suicídio, as pessoas que ficam à volta e que são impactadas pelo suicídio [de alguém], e desenvolver mecanismos para as apoiar.”

Esta associação foi criada, em Junho de 2021, por um grupo de sobreviventes e de profissionais na área da psicologia e do serviço social que sentiram haver uma lacuna no apoio àqueles que perdem alguém desta forma. Apoiada por um programa de aceleração da Casa do Impacto, “um hub de empreendedorismo social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, como explicou Afonso Borga, membro da direcção, ao P3, esta associação trabalha em duas dimensões: uma primeira no apoio directo aos sobreviventes, através de grupos de apoio informal e apoio psicológico especializado; e uma segunda numa perspectiva de comunicação e sensibilização sobre o tema, para combater a estigmatização do mesmo.

“Um dos primeiros obstáculos que os sobreviventes nos relatam é não serem compreendidos no seio da comunidade”, o que impede a “concretização do processo de luto”, explica Afonso Borga. As campanhas de sensibilização e educação sobre o suicídio pretendem levar este tema cada vez mais para dentro da sociedade civil, para que seja encarado como uma questão de saúde pública e assim se possam discutir respostas.

Com a morte do pai, que tinha sido recentemente diagnosticado com bipolaridade, Sara Miguéns, gestora de recursos humanos, sentiu que era fácil cair no estigma e que teria, por isso, de o combater. “O suicídio, o tabu e a sua prevenção acabaram por ganhar uma dimensão importante na minha vida”, diz. Por isso, sentiu a necessidade de se informar, de falar e escrever sobre o tema, para “minimizar um bocadinho essa vergonha”. “Se nós naturalizarmos o assunto, se muitas pessoas falarem sobre isto de uma forma aberta, acredito que possa haver um impacto positivo na prevenção.”

Combater este estigma passa também por combater o estigma associado às doenças mentais. E, para Sara, o primeiro passo é acabar com a ideia de que estas são uma escolha e que conseguimos lidar com elas sozinhos. “Temos de primeiro aceitar que não controlamos tanto quanto achamos aquilo que se passa na nossa cabeça, e que isso pode ter como consequência uma doença mental. E que, tendo uma doença mental, não é suposto sujeitarmo-nos e acharmos que temos de viver com as limitações que ela nos causa, que às vezes são tão grandes. Quando partimos uma perna, não vamos curar a perna sozinhos com força de vontade. Passa-se o mesmo com as doenças mentais.”

Em termos globais, o suicídio é a segunda causa de morte entre os jovens entre os 15 e os 29 anos (apenas superada pelos acidentes rodoviários), de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2018, segundo dados disponíveis pelo Instituto Nacional de Estatística, registaram-se 27 mortes por suicídio na faixa etária entre os 15 e os 24 anos em Portugal, de entre as 989 mortes por suicídio que foram registadas em todas as idades.

Linhas de Apoio e de Prevenção do Suicídio em Portugal


SOS Voz Amiga
Lisboa
Das 16h às 24h
213 544 545 - 912 802 669 - 963 524 660

Linha Verde gratuita - 800 209 899 (Entre as 21h e as 24h)

Conversa Amiga
Inatel
Das 15h às 22h
808 237 327
210 027 159

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
Voades-Portugal
Das 16h às 22h
222 030 707

Telefone da Amizade
Porto - Desde 1982
Das 16h às 23h
222 080 707

Voz de Apoio
Porto
Das 21h às 24h
225 506 070

Todas estas linhas são de duplo anonimato — garantido tanto a quem liga como a quem atende. Para encaminhamento, a linha do SNS24 (808 24 24 24) é assumida por profissionais de saúde.
Partilhar histórias pode inspirar sobreviventes

A 10 de Setembro, Sara participou numa dinâmica da associação no âmbito do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio: quatro sobreviventes de suicídio numa conversa sobre o seu processo de luto. Um pouco à semelhança dos círculos da palavra, que a associação começou a desenvolver uns dias depois, que acabam por ser a materialização dos grupos de apoio especializado que Sara procurava — e a primeira experiência não desiludiu. “Éramos e somos pessoas completamente diferentes. Tínhamos perdido familiares diferentes, estávamos em fases diferentes da vida, mas, apesar de toda esta diferença, deu-me um conforto muito grande poder partilhar e verdadeiramente acreditar que aquelas pessoas conseguiam compreender o que eu sentia, porque passaram pelo mesmo”, explicou Sara.

