25.10.21

Amélia Bastos: “As famílias com crianças têm um risco de pobreza acrescido. O que é contranatura”

Natália Faria, in Público on-line

A professora auxiliar no ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa integrou a equipa que elaborou a proposta de Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030, cuja discussão pública termina esta segunda-feira, dia 25.

Em que medida pode a entrada na escolaridade obrigatória aos três anos de idade ajudar a reduzir a pobreza entre as crianças, como propõe a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030, cuja discussão pública termina na segunda-feira?
As questões da pobreza infantil podem, grosso modo, ser conduzidas de acordo com dois grandes vectores: os que têm a ver com o reforço dos recursos económicos da família e os ligados à disponibilidade de serviços. Nesta linha, são propostas medidas que têm a ver com escolaridade, saúde, habitação, ocupação de tempos livres. Portanto, são medidas que visam criar um conjunto de condições capazes de quebrar o ciclo de transmissão intergeracional da pobreza. E essa quebra passa por conseguir atingir condições de equidade — não de igualdade, mas equidade — para as crianças. Porquê? Porque as crianças de meios mais desfavorecidos têm, mesmo antes da nascença, desvantagens comparativas relativamente aos seus pares. Ora diminuir estas desvantagens comparativas, em termos de escolaridade, significa dar às crianças um empowerment que permita um desenvolvimento cognitivo que as possa equiparar e apetrechar para o sucesso escolar. Fomentando o sucesso escolar, estamos a fomentar também a sua qualificação e a prepará-las melhor para o mercado de trabalho e, portanto, a contribuir para a tal quebra no ciclo de transmissão intergeracional da pobreza.

Se a nossa unidade de análise é a criança, então a lente tem de ser a lente da criança Amélia Bastos

Olhando para trás e para a evolução dos indicadores de pobreza, por que é que esta se mostra tão persistente em Portugal, e, por outro lado, que medidas se revelaram mais eficazes e merecem como tal ser reforçadas?
No que respeita às crianças, é importante construir um modelo de apoio de suporte às famílias com crianças, nomeadamente àquelas que vivem em condições mais vulneráveis. Se olharmos para o risco de pobreza entre famílias com crianças e sem crianças, logo aí vemos que as famílias com crianças têm um risco de pobreza acrescido. O que é contranatura, porque dá-nos a sensação de que ter uma criança num agregado familiar constitui um factor de vulnerabilidade. E não tem existido um olhar para as crianças como um grupo etário prioritário na luta contra a pobreza. Isso não tem sido feito e talvez aí radique alguma das razões pelas quais as crianças continuam a ser o grupo etário mais vulnerável à pobreza. Por outro lado, continuamos a ter um conhecimento muito deficitário da real condição de vida das crianças, porque a lente com que as observamos é sempre uma lente indirecta, que incide na família. Mesmo as estatísticas oficiais do Eurostat e do INE têm como unidade de observação a família, quando a unidade de análise devia ser a criança. Nesse âmbito, estou a coordenar um projecto no Laboratório Colaborativo ProChild para a construção de um Observatório da Criança, que pretende disponibilizar uma plataforma digital que agregue informação sobre a criança e sobre as suas condições de vida. As políticas públicas só podem ser eficientes se forem alimentadas por diagnósticos actuais, rigorosos e precisos dos problemas que existem.

Consegue dissociar-se a situação da criança do seu contexto familiar?
Não julgo que se possa dissociar a situação da criança do seu contexto familiar, julgo é que, se a nossa unidade de análise é a criança, então a lente tem de ser a lente da criança, ou seja, tem de ter em conta o bem-estar da criança, onde, além das condições de vida do seu agregado, entram elementos específicos da criança como a qualidade de ensino, a qualidade dos serviços de saúde, os espaços de lazer… Sendo que estamos perante um grupo muito heterogéneo, que vai dos 0 aos 17 anos de idade, e as estatísticas mostram-nos uma diferenciação etária, apontando os grupos etários mais velhos como sendo aqueles em que a intensidade da pobreza se faz sentir de uma forma mais significativa e mais persistente.

Está confiante na capacidade de operacionalização das medidas propostas?
Sem dúvida nenhuma. Parece-me uma oportunidade para pensarmos as questões da pobreza, em particular no que diz respeito à pobreza infantil. É com muita satisfação que vejo que o eixo relativamente às crianças está autonomizado e é o primeiro eixo considerado nesta estratégia.

Mas será o país capaz de adoptar esta estratégia de forma transversal, fazendo com que o combate à pobreza deixe de estar acantonado no Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social?
A minha esperança é essa. Acho que as nossas crianças e a nossa população pobre constituem uma realidade de dimensão muito gritante na nossa sociedade e que todos nos deveríamos, não digo escandalizar que talvez seja uma palavra demasiado forte, mas pelo menos insurgir contra o facto de na nossa sociedade existirem co-cidadãos a viver em condições tão pouco dignas.