23.7.20

Crianças: ou protegemos ou fingimos que protegemos?

Patricia Reis (opinião), in Sapo24

É hoje entregue na Assembleia da República a petição assinada por mais de 40 mil pessoas que reivindica o estatuto de vítima para as crianças em contexto de violência doméstica.

Entendo que quem nos representa no Parlamento faz-nos ouvir, tem a nossa voz e a nossa permissão para agir. Para decidir pelo melhor. É a razão pela qual é crucial, absolutamente obrigatório, votar, participar. É uma responsabilidade. E o que os deputados decidirem será Lei, será o que entendemos melhor para as crianças que são, directa ou indirectamente, vítimas de violência. Quando decidirão?

A petição pretende (sou signatária, portanto acho a pretensão mais do que válida) que não existam múltiplas interpretações no que toca à Lei que, em teoria, serve para proteger os menores.

O que existe neste momento não contempla as crianças que são testemunhas de violência doméstica, não considera quaisquer danos psicológicos ou emocionais. A Lei encara a criança espectadora de violência como encara um adulto. Talvez nem isso, porque num adulto espera-se a capacidade de denúncia, tem o poder de o fazer e não calar. Uma criança que vive a medo, a ver o pai a bater na mãe, a mãe a bater no pai, ambos aos berros, ambos num registo de violência, um deles a ser mais agressivo, outro mais passivo – os cenários podem-se desmultiplicar como quiserem – se não é uma vítima, é o quê? Um futuro adulto traumatizado? Alguém que irá replicar a violência? Também aqui, neste cenário de futurologia, as possibilidades são muitas e bem conhecidas por todos os profissionais de saúde mental que se confrontam com crianças que viveram em contexto de violência doméstica e precisam de ajuda para andar para frente, para ter um projecto de vida que seja isso mesmo: uma vida.

A Lei indica a obrigatoriedade do Estado de proteger as crianças e jovens. A Lei precisa de ser clara para que juízes por este país fora não possam dizer: “Ah, pois, mas...”

Não há adversativas nem atenuantes num cenário de violência, quem o considera possível nunca viveu a medo, nunca soube o que era pensar que talvez a mãe ou o pai ou o irmão possam deixar de respirar à sua frente. E, infelizmente, algumas histórias de decisões de juízes portugueses não abonam nada a favor dos mesmos (bem sei que é uma generalização e que pode ser injusta, mas a percepção pública sobre a justiça e a violência doméstica é que a guerra está a ser vencida pelos agressores e não pelas vítimas auxiliadas pela mão pesada da Lei).

Não queremos ver a violência, não queremos saber e, quando queremos saber são os aspectos asquerosos e repletos de maldade, como foi o caso da morte da menina de nove anos, Valentina, cujo pai ficou sentado a vê-la morrer e, a seguir, muitas pessoas limitaram-se a dizer: “É incrível, é terrível”. É tudo isso e é, acima de tudo, a realidade de muitas crianças, com contornos mais ou menos complexos. A violência existe. Não podemos esperar, todos nós, o Estado português, que as crianças morram, que as crianças fiquem traumatizadas e desenvolvam patologias diversas. Temos de prever situações, temos de saber que a realidade ultrapassa a ficcão e cumprir: proteger os menores, dar-lhes um estatuto que possa permitir outro enquadramento, outro futuro. Temos de saber deixar claro, muito claro, que os juízes não têm espaço para atenuantes, violência é violência, tem consequências graves, e não pode ser atenuada com adversativas construídas a partir de argumentos a que chamo “benza-os deus”, que é o mesmo que dizer, argumentos de merda.