18.10.21

Estratégia contra a pobreza: comissão quer consultas de rotina e rastreios nas escolas para avaliar saúde mental

Helena Bento, in Expresso

Comissão responsável pela Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, que está em consulta pública, defende um aumento da rede de psicólogos nas escolas e “soluções mais efetivas” para a habitação, explica Edmundo Martinho, coordenador da comissão que elaborou a estratégia e provedor da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa. Versão final do documento deverá ser aprovada no início de novembro

Combater a pobreza implica assegurar mais cuidados de saúde mental. A comissão responsável pela Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, que está em consulta pública até 25 de outubro, defende um aumento da rede de psicólogos nas escolas e consultas de rotina para detetar problemas psicológicos de forma precoce. Também propõe “soluções mais efetivas” para a habitação: “Se não conseguirmos garantir estabilidade, dificilmente haverá estratégias bem-sucedidas para os problemas de saúde mental. E estes problemas agravam as situações de pobreza”, diz ao Expresso o coordenador da comissão e provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

A preocupação com a saúde mental é transversal a toda a estratégia. Porquê?
Não há uma relação direta entre pobreza e saúde mental, mas sabemos que as questões de saúde mental são críticas em Portugal. Basta olhar para a prioridade que foi dada a esta área no PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]. Há duas componentes aqui: a prevenção e deteção precoce de problemas psicológicos, por um lado, e a necessidade de haver soluções de suporte mais efetivas de natureza assistencial e habitacional, por outro lado.

Isto é importante para todas as pessoas mas ainda mais para as famílias e pessoas em situação de pobreza, porque a ausência dessas duas componentes tende a agravar outras fragilidades e circunstâncias destas pessoas. É dada uma importância especial a crianças e jovens porque é nessas idades que muitos dos problemas de saúde mental se manifestam, e é crucial que sejam detectados logo nessa fase.

Esse é um dos eixos da estratégia, em que se propõe que haja um acesso gratuito e facilitado aos cuidados de saúde por parte dos agregados familiares mais desfavorecidos, nomeadamente através do acesso a serviços médicos de proximidade, pela expansão das equipas comunitárias de saúde mental para a infância e a adolescência. É muito importante que as crianças e os jovens, sobretudo os jovens com percursos profissionais e pessoais muito desesperados, desintegrados e descrentes sejam acompanhados de uma forma precoce e estas equipas podem desempenhar aqui um papel essencial.

Outro dos eixos diz respeito ao emprego...
Sim. Há todo um conjunto de ações e mecanismos que podem ser implementados no sentido de combater a discriminação e marginalização no contexto laboral. Há situações que, se não forem detectadas precocemente e não forem acompanhadas, dificultam a integração do mercado de trabalho. A questão da habitação, que é outro eixo da estratégia, acaba por ser transversal a tudo isto, porque a estabilidade habitacional é muito importante para a estabilidade em geral e garante que as várias abordagens de saúde mental tenham mais possibilidades de êxito. Em Lisboa, por exemplo, uma parte substancial da população sem-abrigo tem problemas de saúde mental, o que mostra que, de facto, a questão da habitação é central. Se não conseguirmos garantir estabilidade de vida e de habitação, dificilmente haverá estratégias bem-sucedidas para os problemas de saúde mental, problemas estes que, de resto, são um fator adicional de fragilidade e agravam as situações de pobreza.

Promover a saúde mental e a deteção precoce de problemas psicológicos em meio escolar é uma das prioridades. Como é que isso poderá ser feito?
Esse aspecto cruza-se com uma proposta mais genérica que consta da estratégia e que tem que ver com o acompanhamento médico e de saúde das crianças em ambiente escolar. A proposta em cima da mesa é que haja consultas de rotina, quer através de serviços de proximidade, quer através dos serviços médicos regulares, para que haja uma deteção precoce das várias situações.

Do nosso ponto de vista, há um conjunto de rastreios e avaliações regulares que deveriam ser feitos em meio escolar, precisamente para se poderem detetar situações de risco para a saúde mental. As escolas têm de estar alertas para isto. Temos de encontrar uma solução para garantir que haja um acompanhamento gratuito e facilitado, de que possam beneficiar, sobretudo, os agregados mais desfavorecidos, para não haver obstáculos dessa natureza que dificultem ou impeçam o desenvolvimento integral das crianças.

