O projeto Retratos Contados, que faz cinco anos este domingo, Dia dos Avós, nasceu da vontade de valorizar os mais velhos e a importância que têm no resgate da memória e na vida dos mais novos. Pelo caminho, a escritora Alice Vieira ganhou um "neto" e o impulsionador da iniciativa, Nélson Mateus, ganhou uma "avó".
Nem a máscara consegue esconder o sorriso generoso da Alice, que é feitio e se torna cumprimento a cada amigo com quem se cruza no pequeno caminho entre a porta lateral dos jardins da Gulbenkian, ponto de encontro, e a esplanada onde nos sentamos a conversar.
Nélson Mateus parece habituado a partilhar a "avó" e a sua boa disposição com o mundo todo de quem é amiga. Afinal, foi essa generosidade, e a impossibilidade de parar quieta, que a fez passar de entrevistada a "sócia" no projeto Retratos Contados, uma iniciativa de Nélson, que nasceu há cinco anos da vontade de falar da importância dos avós na vida dos netos e vice-versa, de promover o reencontro de passado, presente e futuro através desta relação fundamental e pelo caminho combater a solidão, incentivar o envelhecimento ativo e dar a conhecer gente mais velha extraordinária, que através das suas recordações e experiências de vida nos conte em discurso direto a história recente do país, não deixando que as memórias se apaguem.
Nélson Mateus é o autor e responsável do projeto Retratos Contados, está a escrever dois livros, organiza exposições, está a preparar um grande evento para o Dia do Idoso (1 de outubro) e é mentor do projeto encontroavosenetos.pt.
Alice Vieira foi uma das primeiras entrevistadas de Nélson Mateus para os Retratos Contados, numa conversa, em setembro de 2015, em que partilhou o seu testemunho como a neta que foi e a avó que é.
"É engraçado que eu nunca tinha lido nenhum livro da Alice até a conhecer", diz Nélson, logo interrompido pela escritora: "Agora já leu todos, está descansada." Ele ri e continua. "Mas eu sou de admirar as pessoas pelo que são mais do que pelo fazem e foi essa mulher que me conquistou, a mulher, a mãe e a avó. No fim da entrevista, a Alice deu-me o número de telemóvel para voltarmos a falar e eu que, na altura, tinha uma loja de roupa de criança perto da casa dela, de vez em quando passava lá para falarmos um bocadinho, e fomos ficando amigos. Nunca mais nos largámos. A Alice é uma mulher de afetos e o Retratos Contados é um projeto que trata de afetos. Eu já não tenho avós há muitos anos, mas os meus quatro avós foram importantíssimos para a minha formação, aprendi imenso com eles, e apesar de não ter idade para ser neto da Alice, fazia-me muita falta o colo de uma avó."
O colo de Alice é enorme e foi de braços abertos - "agora tem que ser com distanciamento social", diz ela a rir - que acolheu mais este "neto". Tardou pouco a que a escritora passasse a ter um papel mais ativo no Retratos Contados, que hoje é um projeto a dois.
Alice Vieira, que foi durante anos jornalista do Diário de Notícias, é escritora e poeta. Neste momento, entre mil outros afazeres colabora com Nélson Mateus no projeto Retratos Contados.
"Já sabes como eu sou, quando me apresentam propostas de trabalho, digo logo que sim e este projeto é sobre avós e netos e o papel que têm na vida uns dos outros e eu acho que é preciso contrariar a ideia de que os mais novos não ligam muito aos avós e que os mais velhos não têm paciência para os miúdos. Temos o projeto de entrevistar avós e netos e dessas entrevistas nascerá um livro. É um projeto de que gosto muito e a que agora acrescentei outro, graças à covid, obrigada covid, com a Manuela Niza, que também escreve. Estamos a fazer a meias para o Retratos Contados um romance sobre estes tempos que vivemos e que vai sendo publicado no site e que o meu patrão da Leya já disse que edita em livro. Chama-se Pó de Arroz e Janelinha e passa-se num prédio, onde todas as pessoas que lá vivem estão em confinamento, agora já começaram a desconfinar um bocadinho, mas no início não podiam sair e passavam o tempo à janela a falar das suas coisas e das suas vidas. Está a dar-nos um prazer enorme e tem-me animado muito nestes tempos metida em casa, sem poder sair", diz Alice, para quem a pandemia tem sido uma contrariedade, da qual como lhe é próprio tenta retirar o que pode ter de positivo.
Uma das relações que a covid-19 mais afetou foi entre avós e netos, a quem foi aconselhado afastamento para proteger os mais velhos, que se encontram no grupo mais vulnerável à doença. Tanto Nélson como Alice o sentiram, mas deram a volta. Ele explica.
