Há 250.000 pessoas afetadas, que fogem da violência armada. Responsável do Programa Alimentar Mundial diz que quem está em fuga junta-se a “famílias de acolhimento que têm muitos desafios para responder à situação alimentar”
Felisberto Amade tem 67 anos, é chefe de bairro em Pemba, capital provincial de Cabo Delgado e diz que não tem memória de uma crise humanitária como esta.
"Nunca tinha visto uma situação como esta", refere, à porta da Casa da Cultura, o local escolhido para mais uma distribuição de ajuda alimentar de emergência do Programa Alimentar Mundial (PAM) a deslocados pela violência armada em Cabo Delgado
Há 250.000 pessoas afetadas e Pemba é o porto seguro de muitos, em casas de familiares e amigos que de repente passaram a acolher mais de dez, às vezes 20 ou trinta pessoas.
"Só num dia recebi 49 famílias" no bairro, diz Felisberto, natural de Chiúre, Cabo Delgado, líder da Unidade C de Cariacó, no centro da capital de província.
Hoje, o PAM está a distribuir ajuda a dezenas de famílias de uma lista que ajudou a elaborar, mas "o que recebem para comer não chega para nada", lamenta, dizendo que há quem saia dali a chorar.
Cada agregado familiar recebe 50 quilos de cereais (este domingo foi distribuído milho), seis quilos de feijão ou lentilhas e cinco litros de óleo, quantidade estimada para 30 dias, por cada cinco pessoas - sendo que famílias mais numerosas recebem na devida proporção.
Só que Cristina Graziani, chefe de escritório do PAM em Cabo Delgado, diz que "os números de deslocados são grandes, as necessidades são muitas" e quem está em fuga junta-se a "famílias de acolhimento que têm muitos desafios para responder à situação alimentar".
Tudo agravado num cenário económico de contração por causa da covid-19.
A maré de deslocados é tal que o PAM "vai mudar seu apoio para incluir um número maior de famílias deslocadas. Estamos à espera de apoiar 200 mil pessoas no próximo mês e incluir famílias de acolhimento" no processo de ajuda.
Em junho foram assistidas 112.000 famílias em Cabo Delgado, valor que deverá subir até 176.000 até final deste mês e ascender a 200.000 em agosto.
O auxílio já se estende à província de Nampula, a sul, e à do Nissa, a poente, que também recebem deslocados.
"Em cooperação com o Governo, estamos a tentar reabrir a operação no norte", área de maior insegurança e onde existem ainda muitos deslocados.
Ao mesmo tempo, a partir de setembro, será introduzido em Pemba o sistema de apoio através de 'voucher', usado pelo PMA noutras regiões e que permitirá às famílias de acolhimento a troca por alimentos ou produtos de higiene no comércio local.
Na distribuição no espaço aberto da Casa da Cultura, em Pemba, em cooperação com o governo, algumas centenas de membros de famílias juntaram-se, identificaram-se um a um e receberam a senha que lhes deu acesso ao recinto de atribuição do 'kit' de ajuda alimentar.
Antes recebem informação sobre as formas de prevenção da covid-19 e as filas são marcadas de acordo com as normas de distanciamento social.
Belinha Raimundo, 30 anos, sai com um saco de milho na cabeça e pede ajuda para carregar o resto da ajuda.
"Tenho cinco filhos, uma é bebé e tenho muita dificuldade em ter alimentos. Aqui não é a minha casa, estou com os meus pais, perdi as minhas coisas", explica, depois de ter fugido dos ataques armados de abril em Mocímboa da Praia.
"Tudo o que construi virou cinza. Imagine, vir para a cidade com as mãos a abanar", descreve.
Bacar Fernando, 37 anos, deslocado de Macomia, leva o 'kit' de assistência alimentar para a casa de família onde foi acolhido e onde vivem agora 18 crianças.
Os produtos são bem-vindos para este deslocados que passou três dias escondido no mato, depois do ataque à vila no fim de maio, juntamente com vizinhos.
"Comíamos mandioca e raízes. Água era pouco a pouco", recorda.
Beatriz Maurício, 29 anos, tem quatro filhos e passa por uma nova provação, a fuga forçada para Pemba, depois de já ter visto a sua casa danificada com o ciclone Kenneth, em 2019.
"Sofremos muito mesmo com o Kenneth", diz, de olhos postos na saca de milho que recebeu.
"Se gostamos? Sim, a ajuda é importante", conclui.
Aos poucos, o átrio esvazia-se e em cerca de hora e meia a entrega fica concluída.
"Temos de pensar numa maneira de integrar este apoio a médio e longo prazo, mas, para já, a assistência alimentar de emergência é a prioridade", conclui, já a pensar na próxima distribuição, numa cidade cujos bairros estão repleto de deslocados.
Os ataques de grupos armados que desde 2017 aterrorizam Cabo Delgado já fizeram pelo menos mil mortos, entre civis, militares moçambicanos e vários rebeldes.
As Nações Unidas estimam que haja 250.000 pessoas em fuga dos distritos mais afetados, mais de 10% da população da província, que tem cerca de 2,3 milhões de habitantes.