24.7.20

Falta de psicofármacos não é nova, mas “angústia existencial” agrava o problema

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

O medo no presente junta-se à sensação de uma ameaça futura. Como em todas as situações de crise, as pessoas procuram o que lhes alivia o sofrimento. Dois psiquiatras falam da indisponibilidade do Victan anunciada esta semana e da falta que fazem outros medicamentos na área da saúde mental.

A característica de ser um ansiolítico exclusivo de uma só empresa e a própria natureza deste medicamento de acção rápida para a ansiedade explicarão, porventura, o aviso lançado no início da semana pelo Infarmed de que esgotou nas farmácias e vai continuar indisponível pelo menos até Outubro. Mas o Victan está longe de ser o único psicofármaco a ficar indisponível, garante Miguel Bragança, presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, que está em contacto frequente com colegas. Falhas deste tipo acontecem regularmente.

Miguel Bragança não associa necessariamente esta falta do ansiolítico a um maior consumo, mas a um contexto que condiciona as pessoas. “Devido ao ambiente psicológico montado em Portugal e no mundo, quando o médico prescreve três caixas, o doente vai logo comprar as três caixas. Não significa que esteja a consumir mais”, diz.

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“A questão inequívoca é que estes medicamentos estão a ser mais comprados.” Porquê? As pessoas têm medo que acabe. “O problema das pandemias é esse. E os ansiolíticos são para diminuir o medo. Podem estar a consumir um bocadinho mais”, admite Miguel Bragança, mas sem certezas, porque não há dados que o comprovem.

Antecipar uma ameaça

O seu colega psiquiatra e psicoterapeuta Vítor Cotovio identifica nas pessoas que acompanha “uma combinação entre medo e ansiedade que pode afectá-las de forma a precisarem de apoio e não só medicamentoso”. “Neste momento há muita sintomatologia”, expõe. Chama-lhe “angústia existencial pandémica” e resulta “de uma combinação do medo do presente e da angústia que as pessoas sentem quanto ao futuro.”

“Uma angústia que assume roupagens diferentes em cada pessoa, acrescenta Vítor Cotovio. “Há as pessoas que estão mais desconfiadas, as que têm pânico de sair à rua, outras com uma ansiedade generalizada enorme, de dois modos: o medo presente e a antecipação de uma ameaça futura. Como em qualquer crise, podem recorrer mais àquilo que lhes alivia o sofrimento.”
Desinteresse do Estado

Mas também há, agora e como sempre, “uma enorme instabilidade na disponibilidade de psicofármacos”, segundo Miguel Bragança. “Prescrevemos online e a qualquer momento o medicamento sai ou entra, e andamos neste vaivém”, acrescenta. "Existe uma grande imprevisibilidade, o que é mau para nós médicos e para os doentes.”

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“Aparecem e desaparecem. Acontece também com os medicamentos para a depressão, para a perturbação obsessiva compulsiva e para a doença bipolar”, indica, não sem deixar um reparo à “falta de atenção” dada a esta área da saúde. “Esta instabilidade é o corolário do desinvestimento e do desinteresse do Estado e do SNS para com tudo o que tem a ver com as doenças mentais.” Faltam medicamentos e não é apenas o Victan.

“É verdade que as pessoas fixam-se muito na caixa do medicamento. E o Victan tem uma característica que torna difícil a sua substituição na cabeça das pessoas – é o ter um efeito com início de acção rápida. Como acontece com todos os medicamentos de acção rápida, o seu efeito também dura menos tempo. Existem muitas alternativas”, mas de substâncias activas diversas.

Nos últimos dois meses, Vítor Cotovio tem ouvido dos pacientes que não estão a encontrar o Victan nas farmácias. “Quando o medicamento tem genéricos, a coisa resolve-se mais facilmente. Ou quando várias marcas o comercializam, como é o caso do Alprazolam (substância activa)” – que o Infarmed recomenda para a substituição do Victan. Este ansiolítico não tem genérico e não há outro laboratório a comercializá-lo para além da empresa Sanofi Produtos Farmacêuticos.
“Há as pessoas que estão mais desconfiadas, as que têm pânico de sair à rua, outras com uma ansiedade generalizada enorme. Como em qualquer crise, podem recorrer mais àquilo que lhes alivia o sofrimento.”Vítor Cotovio

Mas porque “a ansiedade não é toda igual, a substituição deve sempre ser feita com todo o cuidado”, avisa Cotovio. “As alternativas existem, mas estas têm que ser avaliadas com o médico-assistente. É preciso conhecer ­a pessoa e o perfil de ansiedade que a pessoa tem para prescrever de forma adequada.”

Química e simbolismo

O psiquiatra descreve os dois tipos de pessoas habituadas ao Victan: as que o tomam por sistema e podem desenvolver um tipo de privação física, como tremores ou suores, e as pessoas que o tomam apenas em SOS e podem ficar muito inseguras com a indisponibilidade do medicamento. “Vamos supor uma pessoa que tem ataques de pânico. Se tiver uma crise aguda pode recorrer ao Victan em SOS.”

Sobretudo nestes casos, o Victan ganha importância pelo valor simbólico que assume para quem o toma, explica Vítor Cotovio​. “Uma pessoa que está numa fila, tem um pico de ansiedade e toma o Victan. É o tipo de medicamento que as pessoas trazem consigo” na mala ou na carteira.

Não ter isso, pode causar-lhe ainda mais ansiedade. “Na circunstância da sua indisponibilidade, o médico assistente vai ter que dar uma explicação. Esta comunicação acerca do medicamento também tem que ser feita.”