Ministra da Saúde diz que se fizeram menos 1,1 milhões de consultas nos cuidados de saúde primários, mas Ordem dos Médicos só leva em conta na contabilidade que faz entre Março e Maio os atendimentos presenciais, não pelo telefone, e defende que a diminuição é superior a três milhões.
Começou por tentar marcar pela Internet uma consulta presencial com o seu médico assistente no Centro de Saúde de Oeiras, em Junho, como costumava fazer antes da pandemia, mas não conseguiu. Uma mensagem no ecrã do computador esclarecia que o médico não tinha “agenda disponível para este tipo de consulta” e mandava contactar “directamente” o centro de saúde se o problema fosse “grave” ou não pudesse “esperar pelo contacto”.
Tentou telefonar vezes sem conta, sem sucesso. Ninguém atendia do outro lado. Foi então que decidiu ir ao centro de saúde para marcar uma consulta que seria feita pelo telefone. O episódio pode parecer inverosímil mas o homem, que pede para não ser identificado, garante que nesse dia eram várias as pessoas na sala de espera que se tinham deslocado expressamente ao centro de saúde para marcarem teleconsultas.
“Então pedem-nos para sermos responsáveis, para evitarmos deslocações desnecessárias, para ficarmos em casa, para não irmos aos centros de saúde por causa da covid, e afinal obrigam-nos a ir lá para marcar uma consulta pelo telefone?”, revolta-se.
Diz que alertou para o problema a Direcção-Geral da Saúde, o Ministério da Saúde e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, sem obter resposta. Do centro de saúde explicam que o problema é da central [telefónica]: “Nesta fase pandémica, há uma sobrecarga da central, há muitos telefonemas, há que insistir.”
O problema foi ultrapassado, entretanto, já é possível marcar de novo consultas através da Internet neste centro de saúde, mas fica uma pergunta. Os cuidados de saúde primários são a porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e começaram já a retomar a actividade assistencial normal, mas quantas pessoas terão ficado sem acesso por esbarrarem no silêncio do outro lado, quantas terão desistido de tentar telefonar, quantos atendimentos ficaram por fazer?
A resposta a esta pergunta diverge substancialmente se o autor for o Ministério da Saúde ou se for a Ordem dos Médicos. É uma questão de interpretação porque os dados são basicamente os mesmos. Na semana passada, a ministra da Saúde revelou na Comissão Parlamentar de Saúde que houve menos cerca de 1,1 milhões de consultas nos cuidados de saúde primários (sendo que, durante todo o ano de 2019, se fizeram 31 milhões de consultas, enfatizou) mas os números que a Ordem dos Médicos (OM) contabilizou, entre Março e Maio (os que estão disponíveis no portal da transparência do SNS), são bem superiores: menos cerca de três milhões de consultas nos centros de saúde do que em 2019. Dados fornecidos ao PÚBLICO pelo Ministério da Saúde indicam que em Junho já houve uma recuperação assinalável (ver infografia).
A explicação para uma diferença tão exuberante é simples: o Ministério da Saúde agrega tudo, as consultas não presenciais e as feitas pelo telefone, enquanto a OM só leva em conta a quebra das consultas presenciais por considerar que muitos dos atendimentos pelo telefone não terão sido consultas médicas propriamente ditas.
O gabinete da ministra sublinha que a retoma da actividade prevê não só o recurso "a meios não presenciais, utilizando mecanismos de telesaúde”, mas também “desfasamento de horários de atendimento e o agendamento por hora marcada”, além da deslocação ao domicílio do utente, quando tal se revele necessário.
Sejam quais foram os números contabilizados, a diminuição de atendimentos nos cuidados de saúde primários é muito relevante. Abril passado, aliás, foi o mês com o número mais baixo de consultas, tanto presenciais como não presenciais, desde 2017. A situação está a melhorar, em Junho já se notou uma inversão da tendência e em grande parte dos centros de saúde a actividade normal foi retomada, mas há locais onde as dificuldades de acesso subsistem e estão a levar ao desespero de doentes e familiares.
Maria João Pereira, que só tinha elogios a fazer à Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados de Agualva, onde a sua mãe está inscrita desde Março – “era espectacular, mesmo não tendo a minha mãe médico de família marcavam a consulta para o dia seguinte” –, não consegue desde há semanas contactar a médica, apesar de a sua mãe ter entretanto sofrido “uma síncope” no início deste mês e de ter saído do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, onde foi atendida, com indicação para fazer com urgência um ecocardiograma e um holter (um exame para medir os batimentos do coração). “Dizem, por email, que as consultas programadas continuam suspensas, que, se quisermos, temos que vir à consulta não programada às 8h de dia, e que o critério de urgência é do médico”, lamenta.
No Agrupamento de Centros de Saúde de Sintra, a que pertence esta unidade, nã0 foi possível falar com a directora, porque esta estava de férias, mas um funcionário assumiu que, no caso de o contacto ser urgente, é necessário alguém deslocar-se à unidade pela manhã, e recomendou à utente o envio de um email para o gabinete do cidadão.
