27.7.20

De Alcindo Monteiro a Bruno Candé. Crimes contra as "vidas negras" em Portugal

Marta Grosso , Ricardo Vieira

Para Bruno Candé Marques, um ator negro de 39 anos, com três filhos menores, a morte chegou depois de várias ameaças e insultos racistas, denuncia a família. É na zona de Lisboa que acontece a maioria dos casos de violência contra negros.

Numa altura em que o debate sobre a violência racial assume um lugar proeminente nas bocas do mundo, depois da morte do afroamericano George Floyd às mãos da polícia de Minneapolis, Portugal ficou em estado de choque com o assassinato de Bruno Candé Marques.

Não há contabilidade exata das mortes de negros em Portugal por motivações raciais. Organizações de afrodescendentes relatavam à ONU, em 2016, a existência de dezenas de casos, desde a morte de Alcindo Monteiro nos anos 90.

Mais recentemente, Mamadou Ba, do SOS Racismo, referia pelo menos 10 mortes, nos últimos 15 anos, às mãos da policia. Lembramos alguns dos casos mais mediáticos.

Bruno Candé Marques, um ator de 39 anos, que tinha escapado à morte depois de um atropelamento do qual ainda estava a recuperar, foi baleado "em várias partes do corpo" e não resistiu. O crime aconteceu em plena via pública. O autor, um homem com cerca de 80 anos, foi detido no local.

Os vizinhos dizem que o suspeito – que não ofereceu resistência às autoridades – concretizou, nessa tarde, as ameaças que vinha a fazer há alguns dias.

A família exige "justiça célere e rigorosa" perante um crime que considerou "premeditado e racista" e a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, fala num "um crime horrível, um assassinato violento, racista". Ao jornal "Público", a PSP disse que, até ao momento, não tem qualquer informação que comprove a acusação.

Bruno Candé Marques vivia no Casal dos Machados, na freguesia do Parque das Nações (concelho de Lisboa), e foi assassinado ali perto, em Moscavide (concelho de Loures).

A morte chocou o país e a comunidade artística, em particular. Não é um caso único de violência em Portugal, mas se nuns os contornos raciais parecem evidentes, noutros são apontados motivos fúteis ou estão relacionados com ações policiais.

Giovani Rodrigues (21 de dezembro de 2019)

O jovem cabo-verdiano de 21 anos foi encontrado caído na Avenida Sá Carneiro, em Bragança, mais de meio quilómetro e alguns minutos a pé do bar Lagoa Azul, onde terá estado com um grupo de amigos e onde terá começado uma desavença.

O caso chegou às autoridades locais como um possível alcoolizado caído na rua sem menção a agressões ou ferimentos, segundo comandante dos bombeiros locais.

Só depois de chegar ao local e avaliar a vítima é que a equipa de emergência descobriu um ferimento na cabeça e “verificou que se tratava de um possível traumatismo craniano”.

Giovani Rodrigues acabaria por morrer a 31 de dezembro, no Hospital de Santo António, no Porto. Os vários suspeitos da autoria desta morte estão em prisão preventiva, a aguardar julgamento.

Apesar de o diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, garantir que a morte de Luis Giovani Rodrigues não está relacionada com "nacionalidades ou raças", muitos acreditam que o crime terá tido motivações racistas.

Wilson Neto (novembro de 2013)

Foi perseguido e esfaqueado na estrada de Benfica, em Lisboa, por aspirantes a “hammerskins” (um grupo da supremacia branca formado em 1988 nos EUA), diz o Ministério Público no despacho de acusação.

Quando saía do autocarro, às 6h15 da manhã, Wilson ouviu alguém abordá-lo de um carro: “Tens a mania que és engraçado.”

O jovem começou a correr sem responder à provocação. Mas, sem forças, acabou por cair por terra. Foi então alcançado pelos elementos do grupo que, “indiscriminadamente, lhe desferiram inúmeros socos e pontapés por várias partes do corpo, e ainda facadas na coxa esquerda”.

Quando este desfaleceu junto a uma parede, já do outro lado da rua, os arguidos “voltaram a desferir-lhe socos e pontapés por várias partes do corpo, facadas no abdómen e tórax e ainda golpes com uma chave de rodas na mão esquerda”.

Ficou inanimado no solo. “Já chega”, afirmou um dos arguidos.