"Durante o confinamento, eu vinha frequentemente ao El Corte Inglés às compras e passava sempre em casa da Alice para ver se era preciso alguma coisa e, sabendo eu que ela é viciada no Facebook, ensinei-a a usar a câmara do Messenger e a fazer videochamadas e quando dei por ela já estava a dar entrevistas para a televisão no meio da pandemia pelo Zoom e a falar com os netos, que vivem em Inglaterra, por videochamada. É esta troca e esta comunicação entre as gerações que este projeto quer estimular. Nós damos-lhes o presente e o futuro, eles dão-nos o passado. Adoro as histórias que a Alice me conta da Lisboa de antigamente e de todas as personagens e personalidades que conheceu", diz.
"Há uma frase da Isabel Stilwell de que nunca me esqueço: ela disse que eu estou a construir uma biblioteca de avós. E estou, porque é através das histórias deles que conhecemos a nossa história e a história do país."
Alice concorda e acha mesmo que em certa medida a pandemia acabou por aproximar as pessoas. "Não podemos tocar e beijocar, que é uma coisa que me faz muita impressão, mas tinha sempre gente a ligar-me e com os meus netos, tanto os que estão fora como os que estão cá, passei a falar por videochamada. Também é giro, não é?"
É e Nélson Mateus pensa que os últimos meses podem ter ajudado a aprender a olhar o tempo, e a geri-lo, de uma forma diferente, a perceber o que é importante e o que não é, e a priorizar-
"Trazendo isto para o projeto que estamos a desenvolver, se não valorizamos os avós, quando olharmos podem já não estar lá. E é fundamental perceber que aprendemos imenso com eles. O Retratos Contados é sobre isso. Há uma frase da Isabel Stilwell de que nunca me esqueço: ela disse que eu estou a construir uma biblioteca de avós. E estou, porque é através das histórias deles que conhecemos a nossa história e a história do país."
Para a escritora, a relação entre avós e netos é, no entanto, mais do que transmissão de memórias e conhecimento. É uma cumplicidade que raras vezes se tem com os filhos.
"Sim, é preciso utilizá-los, para nos contarem como foram os tempos da guerra, da ditadura. Podemos ter um testemunho direto, por quem viveu aqueles tempos. Isso tem um valor inestimável. E faz falta a tantos mais novos que não fazem ideia de como foi", diz Alice Vieira, que lembra o pedagogo João dos Santos, que dizia que "nenhuma criança pode passar sem ter uma aldeia e sem ter uma avó e se não tem, tem de as inventar. Foi o meu caso. Quando nasci, já tinham todos morrido, por isso as minhas avós foram uma prima e a Maria Lamas, que também era minha prima e estava em Paris, e com quem me correspondia e que evitou que eu fizesse muita asneira".
Para a escritora, a relação entre avós e netos é, no entanto, mais do que transmissão de memórias e conhecimento. É uma cumplicidade que raras vezes se tem com os filhos. "É outro tipo de afetos e de linguagem. Havendo uma geração de permeio, é tudo diferente, eu não conto aos meus filhos coisas que conto à minha neta. Ela é sempre a primeira a saber tudo e eu também. Fazem-me muita falta, os meus netos."
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, recebeu há duas semanas Alice Vieira e Nélson Mateus. Já conhecia o projeto, além da Alice, claro, mas queria saber que mais tinham em mãos e em mente.
Para Nelson Mateus, é no cruzamento das duas dimensões, tempo e afetos, que está o coração do seu projeto. "Há 15 anos não sabíamos o que eram redes sociais e hoje o Facebook é a rede social dos avós. Andamos à velocidade da luz e é por isso é tão importante manter vivas as memórias, de forma a não as perdermos. É um bocadinho como na escola, aprendíamos muito mais quando tínhamos professores interessantes, de quem gostávamos mais. Mas este encontro de avós e netos não é só para os avós partilharem histórias de como era o tempo deles, também é para os netos partilhar o seu tempo: as vantagens das novas tecnologias e como podem usá-las. Durante a pandemia, foi interessante perceber como através do computador podemos viajar pelo mundo todo e visitar museus, por exemplo, e essa é uma coisa ótima que os netos podem partilhar com os avós."
Para se inteirar disto tudo, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, recebeu há duas semanas Alice Vieira e Nélson Mateus. Já conhecia o projeto, além da Alice, claro, com quem partilha a boa disposição e a "hiperatividade", mas queria saber que mais tinham em mãos e em mente. Nós também.
Além das entrevistas a avós e netos e das exposições retrospetivas, como já fez sobre Alice Vieira e Ruy de Carvalho [que também o trata por neto], Nélson vai lançar uma nova iniciativa no Retratos Contados, uma espécie de diálogo entre várias personagens, em que há sempre um mais novo, ele, o neto, que faz perguntas a uma mais velha, a avó, a Alice, e a partir destas debatem questões atuais ou históricas. "Vai ser sobre tudo menos velhice, porque os velhos não querem ler sobre velhice, velhos já eles estão", conclui Alice, com uma gargalhada.