28.10.21

Governo ainda pode decretar aumento do salário mínimo

Ana Sá Lopes, in Público on-line

Estado pode aumentar o capital da CP em 1,8 mil milhões para sanear a dívida, ultrapassando o chumbo do Orçamento em que estava inscrita a despesa excepcional.

A dissolução do Parlamento não inviabiliza o aumento do salário mínimo, já que é uma decisão que pode ser executada por decreto. Fernando Rocha Andrade, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, afirma ao PÚBLICO que “o aumento do salário mínimo pode entrar em vigor em Janeiro”. No caso do aumento do salário mínimo na Função Pública, também é possível fazê-lo mesmo governando em duodécimos, já que “tem quase nulos reflexos orçamentais”, explica o ex-governante.

Quanto ao aumento dos 0,9% para toda a Função Pública que o Governo já tinha decidido, também pode concretizá-lo por decreto. “O Governo tem poderes para efectuar o aumento dos 0,9%. Resta saber se tem recursos financeiros a governar em duodécimos”, diz Fernando Rocha Andrade, que defende que, caso não haja folga financeira, a solução pode passar por diferir o aumento, com retroactivos, para um futuro Orçamento. “O Governo decreta juridicamente o aumento dos 0,9%”, mas adia o reembolso “até haver um orçamento novo”.

Relativamente aos 1,8 mil milhões que estavam inscritos no Orçamento do Estado enquanto despesa excepcional para sanear boa parte da dívida de 2,1 mil milhões da CP, fonte do Ministério das Infra-estruturas afirmou ao PÚBLICO que a resolução do problema passará por o Estado fazer um aumento de capital na CP no mesmo valor, permitindo à empresa diminuir a sua dívida junto da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças.

Já há alguns dias que o Governo, pressentindo que o Partido Comunista se estava a preparar para votar contra o Orçamento do Estado, abrindo assim caminho a eleições antecipadas, andava a tentar perceber o que pode ou não fazer numa situação de dissolução do Parlamento, sem que tenha havido demissão do executivo. Mas a conclusão a que chegou é que, teoricamente, pode fazer quase tudo, desde que não tenha de passar pela Assembleia da República, visto que o Presidente da República afirmou que a dissolveria em caso de chumbo do Orçamento.

O constitucionalista Tiago Duarte considera que um Governo que não se demite e um Parlamento dissolvido tornam a situação “completamente bizarra”. Em teoria, o Governo poderia fazer os decretos-lei “que lhe apetecer” sem que a Assembleia da República pudesse pedir qualquer fiscalização. Para Tiago Duarte, vai criar-se uma situação “em que o controlador não está em funções, o controlado está”.

Tiago Duarte acha que, ao anunciar com tanta antecedência a dissolução da Assembleia da República se acontecesse – como veio a acontecer – o chumbo do Orçamento do Estado, “o Presidente da República foi mais papista do que o Papa”: “Está a dizer que o Governo não pode governar com aquele Parlamento, quando o Governo diz que sim”. Na realidade, Tiago Duarte acha que com esta declaração, o Presidente da República criou condições para António Costa não se demitir.

“O que aconteceu foi que o Orçamento do Estado não foi aprovado. O facto de ter sido reprovado não gera nenhuma crise. O Governo pode apresentar outra proposta de Orçamento e continuar a governar.” Só se o Governo fosse derrotado numa moção de confiança ou censura e se demitisse é que estaríamos perante um cenário de crise, defende o constitucionalista. Ou seja, segundo Tiago Duarte, o Presidente concluiu de forma “papista” e com antecedência que a Assembleia da República eleita não podia gerar outra solução de Governo.

O PÚBLICO falou com o constitucionalista pouco antes do chumbo do Orçamento ter sido confirmado: “A bola ainda está no Parlamento e no Governo. O Parlamento não aprovou nenhuma moção de censura. Só nesse caso passaria para o tabuleiro do Presidente da República”, defende.

Politicamente, um Governo em funções depois de dissolvido o Parlamento está mais fragilizado – fazer nomeações será uma das matérias em que os ministros estarão agora obrigados a usar de uma maior parcimónia. Mas, em termos concretos, pode fazer quase tudo que tenha a ver com as suas competências e governar com o Orçamento do Estado para 2021.
O precedente da troika

A “prova” de que um Governo em plenitude de funções pode fazer quase tudo tem um precedente com 10 anos. Tiago Duarte recorda que foi um Governo demissionário, em gestão – como era o de José Sócrates depois de chumbado o PEC IV – que assinou, em 2011, o memorando de entendimento com a troika. Se Sócrates comprometeu o país naqueles termos, com os poderes diminuídos, um Governo com poderes intactos tem uma amplitude muito maior. Pode haver dúvidas – hoje académicas – sobre se um governo de gestão como o de Sócrates poderia ter amarrado o país àquele nível de compromissos. Mas a verdade é que o memorando teve o apoio do PSD, na altura na oposição, e hoje pode servir como precedente jurídico do que um governo diminuído pode ou não fazer.

Só que não é esse o caso do Governo chefiado por António Costa que, ao não se demitir, mantém os poderes intactos, ainda que em 2022 possa ter de governar em duodécimos. A situação que Portugal hoje vive é muito comum na Europa: na Alemanha, apesar de já terem acontecido as eleições, continuam as negociações para a formação do novo Governo, com o Governo actual em funções. Da última vez, a negociação da coligação alemã demorou seis meses.