18.10.21

Do RMG ao RSI. Os momentos mais marcantes da “nova geração de políticas sociais”

Natália Faria, in Público on-line

Como nasceu, porquê e que voltas deu. Esta é a história de uma medida pensada para atenuar a pobreza mais severa. Tudo começou com uma recomendação do Conselho da Europa.

Junho de 1992

A recomendação n.º 441 do Conselho da Europa, aprovada a 24 de Junho de 1992, propõe aos países da União Europeia que reconheçam “o direito fundamental dos indivíduos a recursos e prestações suficientes para viver em conformidade com a dignidade humana”.

1993

O PCP apresenta o primeiro projecto-lei para se criar um rendimento mínimo de subsistência, chumbado com os votos contra do PSD e do CDS/PP.

1994

É a vez de o PS apresentar o seu projecto-de-lei para a criação de um rendimento mínimo garantido, ao qual PSD e CDS/PP se voltam a opor, por considerarem, como alegou então o deputado social-democrata José Vieira de Castro que tal medida iria “perturbar o equilíbrio da Segurança Social”.

Janeiro de 1996

Ganhas as eleições, o PS leva ao Parlamento, em Maio, a proposta de lei que cria aquela que viria a ser apresentada como “a mais emblemática” da “nova geração de políticas sociais”. Contra, uma vez mais, PSD e CDS/PP que continuavam a entender, como alegou o então deputado social-democrata Luís Filipe Menezes, que tal medida configuraria “um desincentivo adicional à busca de emprego”.

Passado o crivo parlamentar, o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ferro Rodrigues, cria a Comissão para o Rendimento Mínimo (RMG), presidida por Paulo Pedroso, responsável por criar as condições para o lançamento de uma prestação pecuniária não retributiva capaz de garantir um rendimento mínimo de subsistência a quem não tinha recursos e que vinha associada a um programa de inserção dos respectivos beneficiários. Podiam requerer o RMG todos os portugueses a partir dos 18 anos, os jovens que, sendo menores, já possuíam responsabilidades familiares e os imigrantes com autorização de residência.

1 de Julho de 1996 a 30 de Junho de 1997

Decorre a fase experimental do RMG, cujo funcionamento se baseava muito no modelo francês, associando à prestação pecuniária um programa de inserção com um total de 220 projectos-piloto em territórios nos quais já havia alguma experiência de trabalho em parceria, coordenados por Comissões Locais de Projecto.

Os projectos-piloto abrangeram indivíduos e famílias em situação de grave carência económica, considerando-se que esta existia quando a totalidade dos rendimentos auferidos pelos membros de um agregado fosse inferior à soma dos seguintes montantes: 100% do valor da pensão social por cada indivíduo maior, até ao segundo; 70% do valor da pensão social por cada indivíduo maior, a partir do terceiro e 50% do valor da pensão social por cada indivíduo menor.

1 de Julho de 1997

O RMG foi generalizado a todo o território nacional e as CLP foram substituídas por Comissões Locais de Acompanhamento (CLA). No decurso do período experimental, a prestação do RMG era equiparada a um subsídio eventual, sem possibilidade de recurso em caso de indeferimento. Com o alargamento a todo o território, passou a ser entendido como um direito subjectivo.

1998

A composição da Comissão Nacional do Rendimento Mínimo é alterada por forma a incluir um representante do Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Técnicas. Nesse ano, Paulo Portas, recém-chegado à liderança do CDS/PP, começa a pregar em feiras e mercados contra “o subsídio à preguiça”, o “subsídio dos ciganos”, contribuindo fortemente para a estigmatização generalizada da medida, nomeadamente entre os seus beneficiários.

2002

No programa eleitoral do PSD para as legislativas desse ano, Durão Barroso propunha-se “alterar a filosofia do RMG, reorientando-o para uma lógica de reinserção e de combate à exclusão social, em vez da actual lógica assistencial”.

2003

O RMG é substituído pelo Rendimento Social de Inserção, por iniciativa do novo ministro da Segurança Social e do Trabalho António Bagão Félix, disposto a “acabar” com o que considerou serem “as situações abusivas” que ajudaram a descredibilizar a medida. Os princípios básicos da medida mantiveram-se, com alterações, porém, ao nível da contabilização dos rendimentos, das condições de elegibilidade e do conceito de agregado familiar. Passou a poder candidatar-se ao RSI só quem estivesse inscrito como candidato a um emprego no centro de emprego há pelo menos seis meses. As CLA foram substituídas pelos Núcleos Locais de Inserção (NLI).

2004

Um despacho conjunto dos ministérios da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas e da Segurança Social e do Trabalho determina a dinamização de programas ocupacionais (POC) no âmbito da prevenção dos fogos florestais, sendo destinatários prioritários dos POC os titulares do RSI inscritos nos centros de emprego (num princípio que haveria de se alargar, dois anos depois, aos titulares de prestações de desemprego).

