27.7.20

É preciso voltar a pôr as crianças off do mundo virtual

Natália Faria, in Público on-line

Durante o confinamento, as crianças dependeram dos ecrãs para estudar, para jogar, para estar com os amigos e até para fazer actividades físicas. Mas, embora não se possa dizer que esteja criado um exército de pequenos adictos dos ecrãs, chegou a hora de os desconectar.

Durante os longos dias do confinamento, o quotidiano de toda a gente galgou para o mundo virtual. E os ecrãs, porque a escola começou a entrar em casa por essa via e porque foram instrumento incontornável de interacção com os amigos, além de se transmutarem em baby-sitter sempre que foi preciso responder a um telefonema de trabalho ou preparar uma refeição, tornaram-se omnipresentes, deitando por terra o esforço de anos que muitos pais vinham fazendo para manter os filhos ligados apenas em doses qb. E agora? “É fundamental que se aproveitem as férias para que as crianças voltem a ter vida fora dos ecrãs”, aponta Sara Pereira, professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (UM).

Naqueles meses, como precisa Beatriz Pereira, do Centro de Investigação em Estudos da Criança da UM, “o confinamento fez com que crianças sofressem perdas a todos os níveis: dos amigos, da escola, dos professores, dos avós e dos espaços ao ar livre que são essenciais para o seu desenvolvimento motor mas também cognitivo”. E, numa altura em que, apesar de mais presentes fisicamente, os pais estavam menos disponíveis para lhes dar atenção, o tríptico telemóveis-tablets-televisão tornou-se na companhia mais constante dos mais pequenos. Mais ainda se, como acrescenta Sara Pereira, “as próprias actividades ligadas à dança, ao desporto ou à música, saltaram elas próprias para os ecrãs, quando não foram canceladas”.

E, embora ainda sem números que o atestem, a convicção dos especialistas é que a transposição da vida das crianças para os ecrãs se há-de traduzir em problemas acrescidos de obesidade, de visão, irritabilidade e ansiedade. “Já há estudos que mostram que a população portuguesa em geral está mais obesa e as crianças acompanharam essa obesidade, que já era um problema sério em Portugal e que se agravou até porque o acesso a bolachas e a doces estava facilitado e a tendência é para as pessoas, adultos e crianças, comerem mais quando estão em frente a um ecrã”, reforça Beatriz Pereira. E há os casos em que a dependência dos ecrãs serviu de veículo a outras dependências, como sublinha Sara Pereira, que diz ter ouvido “testemunhos de crianças que não quiseram saber da escola porque ficaram vidradas nos videojogos e começaram a entrar em competições internacionais”.

“A escola, enquanto gigantesco contexto de socialização, foi a maior perda neste período. E isso traduziu-se numa carga muito pesada para os pais, nomeadamente para os que tiveram de ficar a trabalhar com as crianças num espaço fechado, em que o ambiente depressa começou a ficar insuportável e a tolerância diminuiu”, contemporiza, por seu turno, o psicólogo João Lopes, também da UM, para quem não deve haver tempo a perder com culpabilizações parentais inglórias. “Os pais culpabilizam-se por tudo, nomeadamente por os miúdos terem passado este tempo agarrados a esses instrumentos, mas não vale a pena: foi o que tinha que ser e os miúdos tinham que estar ocupados com qualquer coisa”, desdramatiza, para reforçar: “Não vejo que tenhamos criado um exército de pequenos adictos dos ecrãs para o resto da vida.”