Wilson Neto sofreu fraturas e múltiplas lacerações e feridas – lesões que lhe impuseram um período de doença de 60 dias, com 30 dias de afetação da capacidade de trabalho.

Segundo o Ministério Público, os ferimentos que sofreu poderiam “determinar a sua morte”, já que os arguidos “visaram partes do corpo” onde sabiam “encontrar-se órgãos vitais”.

E apenas agiram assim, “porque o ofendido é de raça negra, denotando com as suas condutas total ausência de responsabilização e desprezo pela vida humana”, lê-se ainda na acusação divulgada pelo jornal "Público".

Abril de 2014 – senegalês agredido por cabeças rapadas

Seis meses depois, também em Lisboa, alguns dos arguidos no caso de Wilson Neto agrediram um cidadão senegalês, vendedor ambulante, mais uma vez aproveitando a “superioridade numérica” para lhe tirarem os bens que vendia, antes de este ser conduzido ao hospital pelo INEM.

Aconteceu na Rua Diário de Notícias, no Bairro Alto, na madrugada de uma sexta-feira de abril.

O Ministério Público fala em crimes para cumprir “ritos de iniciação”. Entre 2013 e 2017 (já depois de 20 membros de um grupo de “hammerskins” terem sido detidos, ainda que sem prisão preventiva) terão sido cometidos dezenas de crimes raciais.

Em junho deste ano (2020), o Ministério Público acusou um grupo de 27 homens por homicídio qualificado e crimes raciais cometidos, pelo menos, desde 2015.

Foram ainda indiciados por ofensas à “integridade física qualificada, incitamento à violência, dano com violência, detenção de arma proibida, roubo, tráfico de estupefacientes e tráfico de armas”.

Mas nem todos os suspeitos foram detidos para serem julgados. O processo tem 18 vítimas.

Os indivíduos promoviam a "superioridade da raça branca" e estarão ligados aos “Hammerskins” – um grupo que, de acordo com o Ministério Público, “perfilha a ideologia nazi, apelando e exaltando a superioridade da raça branca, pretendendo expulsar ou impedir a entrada em Portugal de todas as minorias étnicas, bem como agredir os nacionais negros e ciganos”.

Os elementos são homens entre os 24 e os 50 anos com as mais variadas profissões. Diz o Ministério Público que só podem candidatar-se a um lugar neste grupo “indivíduos do sexo masculino, com idade superior a 18 anos que sejam, única e exclusivamente descendentes de caucasianos, até onde seja possível identificar essa característica”.

“O grupo perfilha a ideologia nazi apelando e exaltando a superioridade da raça branca, pretendendo expulsar ou impedir a entrada em Portugal de todas as minorias étnicas, bem como agredir os nacionais negros e ciganos.”

Alcindo Monteiro (10 de junho de 1995)

É dos casos mais conhecidos de morte às mãos do racismo. Alcindo Monteiro tinha 27 anos e era natural de Cabo Verde. Foi morto à pancada, com pontapés na cabeça, por ter uma cor de pele diferente dos seus agressores.

Tudo aconteceu numa noite em que o país comemorava o Dia de Portugal e das Comunidades e um grupo de extrema-direita distorciam essa efeméride com um jantar para assinalar o dia da raça, no Bairro Alto, em Lisboa.

Alcindo Monteiro foi encontrado inconsciente na Rua Garrett, no Chiado. O espancamento provocou hemorragias, lesões traumáticas crânio-encefálicas e fraturas.

Acabou por morrer no dia 11 de junho, às primeiras horas da madrugada.

Casos de polícia…

Mas nem todos os casos em que um negro perdeu a vida foram suscitados por grupos de extrema-direita. Há também situações que envolvem operações policiais.

Agressões na esquadra de Alfragide (fevereiro de 2015)

A 20 de maio de 2019, o Tribunal de Sintra condenou oito dos 17 polícias da Esquadra de Alfragide, concelho da Amadora, acusados de agressões e sequestro de seis jovens da Cova da Moura, em 2015, mas absolveu-os dos crimes de racismo e tortura.

O coletivo de juízes aplicou a sete dos arguidos penas de entre dois meses e cinco anos de prisão, suspensas na sua execução por igual período, pelos crimes de sequestro, de ofensa à integridade física qualificada, de falsificação de documento, de injúria e de denúncia caluniosa.

