28.7.20

“A DGS podia ter mais gente nas TV e nos jornais. Faz confusão ver comentadores sem formação específica a falar sobre o vírus”

Helena Bento, in Expresso

Houve ou não sobrecarga de informação sobre a covid? De que maneira é que isso confundiu a população e condicionou o comportamento desta? Houve alarmismo ou nem por isso? Os jornalistas estão ou não devidamente preparados para noticiarem sobre temas de saúde? Houve comentadores a mais e especialistas a menos nas TV, rádios, sites e jornais a falarem sobre a covid? Duarte Vital Brito, especialista em comunicação em saúde e médico de Saúde Pública na região de Lisboa, faz uma análise possível - e nem tudo foi tão mau como as teses negativistas possam fazer crer, mas também nem tudo foi tão bom como as teses otimistas possam crer

Um aspecto positivo da cobertura que tem sido feita pelos meios de comunicação sobre a pandemia? “O espaço que foi dado nas televisões e nos jornais a especialistas da área da saúde.” Mas também há pontos negativos, como a “sobrecarga de informação, sobretudo no início, e que pode ter contribuído para confundir as pessoas”, e outros que podem melhorar, como dar mais destaque aos “bons exemplos, mostrar como determinadas pessoas ultrapassaram a crise e como determinados serviços de saúde evoluíram”, até para “criar mais empatia e reforçar a saúde mental da população”. A avaliação é feita ao Expresso por Duarte Vital Brito, especialista em comunicação em saúde e médico na Unidade de Saúde Pública do Agrupamento de Centros de Saúde Lisboa Central (a primeira parte da entrevista foi publicada na sexta-feira passada). Para o futuro dá duas ou três sugestões aos meios de comunicação: investir na formação dos seus jornalistas na área da saúde e perceber, junto dos seus leitores, “como estão a receber a informação e se consideram que houve excesso de informação e se estão saturados”. “Recorrer à população como fonte de informação é uma ferramenta pouco utilizada - e podia sê-lo mais.”

Na primeira parte desta entrevista, dizia que a saúde estava muito ‘colada’ à política e que isso devia ser ponderado. Não podemos dizer o mesmo da comunicação social?
Os meios de comunicação não devem ser um espelho das instituições e do Governo mas sim, creio que durante a pandemia, ou numa fase específica da pandemia, foram-no. Mas eu vejo isso com bons olhos neste caso. Vejo com bons olhos o facto de os meios de comunicação terem recorrido à Direção-Geral da Saúde [DGS] como fonte primordial da informação - e sobretudo quando estamos a falar de números, e sendo tão importante não haver discrepâncias. Para todos os efeitos, a DGS tem sido uma fonte de informação credível.

O facto de a esmagadora maioria dos jornalistas ter admitido que orientou cidadãos para o confinamento não é uma prova dessa proximidade?
É fantástico que os jornalistas possam ter feito isso, orientado para o confinamento. É assim que vejo esse assunto. Para mim, o facto de os meios de comunicação terem informação suficiente para poder, eles próprios, informar e facilitar a vida das pessoas, permitindo-lhes tomar decisões informadas, é muito positivo. O fenómeno das “fake news” [notícias falsas] não é tão evidente em Portugal como nos EUA. O que os jornalistas portugueses fizerem, nesse caso, foi ampliar a mensagem da Direção-Geral da Saúde. Numa situação de crise, de emergência em saúde pública, é fundamental que o contraditório dos meios de comunicação não seja assim tão evidente. Se as pessoas receberem mensagens contraditórias, vão ficar confusas e, se ficarem, teremos mais dificuldade em implementar medidas de saúde pública. Não estou a dizer para não haver contraditório de todo, apenas para deixar para a investigação científica o que é da investigação científica e deixar para a comunicação social o que é da comunicação social. O espírito crítico é sempre necessário, mas nestas situações deve haver alguma relutância em criticar publicamente decisões tomadas pela área da saúde.

Mas, para todos os efeitos, o confinamento foi uma decisão política.
Sim, precisamente por isso. Serem colocadas em causa informações transmitidas pelas instituições de saúde descredibiliza essas mesmas instituições e, num contexto de emergência, isso é das piores coisas que podem acontecer. Vejo com bons olhos a ‘aliança’ e coerência da comunicação social. E não se trata de censura, claro. Simplesmente, mais importante do que vender jornais, é divulgar informações coerentes. O encontro entre comunicação social e instituições de saúde pode potenciar uma mudança no comportamento das pessoas. E é inegável o impacto que os meios de comunicação têm na alteração do comportamento das pessoas.

Falávamos no que poderia ser melhorado por parte da DGS e do Governo. E no caso da comunicação social?
Creio que a Direção-Geral da Saúde poderia ter mais responsáveis a falar nas televisões e nos jornais. Não numa tentativa de monopolizar, claro, mas no sentido de dar espaço e margem para que a informação veiculada fosse mais coerente. Assim, os meios de comunicação não precisavam de ir buscar virologistas ou epidemiologistas ou médicos de outras especialidades com abordagens diferentes em termos de saúde pública. Fez-me também confusão ver comentadores sem formação específica a falar sobre o vírus, sobre um tema que não dominam.

