20.7.20

Muhammad Yunus: "A pobreza não é criada pelas pessoas pobres"

Rui Alexandre, in TSF

"Se redesenharmos o sistema, a pobreza desaparece". Segunda parte da entrevista à TSF com o Nobel da Paz 2006, que participa na conferência portuguesa da Academia Ubuntu que assinala o Dia Mandela.

Muhammad Yunus, o senhor ficou conhecido como "o banqueiro dos pobres", foi o criador da ideia do microcrédito que ofereceu uma saída da miséria a milhões de famílias no Bangladesh e não só. Mas as disparidades no mundo vão aumentando, os ricos estão cada vez mais ricos...

Poderíamos dizer que não houve pessoas, bancos e instituições suficientes a seguir ideias como a sua do microcrédito em 2006?

Sim. Mencionou 2006, o ano em que ganhámos o Prémio Nobel. Foi um longo caminho, porque desde que começámos no Bangladesh, com o banco Grameen e o microcrédito já passaram 44 anos. E toda a gente adora o projeto. Toda a gente diz que é uma ótima ideia, ajuda especialmente as pessoas pobres, as mulheres pobres. Ninguém prestou atenção às mulheres pobres antes disso. Este projeto ajusta-se tanto às necessidades delas, que elas não precisam mudar nada, apenas descobrir o seu próprio valor, a sua capacidade e criatividade. É verdade no entanto, que depois de todos os elogios e de todos os prémios que recebemos, o sistema financeiro não mudou.

Por isso eu digo: qual é a piada de dar prémios e não mudar nada? O microcrédito, nos bancos, ainda é uma nota de rodapé. Não é o mainstream. Você vai a qualquer banco tentar saber o que é o microcrédito. Eles não têm uma área ou programa para isso. Então, esse é o problema. Talvez Portugal não precise disso. Talvez isso não importe. Mas executamos programas em toda a parte. O Reino Unido tem programa de microcrédito, Portugal possui programa de microcrédito. Os EUA têm programas de microcrédito em todo o país, não apenas em alguns pontos, um programa chamado Grameen América. A necessidade está em toda a parte, mas o sistema financeiro ainda está muito fora disso.

Se queremos ir para o novo destino de que tenho estado a falar, um mundo que não terá aquecimento global, concentração de riqueza ou desemprego, um mundo que eu tenho classificado como um mundo de três zeros: zero de emissão líquida de carbono, zero concentração de riqueza, zero dívida de desemprego, temos de mudar o sistema financeiro. É a chave para tudo. Temos que redesenhar o sistema financeiro. O sistema hoje está feito para as pessoas que estão no topo, as pessoas que têm 99% da riqueza.

Cabe à próxima geração conseguir viver num mundo em que a pobreza e o desemprego são erradicados? Quero dizer, é algo que pode ser conseguido pela próxima geração de jovens?

Eu diria que a pobreza não é criada pelas pessoas pobres. É criada pelo sistema. Se redesenharmos o sistema a pobreza desaparece. As pessoas são tão boas quanto em qualquer lugar, a pessoa pobre que você vê na rua, a pessoa sem-teto que você conhece... Eles são tão bons seres humanos como qualquer outra pessoa. Mas o sistema não funciona para eles, são rejeitados em todos os serviços das instituições antigas que temos ao nosso redor. Precisamos abordar essa questão, é fundamental: porque é que isto acontece? Se fizermos isso... podemos mudar tudo em menos de uma geração, mas temos que mudar a estrutura básica da teoria económica.

Pôde certamente ver as imagens de milhões de trabalhadores migrantes na Índia a tentar ir para casa porque não há nada de bom para eles na cidade agora. Já não podem pagar o aluguer dos pequenos buracos em que vivem nessas cidades. Estão a sair desses buracos para que possam sobreviver, voltando para as suas próprias terras. Vimo-los a chegar às autoestradas para fazer a pé o caminho para casa. Mas a casa fica a milhares de quilómetros de distância. Não apenas a alguns quilômetros da cidade.

Eu digo: que tipo de economia nós queremos? Esta em que as pessoas precisam andar milhares de quilómetros para encontrar meios de subsistência para a sobrevivência? Isso não é forma de conceber a economia. A economia deve ser projetada de maneira a que você tenha a sua sobrevivência no local em que nasceu. Não a milhares de quilómetros, deixando a sua família e os seus filhos em casa com negócios incertos e incertezas para si também, constantemente. Por que não podemos fazer as coisas de outro modo?

