No voluntariado de proximidade, muitas vezes cria-se uma ligação particular entre o voluntário e o idoso que é acompanhado. O objectivo destes projectos é combater a solidão. Hoje é Dia Mundial dos Avós.
Relações fortes não existem apenas entre as pessoas que partilham os mesmos genes. Que o diga Celso, que escuta de Gracinda as “histórias de avó” que ouve quando visita a sua verdadeira avó. Ou Inês e Joaquina, que partilham segredos. De Norte a Sul do país há associações que ajudam os mais velhos a não estar sós. Celso e Inês são voluntários, assim como Aline que, aos 80 anos, acompanha Ana Rosa, de 82. Hoje é o Dia dos Avós e o PÚBLICO foi conhecer a Associação de Voluntariado Universitário (VO.U.), no Porto, o Projecto de Voluntariado de Proximidade da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, e a Associação Coração Amarelo, em Lisboa.
O projecto mais antigo é o da Associação Coração Amarelo, fundado há 20 anos. Actualmente, conta com sete delegações, sendo a de Oeiras a segunda mais velha. Os utentes (140, de momento) chegam “através da acção social da câmara, dos hospitais, de algum vizinho/amigo”, explica Paula Sobral, presidente da Delegação de Oeiras. A maior parte dos utentes são mulheres.
“Vamos ter com a pessoa no sentido de lhe dar apoio. Não fazemos higiene, nem alimentação. Damos o tal afecto, o tal carinho, a tal atenção. Mas se há outras necessidades, articulamos com outras instituições que estão connosco em rede”, explica. Os 60 voluntários acompanham muitas vezes mais do que um utente
"Histórias de avó"
Celso Moura entrou na VO.U. há um ano e meio. Em tempo de aulas, o estudante de assessoria e tradução passava duas a três horas por semana com a “Dona Gracinda”, umas vezes com outra voluntária, outras sozinho. “Estamos lá para ela não se sentir triste, para não se sentir sozinha e acontece o mesmo connosco. Ficamos mais felizes”, diz Celso, que vê semelhanças entre as visitas a Gracinda e as idas à casa da avó, de onde sai “bem da cabeça e bem da barriga”.
Sem filhos ou netos, Gracinda conta com a companhia de sobrinhos, do cão da vizinha e, desde há dois anos, dos voluntários. As visitas eram muitas vezes passadas à conversa, com o barulho de fundo da televisão. Quando “queria muito sair” por estar “farta de estar em casa”, Celso conta que iam “dar uma volta até aos cafés” para Gracinda, de 95 anos, também não “perder a pouca mobilidade que ainda tem”. “Outras vezes não passeio porque não me apetece, mas gosto da companhia deles”, salienta Gracinda que vê os voluntários como os netos que nunca teve. “São umas jóias.”
Apesar de ter uma ligação “muito mais forte” com a sua avó, Celso reconhece que “as histórias de avó estão todas lá”. “Ela ri-se de tudo o que conta, fala do falecido marido, da vida que tinha antes, sejam coisas boas ou más. É uma pessoa fantástica que está contente com o que fez da vida”, diz o voluntário de 21 anos com carinho na voz.
“Veio esta porcaria desta pandemia e [os voluntários] nunca mais vieram porque não podem”, diz Gracinda, triste. “Agora é que não posso sair”, queixa-se. Impossibilitado de fazer as visitas, Celso vai mantendo o contacto por telefone. “Todo o cuidado é pouco, e apesar de tudo, mesmo se formos bem protegidos, nunca se sabe. Pode correr bem, pode correr mal”, reconhece o voluntário sobre a covid-19.
Joaquina Ribeiro vive num lar, em Évora, desde que caiu e partiu a anca. Quando ainda vivia sozinha, a mulher de 90 anos contou com o apoio de Inês Nabais, durante dois anos. A voluntária da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, estudava perto de Joaquina, o que aliado à cumplicidade logo sentida aumentou a frequência das supostas visitas semanais. “Às vezes, ela ligava-me a dizer que tinha feito um bolinho ou que estava com saudades e eu passava por lá; às vezes ligava eu, porque precisava de falar”, conta a jovem de 20 anos, que actualmente estuda Psicologia em Lisboa.
Muito independente, Joaquina não queria ajuda para ir às compras ou à farmácia. “Às vezes dói-me a perna, mas ainda estou capaz de trabalhar”, conta a mulher que gosta de fazer “trabalhinhos com conchas do mar”. Também partilha com a voluntária o amor pelo oceano e tentou ensiná-la a fazer as pecinhas de que tanto gosta. “Eu nunca consegui porque é necessária uma precisão e uma minúcia incrível”, confessa Inês que tem diversas conchas, estrelas-do-mar e até um cavalo-marinho que Joaquina lhe deu. “Quando estou mais em baixo, vou sempre ver as peças, parece que me dão uma energia especial”, partilha a voluntária que tem um dos búzios de Joaquina preso numa rasta.
“Já não tenho nenhuma das minhas avós, mas lembro-me muito bem de quando as ia visitar, daquelas coisas das avós: dos bolinhos, de nunca acharem que nos alimentamos bem”, explica Inês que vê o mesmo carinho nos avisos de Joaquina para “não ir [visitá-la] à noite, para vestir um casaquinho”. A afeição de avó não se reserva apenas para o “netinho que vai fazer cinco anos” – chega também para Inês. “É muito boa e gosto muito dela”, conta Joaquina.
Apesar da significativa diferença de idades, Inês aponta a parecença entre ambas como curiosa. “A Dona Joaquina tem uma alma muito juvenil”, salienta a voluntária que também considera a idosa uma amiga. “Falávamos de encontros amorosos como se estivéssemos as duas a viver a nossa adolescência plena”, confessa entre risos.
A idade é só um número
Mas a juventude, e o bem que ela faz aos utentes beneficiários, não se vê só pela idade – vê-se pela vontade. É o caso particular de Ana Rosa Fernandes e Aline Bettencourt, utente e voluntária, respectivamente, que têm apenas dois anos de diferença. Ana Rosa, de 82 anos, está em Lisboa desde os 28 e mudou de residência várias vezes. “Pareço uma pomba”, diz com um sorriso nos olhos. Ana Rosa já conhecia Aline antes de entrar na Delegação de Oeiras da Associação Coração Amarelo. Foi a voluntária de 80 anos que lhe deu a conhecer o projecto. Aline, também uma das fundadoras da delegação, conta que Ana Rosa está inscrita em várias associações e que “aproveita todas as excursões e passeios”, não sendo um caso difícil de acompanhar.
Para evitar entrar na casa de Ana Rosa, as duas amigas encontram-se numa esplanada para conversarem, estando bem presente o afecto, carinho e atenção referido pela presidente da delegação, Paula Sobral. “Autónoma” e bastante “interessada”, Ana Rosa faz bijuteria e costura, actividades encorajadas pela voluntária. “A minha casa está cheia de quadros todos feitos pela minha mão”, diz orgulhosamente, embora lamente que às vezes “os dedos já não fechem como deve ser” — a voluntária, que actualmente acompanha mais 14 utentes, massaja as mãos da amiga pois fez um workshop de massagens.
Durante o confinamento, Ana Rosa acabou de fazer umas almofadas e outros trabalhos em “ponto de Arraiolos, ponto de cruz, meio ponto”. Depois de pedir uns minutos, volta com um saco cheio de coisas que fez enquanto esteve em casa — dá especial atenção ao vestido com bandolete a condizer que fez para a bisneta, que Aline gaba com um sorriso.