São José Almeida, in Público on-line
Helena Roseta vai dirigir o programa Bairros Saudáveis, que consiste em apoiar projectos de moradores de bairros precários. “Não temos uma política de habitação pública forte”, afirma, acusando o poder político de “inércia” perante a permanência de bairros ilegais: “Não é só incúria, é a vontade de ignorar o assunto.”
Arquitecta de profissão e política por convicção, aos 72 anos, Helena Roseta é uma autoridade em Habitação. Antiga presidente da Câmara de Cascais (1982-1985), vereadora da Habitação em Lisboa (2007-2013), presidente da Assembleia Municipal (2013-2019), deputada desde a Constituinte, despediu-se do Parlamento, na última legislatura, com a aprovação da Lei de Bases da Habitação. Em plena pandemia, inspirando-se no programa Bip/Zip, que lançou em Lisboa há dez anos, propôs ao primeiro-ministro o programa Bairros Saudáveis. António Costa aceitou e convidou-a para liderar o projecto.
O programa Bairros Saudáveis vai mesmo servir para melhorar algo?
É um programa dirigido especificamente a territórios que têm necessidades de intervenção. Por exemplo, chega-se à conclusão de que as pessoas não têm acesso a cuidados de saúde porque não têm meios. Pode fazer-se um programa específico para as pessoas se organizarem para terem melhores cuidados de saúde, nomeadamente a prevenção da covid, explicada em língua simples, máscaras para todos, controlo social. Ou seja, as pessoas entre si a colaborarem para cumprirem as regras. Mas podem ser coisas muito diferentes. Para miúdos que não estão a ir à escola pode organizar-se salas de estudo, arranjar voluntários, pagar a esses voluntários, tomar conta dos miúdos. Pode ser uma coisa mesmo para o bairro e estou a pensar numa numa “ilha” do Porto, onde a maior parte das casas não tem casa de banho própria. A construção de uma pequena instalação sanitária não é uma coisa assim tão cara e faz a diferença, faz a melhoria. Estamos a falar de coisas deste género. A outra coisa importante é que é um programa em que as propostas vêm desses territórios e são desenvolvidas por eles.
Como vai funcionar?
A coisa mais difícil até agora, mas já resolvida, é que a entidade responsável é constituída por sete ministérios, cada designa um elemento. Reúno directamente com essas sete pessoas.
Quem é a sua equipa?
Dela fazem parte, por exemplo, os arquitectos Aitor Varea, investigador da Universidade de Arquitectura do Porto e coordenador do programa Habitar Porto, Tiago Mota Saraiva, fundador do Ateliermob e da cooperativa Trabalhar para os 99%, e os médicos de saúde pública Isabel Loureiro, professora da Escola Nacional de Saúde Pública e vice-presidente do Conselho Nacional de Saúde, Mário Jorge Santos, coordenador de saúde pública na região do Alentejo, e Hugo Esteves, responsável pela saúde pública em Odivelas/Loures e docente na Universidade Lisboa.
Estamos a preparar um inquérito online, uma consulta pública, em que qualquer cidadão pode responder ao inquérito e identificar zonas [que precisam de intervenção]
Como vão identificar os bairros?
Vamos fazê-lo de uma maneira expedita. Por um lado, pedir a estes ministérios, através das suas redes, que identifiquem territórios que tenham as condições definidas más condições de habitabilidade, problemas sanitários, rendimentos baixos. O Ministério do Trabalho também faz parte dos pontos focais e, portanto, pode fazer-nos a cartografia de onde estão as pessoas que recebem Rendimento Social de Inserção e Complemento Solidário de Idosos. Ao mesmo tempo, estamos a preparar um inquérito online, uma consulta pública, em que qualquer cidadão pode responder ao inquérito e identificar zonas.
Como contactam com os locais?
Vamos fazer sessões a que chamamos de capacitação, nos territórios, para explicar às pessoas como se faz um projecto, como identificam os problemas do seu bairro, quanto é que pode custar. Cada projecto pode ir até cinquenta mil euros num ano. Depois há um formulário próprio, tudo online, para se candidatarem. Outra coisa importante é que as candidaturas são apresentadas por parcerias, não são apresentadas por nenhuma entidade sozinha. Pode ser, por exemplo, uma associação de moradores com uma freguesia, uma associação de moradores com uma organização não governamental (ONG).
Vão trabalhar com as ONG que já estão no terreno?
Com as ONG que estão no terreno e com os moradores. Alguns moradores estão organizados, outros não. Mas é obrigatório que os moradores estejam nos projectos. Há bairros onde há várias ONG a trabalhar, isso é óptimo. Quanto maior for a parceria melhor. No mínimo, têm de ser duas entidades.