Numa rápida incursão pela plataforma “Centros de saúde” não é difícil, aliás, encontrar críticas ao funcionamento de muitos centros de saúde. Só um exemplo: esta semana, João Triunfo, utente do Centro de Saúde de Algueirão Mem-Martins, relatava que nesta unidade “os médicos estão sem trabalhar desde Março e que há pessoas na rua à espera de uma consulta que nunca acontecerá”. E criticava, agastado: “Não existe a possibilidade de se realizar agendamentos perante as prioridades! Doentes de risco sem medicamentos. Médicos sem disponibilizarem agenda!”. Mas os exemplos multiplicam-se em muitos noutros centros de saúde do país.
As dificuldades no atendimento telefónico já eram um dos principais problemas dos cuidados de saúde primários antes da pandemia, e, com o extraordinário aumento das consultas pelo telefone, naturalmente a situação piorou, admite o presidente da associação nacional das Unidades de Saúde Familiares (USF-AN), Diogo Urjais. O problema é que “o sistema instalado não permite que fique gravado na nuvem que o utente ligou” e a maior parte das unidades não têm linhas nem postos telefónicos suficientes e só é possível atender três chamadas em simultâneo, explica. A agravar, acrescenta, as unidades não têm telefonistas, só secretários clínicos que são os profissionais mais em falta, mais até do que médicos de família.
Não foi possível fazer videoconsultas
Outro grande problema com que os profissionais dos centros de saúde agora se debatem é o da sobrecarga que representa o seguimento dos casos positivos e suspeitos de covid-19, uma plataforma informática designada Trace-covid que os obriga a todos os dias, ao longo de 14 dias, telefonar para estas pessoas. E são milhares os casos activos, frisa Rui Nogueira, presidente da Associação Nacional de Medicina Geral e Familiar, para quem os exemplos de mau funcionamento serão episódicos, “saem da regra”. Os centros de saúde até estão a dar uma resposta “incrível”, defende. E avança com os últimos dados: as consultas programadas aumentaram 65% e as não programadas (que incluem contacto telefónicos, renovação de receituário, ver exames) subiram subiram 8,7% de Abril para Junho.
Se Abril foi o pior mês, em Junho já houve alguma recuperação. “Os números do primeiro semestre até me surpreenderam. No total houve menos cerca de 6% de contactos, de 15,5 para 14,6 milhões, o que “até é razoável, apesar de tudo”. Mas Rui Nogueira está obviamente preocupado com o que ficou por fazer. O que o preocupa são os doentes que não podem esperar, como os que tem insuficiência cardíaca, doenças oncológicas, pé diabético, exemplifica. E apesar de este cálculo ser difícil, se por exemplo não tivesse sido feito nada em Março, Abril e Maio, teria havido menos 15 mil diagnósticos oncológicos.
“Estamos a fazer o melhor possível e a pandemia veio pôr a nu algumas limitações e problemas que já existiam”, diz. “Já andávamos com sapatos apertados para os pés que temos e agora os pés incharam e os sapatos são os mesmos”, ilustra. “A verdade é que neste momento não temos recursos nem condições para dar respostas a todas as solicitações”, admite. Apesar de a medicina à distância ter sido uma das soluções preconizada neste período, os centros de saúde não receberam telemóveis, os computadores disponíveis não têm câmaras e por isso não foi possível fazer videoconsultas. A falta de equipamentos é de tal ordem que os médicos e enfermeiros têm usado muitas vezes os seus próprios telemóveis, exemplifica Rui Nogueira.
Diogo Urjais está convencido de que parte da actividade não realizada em Março, Abril e Maio dificilmente será recuperada.
“Houve unidades que compraram telemóveis com cartões pré-pagos, algumas ARS [administrações regionais de saúde] deram um telemóvel para o coordenador da unidade, foram reactivados equipamentos que não estavam a funcionar, mas alguns profissionais trouxeram telemóveis antigos de casa”, corrobora Diogo Urjais, que reconhece que há falta de resposta e problemas em várias unidades do país mas faz questão de dizer há muitos outras onde a retoma está a correr bem.
“Apesar de ser um país pequeno, Portugal tem assimetrias regionais gigantes. Infelizmente há locais em que se continua a ter salas de espera vazias e ruas cheias. Mas está-se a fazer todas as consultas de grupo de risco ou vulneráveis, diabéticos, grávidas, hipertensos. Todos os outros casos serão mais espaçados numa retoma gradual”, explica.
Ao contrário de Rui Nogueira, Diogo Urjais está convencido de que parte da actividade não realizada em Março, Abril e Maio dificilmente será recuperada. “Houve muitos diagnósticos que ficaram por fazer. Os meios complementares de diagnóstico e terapêutica pararam na rede dos convencionados e os hospitais privados deram uma resposta quase nula.” E há um problema que o preocupa sobremaneira agora. Nos centros de saúde, em geral, não há falta de equipamentos de protecção para fazer face à covid, nomeadamente máscaras, mas “há uma falta gritante de material básico, como pensos e compressas”.