Todo este setor dos trabalhadores migrantes e na rua é conhecido como setor informal... mas este não é um setor informal, essa designação é muito negativa, como se eles não valessem nada. Ou como se alguém só tenha valor quando chega ao setor considerado formal. Isso não é verdade. Deveríamos renomear o nome de setor de microempreendedores, que podem fazer as coisas à sua maneira mas que não têm instituições para os apoiar.

São vítimas deste sistema?

São vítimas dos agiotas, todos os agiotas lucram muito com essas pessoas, eles trabalham e os agiotas ficam com o dinheiro. Quem trabalha fica com uma parte muito pequena do dinheiro. Porquê? Porque é que não pegam em serviços financeiros, como o Grameen Bank, etc., que funcionam muito bem, e trazem a ideia de negócios sociais para os seus negócios, para ajudar as pessoas em vez de ganhar dinheiro para si mesmas. Por que não podemos criar bancos de negócios sociais dessas pessoas? Isso significaria uma verdadeira mudança. Foi isso o que aconteceu quando o microcrédito chegou ao Bangladesh, temos pelo menos 15 milhões de pessoas associadas ao microcrédito, particamente só mulheres, 97 ou 98% são mulheres, em todas as aldeias. Seriam pessoas desempregadas a cuidar das famílias? Não, a designação está errada, são microempreendedoras à espera por uma oportunidade.

Então, damos-lhes a oportunidade, trazendo o dinheiro e elas tornam-se empreendedoras. Portanto, mulheres analfabetas da aldeia, que não têm absolutamente nenhuma infraestrutura, podem tornar-se empreendedoras para cuidar da família. Ela não está a a fazê-lo porque é a base da família, mas porque tem acesso ao sistema de financiamento, traz dinheiro para a família, gera rendimento e assim por diante. Então, por que não podemos expandir isso, criando um sistema bancário global inteiro como um sistema bancário de negócios sociais?

Ou seja, as desigualdades de género estão - continuam a estar - no centro da prevalência da pobreza...


As desigualdades de género estão no centro de tudo, bem como as desigualdades rurais. Todo o sistema está muito focado no meio urbano. Como se tudo existisse em função daquilo que preocupa o centro e em que as pessoas rurais não têm nada com isso. As pessoas rurais tornam-se efetivas apenas em termos de mão-de-obra.

Formas as pessoas localmente, mas depois elas têm de ir para a cidade e procurar lá trabalho. Então, são os homens da família que geralmente vão, as mulheres são deixadas para trás. Portanto, este é o começo da discriminação de que as mulheres não têm hipótese de participar na economia. Os homens tiveram essa possibilidade e, com isso, agora os filhos precisam voltar à cidade novamente para a educação. As meninas é que ficam em casa, os meninos vão para a cidade. Há aqui uma culpa institucional. Por que não podemos fazer da economia rural uma economia básica, em vez de um tipo de apêndice da economia urbana? Assim, a reformulação do conceito é muito importante. Para que as coisas aconteçam, para que não haja distinção entre homens e mulheres, meninos e meninas, o sistema financeiro é a chave de tudo isto. O sistema financeiro pode compensar todas os erros que se fizeram ignorando as mulheres.

Ou seja, agora podemo-nos concentrar nas mulheres e começar a partir daí e seguir em frente, para que as possamos compensar e as raparigas comecem a trabalhar onde quer que morem. Com a tecnologia disponível hoje, isso pode ser feito. Não precisamos de coçar a cabeça durante anos a pensar no que fazer. Com a tecnologia e a infraestrutura disponíveis hoje, que nunca existiram assim antes na nossa história global, a eletricidade está hoje disponível em todas as aldeias, todos os tipos de comunicação estão disponíveis. A discussão que estamos a ter agora, qualquer pessoa numa aldeia a pode estar a ouvir sem qualquer problema e tão bem quanto em qualquer outro lugar do mundo. Essa é a situação global que mudou, mas os nossos conceitos não mudaram. Portanto, precisamos redesenhar o conceito e, como resultado do projeto, temos que construir novas instituições. As instituições não podem continuar com o antigo modo de vida a dirigir a economia. Precisamos de novas instituições, de acordo com o novo conceito e o novo objetivo que estabelecemos para nós mesmos.

É possível continuar otimista em relação ao nosso futuro comum?

Bastante. Esse é o único caminho possível. Se desistirmos, é o nosso fim. Não podemos simplesmente ficar sentados e nada fazer. Nada é impossível para um ser humano. Deva pensar e lembrar sempre isso. Se o ser humano decide algo e trabalha para isso, vai acontecer. É sempre assim que acontece. É uma questão de tempo e é uma questão de intensidade do desejo. Quanto mais o quisermos, mais rapidamente isso acontece.