5.10.21

Estratégia de combate à pobreza está a ser bem recebida. “Falta saber como isso tudo vai ser operacionalizado”

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Estratégia de combate à pobreza está a ser bem recebida. “Falta saber como isso tudo vai ser operacionalizado”

Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 considerada ambiciosa. Proposta de revisão do Rendimento Social de Inserção está ainda a ser preparada e será um complemento

A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030 – em consulta pública até 25 de Novembro – já está a colher elogios, mas também a suscitar algumas dúvidas e advertências.

É o momento certo para opinar. “O que aí está é produto de um trabalho colectivo e que já beneficiou de alguma audição de entidades reconhecidamente ligadas ao combate à pobreza”, esclarece Fernanda Rodrigues, que faz parte da Comissão de Coordenação responsável pela proposta que, no essencial, foi acolhida pelo Governo. “Agora, começa uma forma de audição mais ampla.”

A presidente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas, gostou daquele “ambicioso elencar de medidas”, assente em seis eixos estratégicos. O embrulho parece-lhe “bonito”. “Falta saber como isso tudo vai ser operacionalizado. Tem de se garantir um orçamento e isso não será simples.”

A estratégia, saída da Presidência do Conselho de Ministros, abrange diferentes áreas governamentais. Valadas teme que acabe por recair na Segurança Social, como aconteceu com outras. E lembra que essa área sozinha não conseguirá concretizar medidas que exigem uma abordagem multidimensional, que pressupõem a articulação de políticas e actores.

Reduzir a pobreza nas crianças e jovens e nas suas famílias compõe o primeiro eixo. A esse tem como primeira media o reforço dos “apoios à frequência de creches e pré-escolar assegurando às famílias de menores recursos um acesso tendencialmente gratuito, integrando o ensino a partir dos três anos de idade na escolaridade obrigatória no médio prazo”.

Fernando Diogo, docente da Universidade dos Açores, investigador do Centro Interdiciplinar de Ciências Sociais, aplaude a medida. “Quanto mais precoce for a integração no sistema paraescolar melhor será o desempenho escolar a longo prazo, o que terá repercussões na vida profissional”, diz. Há um efeito em cadeia que abre possibilidades de inserção e que pode quebrar a reprodução da pobreza.

Nos seus estudos, Diogo entrou em muitas casas que não tinham livros, jogos didácticos, nem sequer cadeiras para todos se sentarem à mesa ao mesmo tempo. As crianças que assim moram entram na escola sem saber estar sentadas numa cadeira, quietas, em silêncio. Nem sabem virar a página de um livro ou pegar num lápis. O pré-escolar poderá colocá-las na mesma linha de partida. “Não é para adquirirem competências escolares. Podem adquirir habilidade manual para desenhar, o que depois as ajudará a desenhar as letras. E linguagem, estruturas de raciocínio que facilitarão a expressão oral e escrita.”

Para já, o Estado só está obrigado a assegurar vagas para crianças de quatro e cinco anos. E nem sempre os pais conseguem encontrá-las perto. Lembra Rita Valadas que “a falta de respostas começa antes, nas creches.” E que não bastará metê-las em salas.

Entre as medidas propostas, há diversas destinadas a promover a saúde das crianças, em particular a saúde mental. “A saúde mental falha em todas as fases da vida, não só na infância”, torna Valadas. “O sistema deve garantir diagnóstico precoce em várias áreas. Temos de saber se vêem bem, se ouvem bem...”

Há um limite do que pode ser feito só pelas crianças. As crianças vivem com famílias. Terá, por isso, de haver medidas dirigidas às famílias. E isso, avisa Fernando Diogo, “vai gerar anticorpos em determinados sectores políticos”.

A estratégia prevê, por exemplo, prioridade no acesso à habitação, programas de apoio ao pagamento da factura energética, majorações das prestações a agregados com crianças, em particular os monoparentais, alargamento e aumento do abono de família, revisão de outras prestações sociais.

Ainda não se sabe o que mudará no Rendimento Social de Inserção (RSI), apenas que querem aperfeiçoá-lo, torná-lo mais eficaz, garantir “a sua “centralidade no quadro das políticas de combate à pobreza”. Fernanda Rodrigues adianta que a revisão abarcará “duas vertentes: a componente financeira e a componente de inserção social”. “Esse trabalho está em curso. Será um complemento da estratégia.”

O RSI, com os valores actuais, limita-se a aliviar a severidade da pobreza. Se cumprisse os seus objectivos, torna Valada, haveria, uma equipa a olhar para cada família, a pensar com ela soluções de autonomização. Sem respostas sociais, não há assistente social que lhe valha. “As medidas de autonomização não são só financeiras. Tem sido dado muitas vezes o exemplo das consultas de dentista para adultos. Que hipóteses tem um adulto sem dentes ou com os dentes estragados numa entrevista de emprego? Se se limitarem a aumentar o valor, o efeito na redução da pobreza será apenas estatístico.”

A medida faz parte do quarto eixo: “reforçar as políticas públicas de inclusão social, promover e melhorar a integração societal e a protecção social de pessoas e grupos mais desfavorecido”. E deverá articular-se com o terceiro: “potenciar o emprego e a qualificação como factores de eliminação da pobreza”.

Ninguém pressionou tanto as entidades públicas para desenhar uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza como a Rede Europeia Antipobreza - EAPN Portugal. “Andamos dez anos a pedir uma estratégia nacional”, enfatiza o padre Jardim Moreira, presidente dessa organização.

Jardim Moreira alegra-se com o facto de “o Governo ter assumido que o combate à pobreza deve ser um desígnio nacional”. Reconhece no documento, acessível no site www.consultalex.gov.pt, muitas das sugestões que foram sendo dadas por personalidades e entidades com saber nesta matéria. Avisa que o Estado central sozinho não chega lá. “Para esta estratégia ser eficaz tem de haver articulação no terreno”, aponta. “Com a transferência de competências para as autarquias, é preciso que entrem neste processo as câmaras, as juntas, as instituições particulares de solidariedade social.”

Parece-lhe importante, como de resto está previsto, “definir com clareza a estrutura e sistema de acompanhamento, de implementação e de desenvolvimento da estratégia”. Em seu entender, aí devem estar representadas não só entidades públicas mas também organizações da sociedade civil como a que dirige. “A rede não pode deixar de estar lá. Fomos nós que começámos isto há dez anos.”