23.7.20

Mais de 45 mil reclamam estatuto de vítima para crianças em contexto de violência doméstica: “A defesa das crianças não deve ter partidos nem cores”

Carla B. Ribeiro, in Público on-line

Petição alerta para o perigo da interpretação dúbia da lei existente, considerando não ser suficiente para proteger as crianças. “Ou a lei é clara ou as crianças estão sujeitas à interpretação de cada juiz.”

O objectivo passava por reunir quatro mil assinaturas, mas as vozes que se juntaram a este apelo multiplicaram-se por mais de dez. Até às 21h desta segunda-feira, 45.191 pessoas tinham assinado a petição pública para a aprovação do Estatuto de Vítima para crianças inseridas em contexto de violência doméstica.

Esta não é a primeira vez que o assunto é abordado, mas agora é a sociedade civil a exortar que o tema regresse à Assembleia da República, com a primeira signatária e autora da petição, a escritora e pintora Francisca Magalhães de Barros, a ser recebida por Eduardo Ferro Rodrigues, esta quarta-feira, pelas 12h30. A acompanhá-la estarão a fundadora e presidente honorária do Instituto de Apoio à Criança (IAC) Manuela Eanes, a actual presidente da instituição, Dulce Rocha, os advogados António Garcia Pereira e Isabel Aguiar Branco, o jurista e antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira e o apresentador e humorista Nuno Markl.

 Para a autora da petição, o texto tornou-se claro depois de compreender que a defesa dos menores está sujeita à interpretação e sobretudo quando permanece a distinção entre se ser vítima directa e indirecta. “Pretendemos que as crianças tenham o Estatuto de Vítima mesmo que não tenham sido alvo de violência directamente, mas tenham assistido a quadros de violência.”

A ideia vai ao encontro da Convenção de Istambul para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica e ratificada por Portugal, relata a presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança (IAC), Dulce Rocha.

Enquanto isso não for claro, explica a presidente do IAC, “um tribunal pode recusar declarações para memória futura”, quando as crianças são ouvidas em ambiente protegido e sem contacto com a pessoa que os terá agredido. “Nos meus tempos de tribunal”, recorda, “cheguei a ver crianças a fazer xixi pelas pernas abaixo e a não abrirem a boca”. O Estatuto de Vítima vai “permitir que a criança não esteja presente no julgamento, que seja ouvida numa sala própria e que não seja forçada a repetir constantemente o que disse”. “Para evitar a revitimização da criança temos antes de a considerar vítima”, sumariza ao PÚBLICO.

A importância das declarações para memória futura foi sublinhada pela procuradora-geral da República, Lucília Gago que, em finais de 2019, assinou uma directiva com “orientações de actuação uniforme na área da violência doméstica” para magistrados do Ministério Público, sendo uma das medidas a audição de crianças expostas a violência doméstica. Porém, a directiva não tem força de lei.

“O actual quadro jurídico – aprovado por uma lei de 2015 – está pensado para aplicar a crianças que sejam directamente agredidas, deixando de fora crianças que não sendo vítimas directas vivenciam actos de violência”, explica o signatário António Garcia Pereira, acrescentando que, ainda assim, “há uma resistência na aplicação do estatuto de vítima, com base na letra da lei 130/2015”. “O actual quadro normativo não é suficiente para assegurar a defesa da criança”, conclui, advogando que “uma criança que vivencia uma situação de violência doméstica tem direito a uma especial protecção - tenha sido fisicamente agredida ou não”.

Quando a lei se interpreta

A luta pelo Estatuto de Vítima para crianças em contextos de violência doméstica não é de hoje: ainda há um ano, um projecto apresentado nesse sentido foi chumbado na especialidade, com os votos contra do PS, PCP e CDS, e já em Maio deste ano o tema regressou ao Parlamento, mas acabou por não ir a votos. “Não por os deputados serem contra, mas por terem considerado ser redundante com a lei que existe que pode ter essa interpretação”, explica Dulce Rocha. No entanto, relata a também procuradora da República jubilada, a consideração dos deputados não reflecte a realidade, uma vez que o texto actual pode ser sujeito a essa interpretação, mas também a várias outras. “Lembra-me quando, em 1994, ano internacional da família, já havia juízes que admitiam a guarda conjunta, mas outros que defendiam que se o regime não estava redigido na lei não era legal – mesmo quando ambos os pais o pretendiam.”

Francisca Magalhães de Barros não é jurista, mas conhece de perto a violência doméstica, de que foi vítima, assim como a filha menor. Foi esse episódio da sua vida que a despertou para o activismo contra a violência doméstica, mas também para um sistema que, acusa, nem sempre sabe defender a criança. Dulce Rocha concorda: “Estamos sempre a desconsiderar as crianças.”

E isto acontece, segundo a jurista, devido ao facto de “a lei não ser clara”. “O que queremos”, conta Francisca Magalhães de Barros, “é que as crianças sejam tidas como vítimas mesmo que tenham apenas presenciado a violência, que sejam sinalizadas e ouvidas num prazo de 72 horas e que sejam aplicadas medidas de afastamento da mãe ou pai agressores”. E, desta vez, espera que o resultado seja diferente: “Não estamos sozinhos; temos 45 mil pessoas atrás de nós.”