Houve excesso de informação?
A dada altura notou-se isso, sim. As pessoas ligavam a televisão ou abriam jornais e só havia notícias sobre o vírus. Era difícil abstraírem-se disso. A única hipótese era mesmo desligar, era isso que se recomendava em termos de saúde mental, para diminuir a ansiedade, e foi o que muitas fizeram. Entretanto, acho que começou a haver mais diversidade nos temas abordados e já se fala mais sobre política e desporto, por exemplo. Seria importante, também, mostrar os bons exemplos, mostrar como determinadas pessoas ultrapassaram a crise, como determinados serviços de saúde evoluíram. Mostrar o lado bom da crise, no fundo. Isso ajudaria a criar empatia e reforçaria a saúde mental das pessoas. A comunicação social pode ter esse papel positivo na prevenção da saúde mental. Se os meios de comunicação deveriam ter garantido mais diversidade de temas logo de início? Não sei, estamos a falar de uma janela temporal de um mês, dois meses, não acho que essa análise seja assim tão relevante.

Ter passado os últimos meses só a falar sobre o vírus era inevitável, então?
Seria difícil ter feito de outra forma, uma vez que não estava praticamente nada a acontecer além do vírus. Teria sido e continua a ser importante, como disse, dar destaque aos bons exemplos, por assim dizer, como por exemplo explicar como é que os lares se adaptaram à covid-19. Mas, em termos gerais, acho que os meios de comunicação tiveram um papel mais benéfico do que prejudicial.


Demasiada informação sobre o vírus não terá levado algumas pessoas a ficarem ‘anestesiadas’ e, por conseguinte, a cumprir menos as orientações da DGS?
Não me cabe a mim responder a isso, creio. É uma análise que poderá ser feita e a Escola Nacional de Saúde Pública tem-na feito, tem colocado essas questões à população. Também os órgãos de comunicação social podem fazê-la e tirar ilações disso. Podem tentar perceber, junto dos seus leitores, o que pode ser mudado em termos de comunicação, de que forma estão e querem receber a informação; perguntar-lhes se, de facto, estão saturados, se consideram que houve excesso de informação e como lidaram com isso. E é essencial que essa análise se traduza, depois, numa mudança. Recorrer à população como fonte de informação é uma ferramenta pouco utilizada - e podia sê-lo mais. E quem diz meios de comunicação diz também DGS e outras instituições de saúde, porque é fundamental, de facto, tentar perceber o que poderá ter falhado e melhorar.

Pode destacar um aspeto positivo e um negativo da cobertura mediática?
Negativo diria isso, a tal sobrecarga de informação, sobretudo no início, e que pode ter contribuído para confundir as pessoas. O espaço que foi dado a especialistas da área da saúde, desde epidemiologistas a virologistas, é, para mim, um aspecto muito positivo. Ricardo Mexia [presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública] tornou-se quase uma referência nacional. Seria importante manter este espaço mesmo quando a questão do vírus deixar de ser tão premente. Vão surgir, no futuro, outros problemas em que a saúde pública também será relevante e é importante tentar que não caia no esquecimento.

Mas mesmo esse recurso aos especialistas não se terá tornado excessivo?
Entre dar voz a especialistas e a pessoas que não o são, prefiro a primeira hipótese. Se a discussão não for vazia, é difícil falar em exagero.


Foram transmitidas, em algum momento, mensagens alarmistas?
Acredito que isso possa ter acontecido, mas mais no início, também por desconhecimento em relação ao vírus. Da mesma maneira que a DGS e as instituições de saúde têm dificuldade em comunicar a incerteza, o mesmo acontece com a comunicação social. É difícil noticiar algo de que não se tem a certeza, quando as fontes não têm a certeza. Isso faz com que se acabe por noticiar com base em possibilidades: há a possibilidade de o vírus ser transmitido através de superfícies, há a possibilidade disto e daquilo, há este cenário e aquele. Isso amplifica a mensagem de incerteza e pode gerar pânico e uma onda de desconfiança. Mas é algo ténue e não quero de todo culpabilizar a comunicação social ou acusá-la de ter exagerado. Se calhar aconteceu aquilo de que falávamos, foi dado demasiado tempo de antena ao vírus e à sua componente negativa, mas ao mesmo tempo era essa a realidade. Por outro lado, admito que até à chegada do vírus a Portugal tenha havido algum exagero na cobertura mediática, parecia quase uma corrida. Há ainda outro aspeto, que tem que ver com a formação dos jornalistas.

É necessário apostar mais nisso?
Sim, é. Certamente terá havido jornalistas de outras áreas a acompanhar a pandemia, e da mesma maneira que eu não me sinto confortável para falar sobre outras especialidades, imagino que os jornalistas também não sintam. Talvez seja necessário investir na formação de jornalistas na área da saúde. Da mesma maneira que deve haver uma simbiose entre política e saúde, também pode haver entre a saúde e os órgãos de comunicação, com as instituições de saúde a dar formação a jornalistas e os jornalistas a ajudar os profissionais de saúde a melhorar a sua capacidade de comunicação com a comunidade. Também seria importante investir mais na formação dos profissionais de saúde em comunicação em saúde, porque há, de facto, pouco investimento nessa área.