Daniel Rocha
Farão um trabalho complementar?
É completamente complementar. Muitas destas entidades percebem que podem fazer a intervenções. Por exemplo, as unidades locais de saúde sabem o que é preciso nos seus bairros, mas não têm meios. Este programa pode financiar isso. Um dos parceiros pode ser precisamente a unidade local de saúde. Também as escolas.
Como é feita a selecção?
É um concurso público online que prevejo possa ser aberto em Outubro, para dar tempo para fazer o levantamento, fazer as sessões, construir as parcerias. Há um júri independente, de cinco pessoas.
Escolhidas por si?
Propostas por mim e aprovadas pela entidade responsável. No regulamento está definido como é que as propostas são avaliadas, quais os critérios. Por exemplo, ser um projecto relevante para o território ou envolver a comunidade ou ser inovador são três características que têm pontuação importante. Todas as candidaturas são pontuadas. Enquanto houver dinheiro, vai-se financiando. Como são as próprias pessoas que vão executar e podem acumular o dinheiro deste programa com outras verbas e apoios que arranjem, a experiência que temos de Lisboa é que, com este dinheiro, se potenciam muitas coisas.
Temos de ter políticas de habitação mais robustas do que as que temos tido. Não temos uma política de habitação pública forte. Helena Roseta
Não deveriam ser as câmaras a avançar com estas iniciativas?
Não podemos achar que tudo o que é trabalho de proximidade tem de ser feito pelas câmaras. Aliás, até há iniciativas da União Europeia para apoiar este tipo de projectos, são os apoios integrados ao desenvolvimento local. Há verba comunitária para isto, tem de haver verba nacional. E muitas vezes o que não há é mecanismos. O que estou a criar é um mecanismo.
Mas não deveriam ter sido já os departamentos de acção social das câmaras a organizar estes projectos?
Isto não é só social. É uma coisa transversal, mete vários ministérios, vários departamentos. A saúde não é competência das câmaras, é do Estado central - e bem. Quando se faz um programa nacional, facilita-nos fazer o cruzamento, através dos vários ministérios. Por outro lado, é preciso ter em conta uma coisa, que é minoritária, mas não posso deixar de referir. Há territórios vulneráveis, em vários sítios do país, que as próprias autarquias não os querem lá.
O caso dos ciganos em Beja foi polémico.
Por exemplo, mas não só. Há situações de bairros precários que as câmaras mandam demolir e as pessoas que se vão embora. Há várias situações em que as câmaras não consideram prioritário resolver os problemas, são coisas muito pequeninas, não representam votos. E há casos em que é o contrário, que ultrapassam claramente a capacidade camarária. Falo, por exemplo, dos quatro mil trabalhadores precários em Odemira. Como é que uma câmara, no Alentejo, lida com uma população temporária que ultrapassa claramente a sua capacidade? Um dos ministérios que está ligado a este projecto é o da Agricultura, e não é só por causa dos trabalhadores precários no Alentejo, mas também no Algarve, na zona Oeste. Por exemplo, muitos destes trabalhadores não falam português, o Alto Comissariado para as Migrações tem tradutores, mas como é que se chega lá? É este tipo de coisas que o programa pode fazer.
Estão previstos 10 milhões de euros, para ano e meio. Entre 5 mil e 50 mil euros por projecto. É suficiente?
Como os projectos têm de vir das comunidades, isso significa que tinha de ter 200 projectos já no primeiro ano. É um desafio enorme. E até podem ser mais, se forem mais pequenos. Se conseguirmos, num ano, fazer melhorias propostas em duzentos sítios, não acho que seja dinheiro a menos, é o razoável. Porque não vale a pena estar a despejar uma data de dinheiro e depois não se concretizar. Isto é para gastar tudo, integralmente.
Permanece, pelo menos na Área Metropolitana de Lisboa (AML), um problema de densidade populacional e de condições de habitabilidade muito problemático.
É evidente. Por isso é que temos de ter políticas de habitação mais robustas do que as que temos tido. Não temos uma política de habitação pública forte.
Criou-se a ideia de que estava resolvido com Programa Especial de Realojamento de António Guterres, entretanto, as coisas agravaram-se.
E não está, é uma ideia errada. Fartei-me de protestar contra essa ideia. Aliás, o António Costa, como primeiro-ministro, referiu essa ideia de que estava resolvido, agora era preciso resolver para a classe média. Nem uma coisa, nem outra. Nem chegámos a uns, nem a outros. Os levantamentos feitos pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para essas necessidades mais graves, identificaram 26 mil famílias. Nós sabemos que são muitas mais. Estão a ser entregues, no IHRU, as estratégias de habitação dos vários municípios para o IHRU financiar, mas tudo está a ser muito lento.
O Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, anunciado no primeiro Governo de António Costa, já devia estar a produzir habitação acessível e até agora nada Helena Roseta
Uma coisa são os bairros precários, outra coisa é a permanência em Portugal de bairros ilegais, a que é que isto se deve?
Há muito trabalho feito em relação ao que hoje se chama Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI) e que eram os antigos clandestinos, em que as pessoas compraram o terreno, construíram as casas, não tinham as infra-estruturas de urbanização e, à posteriori, foram feitas. Muitos bairros à volta de Lisboa já foram legalizados, ao abrigo da legislação sobre as AUGI. Continuamos a ter muitos que ainda não estão. Só um terço das AUGI na região de Lisboa tem condições para ser legalizada. Para os outros não há solução nenhuma.
Então o que se faz?
O regime extraordinário para a legalização das AUGI acaba em 2021. Tem de ser feita nova legislação, para ver que solução se dá se não puderem ser legalizadas.
E os casos como a Cova da Moura, em que o terreno não é deles?
Uma coisa são os bairros AUGI, que compraram o terreno, têm uma legitimidade, são proprietários. Constituem associações de proprietários para resolver. Outra coisa são bairros de quem se instalou em terrenos que não lhes pertencem e que, entretanto, cristalizaram ali. Tem de se encontrar soluções. Muitas vezes, um conjunto inteiro não pode ser legalizado tal como está, mas pode sê-lo parcialmente. Na Cova da Moura, e noutros casos, a questão principal é a da propriedade dos terrenos, uma parte é privada e outra é pública. Como é que nem o Estado nem a câmara se chegaram à frente para regularizar isso? Porque se se regularizar a posse do terreno, esse é o primeiro passo para regularizar um bairro.
Há incúria e falta de sensibilidade social da parte do Governo e das câmaras?
Claro que há. Mas não é só incúria, é vontade de ignorar o assunto. Andamos a falar disto há que tempos. Temos o levantamento feito pela Faculdade de Arquitectura, estamos a falar de milhares de situações, há pelo menos 200 bairros precários na AML. São situações para as quais é preciso soluções. Na Lei de Bases da Habitação tive a preocupação de colocar que enquanto as pessoas aguardam realojamento, no sítio onde elas estão, tem de haver melhorias. É uma visão gradualista e de baixo para cima.
Que o Governo não tem?
Ainda agora, no Programa de Recuperação Económica e Social de António Costa Silva vem uma ideia de que andamos a falar há anos: imóveis públicos do Estado reconvertidos em habitação. Isto já foi decidido há anos, existe um fundo e nada acontece. O Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, anunciado no primeiro Governo de António Costa, já devia estar a produzir habitação acessível e até agora nada. Há uma inércia muito grande. O programa Bairros Saudáveis não vai resolver isso, mas pode ajudar a identificar situações e vai desencadear focos de energia. Sem isso não fazemos nada. A energia das pessoas é muito mais importante do que o dinheiro. O dinheiro aparece depois. E ele existe e muitas vezes não é gasto. Mudando os métodos também mudamos os resultados.
Claro que há. Mas não é só incúria, é vontade de ignorar o assunto. Andamos a falar disto há que tempos. Temos o levantamento feito pela Faculdade de Arquitectura, estamos a falar de milhares de situações, há pelo menos 200 bairros precários na AML. São situações para as quais é preciso soluções. Na Lei de Bases da Habitação tive a preocupação de colocar que enquanto as pessoas aguardam realojamento, no sítio onde elas estão, tem de haver melhorias. É uma visão gradualista e de baixo para cima.
Que o Governo não tem?
Ainda agora, no Programa de Recuperação Económica e Social de António Costa Silva vem uma ideia de que andamos a falar há anos: imóveis públicos do Estado reconvertidos em habitação. Isto já foi decidido há anos, existe um fundo e nada acontece. O Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, anunciado no primeiro Governo de António Costa, já devia estar a produzir habitação acessível e até agora nada. Há uma inércia muito grande. O programa Bairros Saudáveis não vai resolver isso, mas pode ajudar a identificar situações e vai desencadear focos de energia. Sem isso não fazemos nada. A energia das pessoas é muito mais importante do que o dinheiro. O dinheiro aparece depois. E ele existe e muitas vezes não é gasto. Mudando os métodos também mudamos os resultados.