O aumento da rede de psicólogos nas escolas é uma das medidas propostas, mas o Governo já deu a entender que não vai contratar mais profissionais desta área além dos 300 que foram admitidos recentemente. Seriam necessários mais?
Cabe às entidades setoriais, isto é, da área da Saúde e da Educação, perceber como aumentar essa rede - se através da contratação de profissionais, se utilizando de uma forma mais extensa os que já existem. A estratégia não detalha, por não ser esse o objetivo nesta fase, as formas de concretização das medidas propostas. O que seguramente sabemos é que esta rede deve ser reforçada na sua capacidade de intervenção. Foi importante para nós sinalizar a importância de ter respostas adequadas em todo o território nacional, dando particular atenção às zonas e famílias mais desfavorecidas, em que estas questões não são tratadas como deveria ser. E esse apoio deve começar por ser dado, obrigatoriamente, nas escolas, na nossa opinião.

Na saúde, propõe-se, em concreto, a criação de mecanismos de acesso gratuito, para crianças de agregados desfavorecidos, a consultas de rotina através de serviços médicos de proximidade. Que mecanismos são estes?
Aqui o SNS tem uma palavra importante a dizer. Independentemente dos mecanismos que sejam criados, o importante é que haja um acesso facilitado e gratuito aos serviço - não podemos deixar que haja barreiras de nenhum tipo. A própria falta de literacia pode transformar-se, por vezes, numa barreira. Dou o exemplo da saúde oral: há famílias que acham que não se deve cuidar dos dentes muito cedo, mas é precisamente ao contrário.

No caso da saúde mental, o importante é alertar as famílias para a adoção de comportamentos de promoção da mesma. O que pressupõe, por exemplo, que não sejam acrescentados processos de marginalização e que haja compreensão e apoio, para que a criança sinta que estão todos a remar para o mesmo lado. Também é importante que a família atribua importância à intervenção precoce e que saiba que, quanto mais cedo as situações forem detectadas, mais bem sucedidas serão as intervenções. Daí que, além da escola, seja necessário envolver a família ao máximo nestes processos. A prevenção e intervenção exigem a mobilização de todos os meios, não só os da Saúde, como os do setor social. A resposta a dar tem de ser integrada e robusta.

Os “serviços itinerantes” para crianças propostos na estratégia servem para colmatar as assimetrias regionais que existem no acesso aos cuidados?
A ideia é essa, sim. Não podemos ter a veleidade de pensar que temos serviços com a mesma configuração em todo o território nacional. Tem de haver recursos e soluções diferenciadas, e equipas a ir ao encontro das pessoas e famílias que vivem em zonas menos dotadas de equipamentos públicos. Ninguém pode ficar sem o acesso aos cuidados a que tem direito. Não identificámos essas zonas, mas há algumas que já estão identificadas e localizam-se, em grande medida, nas áreas metropolitanas e zonas mais fragilizadas das áreas metropolitanas. Seja como for, isto é algo que tem de ser visto à escala do país, com intervenções onde estas sejam consideradas mais necessárias.

Para a área do trabalho, fala-se especificamente em políticas de integração. O que se pretende?
As questões da saúde mental são, em muitas circunstâncias, uma barreira à entrada no mercado de trabalho, porque há uma descrença das pessoas nas suas capacidades e falta de confiança em si próprias, o que leva a um afastamento do trabalho. É necessário que estas pessoas disponham de mecanismos de suporte que lhes permitam entrar ou regressar de forma sustentada. Episódios mais críticos de saúde mental podem afetar a relação com aquele posto de trabalho em concreto, daí a necessidade de implementar estes mecanismos.

No caso da depressão, por exemplo, o que as orientações internacionais dizem é que as baixas devem ter a menor duração possível, porque a presença no local de trabalho pode ajudar à recuperação e o afastamento, por outro lado, pode agravar ainda mais a situação.

Também pode acontecer o contrário...
Sim, é verdade. Mas é também por isso que defendemos que o combate à pobreza tem de ser entendido como um desígnio nacional, um desígnio de toda a sociedade portuguesa, e isso inclui também as empresas. Só é possível que tenhamos sucesso se todos entendermos a importância da mobilização coletiva. Não se pode esperar que seja só o Estado a fazê-lo. Se acharmos que isto é uma responsabilidade exclusiva do Estado, dificilmente seremos bem-sucedidos.

O que cabe às empresas fazer?
O mais importante é estarem atentas, por exemplo, às condições em que é exercida a medicina do trabalho. Essas consultas podem servir para detetar precocemente problemas de saúde mental. Há vários mecanismos internos que podem ser criados e muitas empresas já têm, hoje em dia, formas de ajudar os seus trabalhadores e apoiá-los quando surgem questões específicas nesta área. São cada vez mais as empresas que estão preocupadas com a saúde mental dos seus trabalhadores, além da saúde física, e é preciso mobilizar as restantes. Este combate à pobreza ou é de todos ou dificilmente será bem-sucedido.