24.7.20

Morreram mais 615 pessoas do que seria esperado na última semana

Marta F. Reis, in Ion-line 

Mortalidade aumentou desde o início do mês e só nos últimos sete dias de intenso calor morreram mais 615 pessoas do que é considerado esperado. Nos idosos, o excesso de mortalidade é maior do que no pico da covid-19, em abril. “Temos um milhão de doentes crónicos que precisamos de acompanhar”, alerta médico.

A mortalidade por todas as causas tem estado a aumentar desde o início de julho e a tendência agravou-se nos últimos dias de intenso calor. Só nos últimos sete dias, revelava ontem o sistema de vigilância de mortalidade (eVM), houve mais 615 mortes do que seria esperado nesta altura do ano. A plataforma indica que o excesso de mortalidade se verificou nos idosos, em particular acima dos 75 anos, em que o pico de mortalidade foi maior do que o que se verificou no pico da epidemia de covid-19, em abril. No final da semana passada, a Direção-Geral da Saúde já tinha indicado que desde o início de julho se tinham registado 919 óbitos acima do esperado para esta altura do ano, coincidindo com os dias de maior calor. Esta semana não foi ainda feito um ponto de situação, mas só este mês já terá mais de mil mortes acima do expetável, isto numa altura em que, apesar de um aumento ligeiro da mortalidade por covid-19 nas últimas semanas, a epidemia dá sinais de abrandamento. Nos dias de verão, a média diária de mortes costuma rondar as 250 a 300, mas na última semana houve quatro dias com 400 óbitos.

Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, admite ao i preocupação com o aumento da mortalidade por todas as causas, tendo em conta o facto de a tendência se verificar já há vários dias e de o tempo quente poder manter-se nos próximos meses. O médico sublinha que o calor pode levar ao agravamento e descompensação de doença crónica, mas o receio é de que esteja também a refletir-se neste aumento da mortalidade a quebra no acompanhamento médico de doentes crónicos e idosos nos últimos meses. “Sabemos que seria algo expetável, mas são dados preocupantes”, diz o médico, lembrando os estudos que já tinham alertado para que o excesso de mortalidade registado em alguns períodos dos últimos meses era superior aos óbitos atribuídos à covid-19, uma situação que os períodos de maior calor durante o verão poderá agravar. “É bem possível que este ano tenhamos dois óbitos não covid além do esperado por cada óbito covid, o que não é uma situação razoável”, considera o médico, sublinhando que a resposta que o país tem dado à epidemia e que tem resultado numa baixa mortalidade associada ao novo vírus não deve descurar a análise do impacto na restante população e nas necessidades de assistência. “Temos um problema que estávamos à espera que acontecesse a qualquer momento e que não sabemos qual será a dimensão dele, que é o aumento da mortalidade por efeito da covid-19 mas não diretamente ligado à covid-19, que é o que parece estar a acontecer, e não me parece que tenhamos ainda consciência total do que poderão ser os efeitos da epidemia nos outros doentes”, diz Rui Nogueira. “Temos um milhão de doentes crónicos que precisamos de acompanhar e nos últimos meses estivemos muito concentrados na covid-19, tendo tido um pico de 20 mil casos ativos, agora menos, mas na maioria dos casos ligeiros. Sabemos que o calor aumenta o risco de descompensação, seja de situações de diabetes ou insuficiência cardíaca, e temos tido esses casos, mas esses são os doentes que vamos vendo. Temos consciência de que ainda estamos a ver menos doentes do que devíamos ver”. Rui Nogueira alerta ainda para outros casos em que poderá refletir-se o efeito de diagnósticos tardios, que poderá também contribuir para um aumento da mortalidade.

Em Inglaterra, um estudo divulgado este mês estimou que a epidemia poderá levar a um aumento de pelo menos sete mil mortes por doença oncológica no espaço de um ano, podendo chegar a 35 mil mortes adicionais. “Neste momento o calor deve ser o grande responsável por descompensação de doença de base que contribui para o aumento da mortalidade, não creio que possamos pensar na covid-19 pois não temos tido casos para isso e a mortalidade tem estado relativamente baixa, mas poderemos ter uma conjugação de fatores daqui para a frente. Não é possível estarmos tantos meses sem atividade normal e a ver menos doentes sem haver um impacto”, diz o médico, sublinhando que o medo continua a levar doentes a adiar idas aos centros de saúde e hospitais. “Temos de conseguir aprender a viver com este vírus, pois a situação à partida não ficará melhor do que agora, sobretudo no inverno, quando teremos os vírus respiratórios habituais mais a covid”.

A DGS tem associado o aumento recente da mortalidade ao calor, sendo que desde 10 de julho se verificou uma onda de calor em vários pontos do país. Nas últimas década foram registados fenómenos semelhantes de aumento da mortalidade durante vagas de calor. Em 2013, uma onda de calor também nesta altura do ano foi associada a um excesso de 1684 mortes, na altura um aumento de 32% face ao esperado. Nesse verão chegou a haver um dia com perto de 500 mortes, um registo que só foi ultrapassado há dois anos. A 6 de agosto de 2018 morreram no país 508 pessoas, tendo sido o dia com mais mortes de que há registo um verão.

As curvas da mortalidade estão a ser acompanhados por diferentes grupos de investigação mas a análise é neste momento complexa, alertou ao i um investigador, recusando que para já seja possível tirar ilações e sublinhando que é particularmente difícil comparar períodos homólogos dos últimos anos com o que se vive este ano e nesse sentido perceber o que seria expectável para calcular o excesso de mortalidade.

Além do efeito do confinamento, associado a uma redução de acidentes, mesmo agora, o uso de máscaras mais generalizado e maior fiscalização nos lares pode ter um efeito protetor de algumas causas de mortalidade, um fator que também terá de ser tido em conta numa análise mais detalhada da mortalidade, exemplifica o mesmo investigador, isto ao mesmo tempo a que se assistiu a uma redução da assistência médica, o que pode levar a maior descompensação de doenças, fatores diferentes dos que estavam presentes noutros verões e ondas de calor.