30.7.20

Hepatite. Migrantes têm dificuldades acrescidas no acesso ao diagnóstico e tratamento

Francisco de Almeida Fernandes, in Expresso

Projetos Expresso. Barreiras linguísticas, legais e económicas separam, muitas vezes, um doente infetado do acompanhamento médico que pode trazer a cura. Apesar de existirem hospitais que contornam a lei e organizações não governamentais que tentam facilitar processos de legalização, as dificuldades são muitas. Este foi um dos temas abordados no debate dedicado ao Dia Mundial de Combate à Hepatite, promovido pelo Expresso com a Gilead, esta terça-feira (28 de julho)

“Assegurar o acesso dos cidadãos migrantes à saúde” deve ser o “dever de uma sociedade solidária em tempos de crise”. A frase é de Eduardo Cabrita, ministro da Administração Interna, que falava ao jornal Público, em março, a propósito da medida anunciada pelo Governo para a legalização de todos os estrangeiros em situação irregular em Portugal. O objetivo era permitir que qualquer pessoa, independentemente da sua situação, pudesse receber cuidados de saúde se deles precisasse, de forma a fortalecer o combate à pandemia. Contudo, a ausência de um número de utente continua a ser, para muitos migrantes, um entrave ao diagnóstico e ao tratamento de infeções causadas pelos vírus das hepatites.

Quebrar as barreiras linguísticas, económicas e sobretudo legais é um dos grandes objetivos do projeto GAT’Afrik, do Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT). Edna Tavares explica que “o nosso papel é acompanhar e dar seguimento” aos processos de legalização de migrantes com origem em África, embora realce que este apoio está disponível à população em geral. A responsável pelo programa diz que “são raros os dias em que não nos chegam pessoas que foram ao centro de saúde e que viram a sua inscrição recusada por não terem título de residência” - documento cuja emissão, via Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), é demorada. Sem este procedimento burocrático concluído, estrangeiros a viver em Portugal não conseguem aceder ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e beneficiar das condições a que tem direito qualquer cidadão português.

‘Ana’, de 59 anos, é natural de São Tomé e Príncipe e está em Portugal há dois anos. Veio com diagnóstico associado a níveis elevados de colesterol, mas foi quando procurou o GAT para conseguir ajuda no processo de legalização que descobriu a infeção com o vírus da hepatite C (VHC). “Quando a Ana nos pediu ajuda, fizemos uma proposta de rastreio e percebemos que estava infetada”, conta Edna Tavares, detalhando que o GAT assegurou a ligação com o SEF e conseguiu dar a Ana acesso ao SNS. “Ajudaram-me a conseguir o documento e as consultas”, atesta a são-tomense. Desde fevereiro, Ana já pôde iniciar e concluir o tratamento para a hepatite C.

A coordenadora do GAT’Afrik explica que a organização não-governamental ajuda “com despesas relacionadas com a medicação, o transporte e refeição durante o acompanhamento”, procurando eliminar as barreiras que possam existir entre o doente e o tratamento. José Poças, que participou no debate dedicado ao Dia Mundial de Combate à Hepatite - organizado na passada terça-feira pelo Expresso com a Gilead - descreve o processo burocrático de legalização como um “verdadeiro calvário para as pessoas”. “Um imigrante que estivesse a fazer tratamento no seu país e queira continuá-lo aqui, se fizer as coisas como é obrigado a fazer, aquela pessoa vai interromper o tratamento até obter um título de residência”, partilha o diretor do Serviço de Infeciologia do Centro Hospitalar de Setúbal. Por isso, garante, comete “esta pequena ilegalidade” e dá seguimento à inscrição do doente porque, sublinha, o importante é “tratar, acompanhar e se possível erradicar” as hepatites virais.

Para que Portugal consiga cumprir o objetivo de eliminar as hepatites até 2030, José Poças não tem dúvidas de que é importante olhar para as populações de migrantes – em especial com origem na África Subsariana, Ásia ou Europa do Leste, onde a prevalência da doença é maior – e adotar uma política que permita “chegar às bolsas de doentes ocultos”. Organizações como GAT têm vindo a facilitar a identificação de doentes, em particular dos grupos mais vulneráveis, através do rastreio. Desde 2016, a instituição testou mais de 20 mil pessoas para as hepatites B e C, entre as quais 500 acusaram positivo. Luís Mendão, presidente do GAT, reconhece que “não é suficiente”, mas reforça que “é um grande esforço para uma ONG com poucos fundos conseguir fazer todo este trabalho”. “Os cuidados primários de saúde devem dar acesso aos rastreios” a todas as pessoas, remata o ativista.