2006

É criado o Indexante dos Apoios Sociais, que substitui a pensão social enquanto referencial para fixação, calculo e actualização de prestações sociais.

2008

O MTSS regulamenta as medidas “Contrato emprego-inserção” e “Contrato emprego-inserção+”, através das quais os desempregados beneficiários de subsídio de desemprego ou social de desemprego e os beneficiários do RSI ficam obrigados a desenvolver “trabalho socialmente necessário”.

2010

O decreto-lei n.º 70/2010, de 16 de Junho, altera as regras da prestação. Os beneficiários entre os 18 e os 55 anos que não estejam a trabalhar e com capacidade para o efeito são abrangidos por medidas de reconhecimento e validação de competências escolares ou profissionais, em medidas de formação, educação ou de aproximação ao mercado de trabalho num prazo máximo de seis meses após a subscrição do programa de inserção, mantendo-se a imposição de que todos os menores em idade escolar frequentarem o sistema de ensino. Quem recuse emprego, trabalho socialmente necessário e formação perde o direito à prestação.

2012

Ao fim de seis meses no Governo, o social-democrata Pedro Passos Coelho, decide, em linha com o “esforço de contenção orçamental” ditado pela presença da troika, reforçar o “carácter transitório e a natureza contratual” do RSI. Como? Excluindo do acesso à prestação todo os que detivessem um carro, um barco ou uma aeronave de valor superior a 25.279 euros - 60 vezes o Indexante dos Apoios Sociais (IAS) -, bem como depósitos ou acções acima desse valor.

Era, como alegou o então ministro Pedro Mota Soares, uma forma de “separar o trigo do joio”, porquanto, segundo o então ministro da Solidariedade e Segurança Social, havia então cerca de 60 mil beneficiários do RSI que não estavam sequer activamente inscritos nos centros de emprego. A atribuição da prestação passa a depender da celebração de um contrato de inserção e a sua renovação deixa de ser automática. Os beneficiários passam ainda a ter de efectuar pelo menos 15 horas semanais de “trabalho socialmente útil”. A falta de comparência injustificada a qualquer convocatória dos gestores da prestação basta para que esta seja retirada. De fora ficam também aqueles cuja subsistência é assegurada pelo Estado, nomeadamente os reclusos.

2013

O valor de referência desce de 189,52 euros por mês (45,208% do IAS) para 178,15 euros (42,495% do IAS). Nesse ano e nos seguintes, com o país ainda mergulhado na crise social e económica, a actualização do IAS é “congelada” e o universo de beneficiários foi baixando consecutivamente: os mais de 500 mil beneficiários de 2010 tinham descido para pouco mais de 200 mil a partir do final de 2014.

2015

O Tribunal Constitucional declara “com força obrigatória geral” a inconstitucionalidade da norma que exige a cidadãos portugueses e aos membros do seu agregado um período mínimo de um ano de residência legal em Portugal para poderem aceder ao RSI, por “violação do princípio da igualdade”.

2016

Numa altura em que o RSI não chega a mais do que 2,8% da população residente, o Governo presidido por António Costa reverte muitas das alterações efectuadas em 2012, fazendo aumentar o montante a atribuir a cada indivíduo maior de 50% para 70% do valor de referência do RSI, enquanto a percentagem do montante a atribuir por cada filho menor sobe de 30% para 50%. A mesma portaria actualiza o valor de referência do RSI para 180,99 euros, repondo com isso 25% do corte operado em 2012 e assume o compromisso de fazer novas reposições de 25% do corte ao ano até perfazer, em 2019, o valor fixado em 2012 – 189,52 euros.

2017

Dá-se uma nova reposição de 25% do corte verificado em 2012 no valor de referência do RSI, que sobe para os 183,84 euros. Em meados do mesmo ano, o direito à prestação do RSI deixou de estar dependente da celebração do programa de inserção. Sob a batuta do ministro Vieira da Silva, o RSI deixa de estar interdito a quem detenha bens móveis de valor superior a 25 mil euros e volta a ser renovado automaticamente, pelo período de 12 meses, embora sujeito à verificação oficiosa de rendimentos.

Do mesmo modo, o RSI passa a estar acessível a quem esteja temporariamente internado em comunidades terapêuticas ou de cuidados continuados integrados e a detidos em estabelecimentos prisionais, desde que os pedidos sejam apresentados nos 45 dias anteriores à data previsível de alta ou libertação.

2021

O Governo apresenta uma proposta de Estratégia Nacional contra a Pobreza até 2030 que prevê a reavaliação e aperfeiçoamento do RSI "de forma a assegurar a sua centralidade no quadro das políticas sociais de combate à pobreza, o aumento da sua abrangência, da sua eficácia e da sua eficiência”. O plano está em discussão pública.