A um dos arguidos, o coletivo de juízes determinou que a pena de um ano e meio fosse efetiva, por este arguido já ter sido condenado no passado.
Oito polícias condenados no caso da esquadra de Alfragide. Foto: Miguel A. Lopes/Lusa

Musso (maio de 2013)

Musso foi detido em maio de 2013 por um alegado furto no interior de um supermercado. Foi libertado no mesmo dia, mas, uma semana mais tarde, dava entrada no Hospital Amadora-Sintra, onde ficaria internado durante alguns dias.

O jovem queixava-se de dores de cabeça e de ter sido torturado pelos agentes da polícia.

Acabaria por morrer um mês mais tarde, ainda internado no hospital.

A PSP abriu um inquérito ao caso, mas ninguém foi responsabilizado.

Elson Sanches – “Kuku” (4 de janeiro de 2009)

Na ronda durante a noite, uma equipa da PSP da Amadora detetou um carro que se encontrava furtado e por apreender. Entre os jovens que seguiam no veículo estava Elson Sanches, um jovem de 14 anos conhecido por “Kuku”.

Seguiu-se uma perseguição policial no bairro de Santa Filomena e “Kuku”, que fugia, foi apanhado. Minutos depois, era baleado pela polícia.

De acordo com uma análise forense, a arma encontrava-se a menos de 20 centímetros da sua cabeça.

Não havendo testemunhas, a acusação do Ministério Público levou o agente responsável pelo disparo a tribunal, num julgamento que se arrastou ao longo de quase quatro anos.


O relatório da Polícia Judiciária afastava a hipótese de legítima defesa e apontava para a existência de um crime de homicídio não qualificado, mas negligente. O Ministério Público pediu a condenação do agente, que acabou por ser absolvido.

O caso de Elson "Kuku" Sanches vem mencionado num relatório do Conselho da Europa, que refere a existência de "manipulação de provas" no processo.

Nuno Manaças Rodrigues – “Mc Snake” (15 de março de 2010)

Às 4h00 da madrugada, o ‘rapper’ Nuno Manaças Rodrigues, mais conhecido como "Mc Snake", fugiu de uma operação STOP junto à doca de Santo Amaro, em Lisboa.

O agente Nuno Moreira e mais quatro polícias perseguiram o fugitivo, até que conseguiram atravessar a carrinha policial à frente do carro, na Radial de Benfica.

Os agentes saíram da carrinha quando Nuno Manaças se preparava para fazer inversão de marcha e fugir novamente.

O agente Nuno Moreira disparou uma vez para o ar e duas vezes sobre o automóvel, acabando por atingir mortalmente o ‘rapper’.

Em junho de 2011, o PSP foi condenado a 20 meses de prisão com pena suspensa, pelo crime de homicídio por negligência grosseira.

Um caso semelhante aconteceu em 2017, quando uma perseguição policial teve um final fatal. Uma mulher morreu atingida no pescoço pela PSP, em Lisboa.

A vítima mortal foi abatida por engano, depois de a viatura em que seguia ter sido confundida com uma outra, envolvida num assalto a uma caixa multibanco.

De acordo com o comunicado da PSP emitido na altura, por volta das 3h35, na zona da Encarnação, em Lisboa, foi detetada uma viatura que aparentava corresponder às características da viatura suspeita, cujo condutor desobedeceu à ordem de paragem.

As autoridades lamentam a "morte da cidadã envolvida na ocorrência", que não estava relacionada com o assalto que esteve na origem da perseguição policial.

Carlos Reis (26 de março de 2003)

É mais um caso de fuga a uma operação STOP. Eram 22h45 quando Carlos Alberto Costa Reis e a mulher, Marlene Silva, não respeitaram a ordem de paragem.

Aos 20 anos, Carlos Alberto Costa Reis foi atingido na cabeça por um agente da PSP, numa rotunda do Bairro do Zambujal, em Alfragide (concelho da Amadora).

A mulher, com 18 anos e grávida, também ficou ferida.

Segundo a polícia, os agentes da PSP dispararam “para o ar” e “em direção ao carro na tentativa de o imobilizar”. Foi nessa altura que atingira o condutor.

O Comando Metropolitano da PSP refere ainda que, durante a tentativa de fuga, a vítima mortal tentou “atropelar um dos agentes” envolvidos na operação.

O polícia e o condutor foram transportados ao Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa. Carlos Reis acabou por morrer internado.