A conversa, sublinha, trouxe-lhe esperança: “Uma das coisas que tínhamos em comum era o facto de todos termos arranjado formas de, mais do que sobreviver, estarmos a viver.” A partilha de histórias, acredita, pode inspirar outros sobreviventes que venham a integrar os círculos da palavra. “Espero que possam encontrar aqui, por um lado, esta empatia, esta companhia de ‘não estou sozinho a passar por isto’, e, por outro lado, a esperança de olhar em frente e perceber que é possível, demore o tempo que demorar, ultrapassar o enorme sofrimento que agora sentem e ficar bem.”

Fernanda Abrantes, professora de Inglês, também fez parte desta dinâmica e partilha a opinião de Sara. “É bom ter alguém que nos entende quase sem falarmos. As pessoas que não passaram por perdas tão grandes não conseguem entender, e felizmente que assim é.” Fernanda perdeu o filho em Maio de 2018 e acredita que quem passa por uma experiência de proximidade de um suicídio não pode, em caso algum, fechar-se em si próprio. “Seremos sempre pessoas diferentes depois, e cada um faz o luto à sua maneira. Há coisas que ajudam uns e não ajudam outros. Mas aquilo que não ajuda mesmo nada é o silêncio. E daí a necessidade que senti, de partilhar com os outros a ansiedade, a culpa, porque acredito e experienciei que a dor partilhada não desaparece, mas torna-se um bocado mais leve.”

Pouco depois da morte do filho, Fernanda decidiu que tinha de fazer alguma coisa em honra de Pedro Miguel, e que tinha de ser nesta área, falando sobre a saúde mental e alertando para a importância de a desmistificar. “Precisamos de acabar com o estigma, temos de falar sobre o assunto. Porque não falar não significa que não existe. Existe e é pior que exista escondido. Isto não é um mal social de A, B ou C; é de todos”, reitera. E alerta: “Ninguém está livre de vir a passar por uma situação, de não estar bem mentalmente ou de ter alguém por perto que não esteja.” Por isso, quando soube da existência da Sobre Viver Depois do Suicídio, quis de imediato fazer parte do projecto e voluntariou-se. “Acho que a associação será — tenho muita esperança de que seja — uma condutora de boas energias, na partilha, na vivência de diferentes formas de estar e de ser e de encarar o luto.”

Tanto Fernanda como Sara partilham a opinião de que é urgente aumentar a resposta social aos sobreviventes. “Estas pessoas têm muito mais propensão para a doença mental e, infelizmente, para o suicídio, e não há grande estrutura de acompanhamento, por exemplo, em termos do SNS”, diz Sara, para quem é imperativo garantir os cuidados de saúde mental continuados e consequentes a estas pessoas. Mais do que tudo, Sara acredita que estes cuidados devem ser pró-activos, ou seja, que não seja necessário o sobrevivente procurar esse apoio, mas que, em querendo, ele seja desencadeado de forma quase automática.

A falta de apoio e referenciação de serviços por parte do Estado foi uma lacuna também identificada pela associação. “Nós queremos ter esta vertente de apoio social, de apoiarmos pessoas que não têm possibilidades de pagar um psicólogo”, adiantou Afonso Borga, assumindo que, por agora, este apoio ainda está em desenvolvimento. Em parceria com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, elaboraram já um manual de apoio sobre o suicídio, um guia sobre o tipo de respostas que um sobrevivente pode encontrar. Em agenda está a constituição de uma bolsa nacional de psicólogos, prevista para 2022. O objectivo é que haja, a nível nacional, psicólogos referenciados na área da suicidologia, uma vez que “há questões muito concretas no luto por suicídio”. E alerta ainda para importância de os cuidados serem continuados. “Os principais efeitos neste tipo de luto dão-se muito tempo depois”, pelo que o apoio não pode acontecer só numa fase inicial.

A associação tem estado a trabalhar com a Universidade de Évora e, por isso, uma grande parte da equipa (professores, psicólogos, investigadores) está nessa zona, mas a direcção não sente ainda a necessidade de uma sede. “Queremos que haja uma descentralização dos tipos de apoio e que consigamos chegar a todo o país”, explica Afonso Borga. Nesse sentido, a Internet e as redes sociais – por onde tem passado muita da acção da associação – têm ajudado enormemente. Talvez no futuro pensem em dinamizar os círculos da palavra de forma presencial: “Sentimos que seria diferente o estar presencialmente, mas, por agora, online tem corrido bem.”