Assente este ponto, não quer isto dizer que, nesta altura de desconfinamento controlado, não haja marchas-atrás a fazer. “É importantíssimo que os pais procurem agora fazer muitos programas no exterior: passear, ir à praia ou à montanha. Três meses para uma criança pequena são muito importantes, e elas estão efectivamente mais sedentárias e mais ligadas aos ecrãs, mas é possível recuperar o desenvolvimento social, cognitivo e motor perdido, desde que as crianças sejam puxadas agora para a brincadeira com outras crianças, em grupos pequenos e em espaços adequados”, aconselha Beatriz Pereira, dizendo-se convencida que “quando é colocada numa situação de ar livre, a criança preferirá sempre brincar com os amigos a ver um programa de televisão”.
Olhar sem a mediação de um ecrã

Apesar de a dependência dos ecrãs poder assumir contornos mais preocupantes entre os jovens, o psicólogo João Lopes assevera que nestes a lógica é muito similar à das crianças mais pequenas. “Se reparar, as dificuldades que as autoridades estão a ter relativamente aos adolescentes [e às festas em que aumenta o risco de contágio pelo coronavírus], elas resultam precisamente da necessidade que os miúdos têm de estar uns com os outros. E isso é incomensuravelmente mais atraente do que estar todo o dia agarrado a um computador, mesmo que no computador se tenham contactos sociais. A questão é que o contacto via Zoom ou Facebook é muito pouco para a espécie humana, que precisa de estar perto, de se olhar sem a mediação de um ecrã”.
“Os pais é que saberão a quantidade de telemóvel que estão dispostos a dar aos filhos, mas se acharam que, por hipótese, o limite é zero, têm simplesmente de lhes dizer ‘Não vais ter o telemóvel'”.João Lopes

Quanto aos mais pequenos, para este psicólogo, a estratégia a seguir para limitar a exposição aos ecrãs escreve-se com recurso a uma única palavra: não. “Os pais é que saberão a quantidade de telemóvel que estão dispostos a dar aos filhos, mas se acharam que, por hipótese, o limite é zero, têm simplesmente de lhes dizer ‘Não vais ter o telemóvel'”.

Não há que ter medo de birras, portanto. “Se os pais forem seguros, e não tem mal nenhum que a resposta ao porquê seja ‘porque não’, as crianças fazem birra e passam adiante”, assegura para concluir que “as crianças precisam de regras muito claras e apreciam-nas”. Logo, “há que as aplicar sem culpabilidade nem agitações desnecessárias”. De resto, o investigador mostra-se convencido de que, a confirmar-se o regresso presencial às aulas em Setembro, “os miúdos vão deixar de se importar tanto com os computadores e os telemóveis porque o que eles vão ganhar por estarem uns com os outros é tão melhor, que dispensa qualquer programa de desmame”.

A investigadora Sara Pereira acredita que facilmente as crianças pousarão os gadgets antes mesmo de regressarem à escola, desde que voltem a ser puxados para actividades off, seja fazer ginástica em casa com os pais seja jogar um jogo de tabuleiro.

A investigadora Sara Pereira também diz acreditar que facilmente as crianças pousarão os gadgets antes mesmo de regressarem à escola, desde que voltem a ser puxados para actividades off, seja fazer ginástica em casa com os pais seja jogar um jogo de tabuleiro. “Tem é que haver uma certa intencionalidade educativa da parte dos pais para que isso aconteça”, ressalva a docente. No caso dos mais velhos, e porque “retirar-lhes o telemóvel seria como tentar conter o rio com as mãos”, conforme ilustra João Lopes, a estratégia terá de passar, segundo Sara Pereira, por os pais se inteirarem do que andam a fazer nas redes sociais. “Muitas vezes os pais vêem os filhos nos ecrãs e não fazem ideia do que estão a fazer, que jogos jogam nem o que fazem nas redes sociais. Aqui o diálogo será fundamental, não como forma de intromissão, mas porque há alertas e indicações que os pais podem dar relativamente ao tanto que há para descobrir no mundo virtual, à forma como se pode aferir a veracidade da informação que lá se vai buscar…”, sugere.

E, consciente de que nem todos os pais estão igualmente preparados para isto, a investigadora reparte com a escola alguma da responsabilidade nesta mediação com o mundo virtual. “Sem querer estar a querer dar demasiados papéis à escola, penso que é fundamental que esta intervenha no sentido de promover um relacionamento crítico com os ecrãs”. Afinal, conclui, trata-se de garantir que “os ecrãs sejam algo positivo, numa altura em que a vida de todos está mediatizada por eles”.