Patrícia Carvalho, in Público online
Estudo sobre cuidadores informais diz que 78,5% consideram que o seu estado de saúde mental “influencia o desempenho do seu papel de cuidador”. “É quase um grito: precisamos de ajuda”, diz autora.
Um estudo sobre a saúde mental e o bem-estar dos cuidadores informais revela que 83,3% dos inquiridos já se sentiram em “burnout/exaustão emocional” e que 78,5% consideram que o seu estado de saúde mental “influencia o desempenho do seu papel de cuidador”. A psicóloga Ana Carina Valente, do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, que coordenou o trabalho, diz que estes dados nos obrigam “a uma reflexão profunda”, e avisa: “É quase um grito: nós precisamos de ajuda.”
Quase não há indicadores positivos nas respostas obtidas por Ana Carina Valente, a partir de um inquérito online a mais de mil cuidadores informais, realizado entre o início de Novembro e Janeiro deste ano. O que não surpreende a psicóloga do ISPA, reconhece, ao telefone: “Sabemos que níveis elevados e prolongados de stress vão contribuir para níveis muito elevados de sofrimento psicológico. Este estudo confirma isso.”
Porque, como também é visível no perfil do cuidador traçado neste estudo, estamos a falar de pessoas que convivem há muito tempo com a tarefa de cuidar do outro: 62% dos inquiridos são cuidadores informais há mais de quatro anos e, destes, mais de 30% já o eram há mais de dez. Fala-se, sobretudo, de mulheres (84,7%), e quase 80% têm mais de 45 anos, havendo uma percentagem considerável (20%) de cuidadores com 65 ou mais anos.
“Quando temos quase 80% dos cuidadores a dizerem que a sua saúde mental influencia o seu desempenho enquanto cuidadores, o que nos estão a dizer é, atenção, o que sinto é que a minha saúde mental interfere com o meu papel. Todos nós enquanto sociedade temos de reflectir nisto. Estas pessoas estão com muito sofrimento, exaustas, angustiadas e tristes. É preciso parar para pensar no que vamos fazer para as ajudar”, diz a psicóloga.
A presidente da Associação Nacional dos Cuidadores Informais (ANCI), Liliana Gonçalves, também não se mostra surpreendida com as conclusões do estudo encomendado pela Merck e que será apresentado nesta terça-feira no auditório do PÚBLICO, em Lisboa. “Não nos surpreende, de todo. Até porque temos uma grande franja de cuidadores de longa data, sem qualquer tipo de apoio, a prestar cuidados 24 sobre 24 horas, com grande carga financeira. Tudo isto é revelador de que a saúde mental vai ficar em risco. Os dados da saúde mental, em geral, não são famosos e, em termos dos cuidadores informais, sentimos que não houve um avanço no apoio psicológico”, diz.
Pânico, nervos e descrença na sociedade
Olhando para diversos aspectos da situação psicológica dos cuidadores, o estudo revela, por exemplo, que mais de 74% dos inquiridos se sentem quase sempre ou muitas vezes tensos ou nervosos e que 84,3% dizem ter a cabeça cheia de preocupações muitas vezes ou até mesmo na maior parte do tempo. Há mais de 37% de respostas a indicarem que estas pessoas não cuidam como deviam do seu aspecto físico, enquanto 21,4% dizem que “quase nunca” pensam com prazer no que têm para fazer.
Há ainda uma percentagem muito elevada de pessoas a indicar que, de repente, enfrentam uma sensação de pânico (quase 33%), e são ainda mais os que desconfiam da capacidade da sociedade em contribuir para uma melhoria da situação actual: 45,6% dos inquiridos responderam “nunca” quando questionados sobre se acham que a sociedade é “um lugar bom, ou se está a tornar-se um lugar melhor para todas as pessoas”, enquanto 41,5% deram a mesma resposta – “nunca” – à pergunta sobre se pensa que a forma como a sociedade funciona faz sentido.
O único ponto positivo em todo o inquérito é quando os cuidadores são questionados sobre aspectos relacionados com a sua personalidade: 44,7% dizem que todos os dias, ou quase, gostam da maior parte das características da sua personalidade, 52,6% acreditam ter gerido bem as responsabilidades diárias sempre ou quase sempre e 46,5% apontam a mesma frequência quando lhe perguntam se no último mês tiveram experiências que os desafiaram a crescer e a tornarem-se pessoas melhores.
Algo que também não surpreende a responsável pelo estudo. “São dados que mostram que as pessoas acreditam em si próprias, que têm a sensação de que estão a fazer bem, a cuidar bem. Como se dissessem, ‘a pessoa de quem trato está bem tratada’. É quase uma missão”, diz Ana Carina Valente.
Mas isto não invalida, claro, que as pessoas reconheçam também que os problemas que enfrentam do ponto de vista mental são um desafio maior do que aquele que conseguem enfrentar sozinhas. E é nesse sentido que vai o último conjunto de dados resultantes do estudo. Segundo o documento, 77,9% reconhecem ter necessitado de apoio psicológico durante algum momento da sua actividade, mas apenas 42,1% procuraram esse apoio e 16,8% usufruem dele, efectivamente. Isto apesar de 69,7% dizerem que gostariam de poder contar com essa ajuda. “É muito baixa a percentagem de pessoas que têm apoio psicológico, quando olhamos para aquela dos que dizem que precisavam de o ter. Sabemos que Portugal não é um país com muitas respostas no âmbito da saúde mental. Claramente, não temos respostas suficientes”, diz a docente do ISPA.
Linha telefónica de apoio
Um bom ponto de partida – e que é também identificado pelos inquiridos –, defende, seria a criação de uma linha de apoio psicológico directamente dirigida a este grupo. Quando questionados sobre se gostariam de receber ajuda psicológica através de uma linha de apoio, com profissionais especializados, 83,9% dos inquiridos disseram que sim. E mais de metade (50,9%) escolheu o telefone como meio preferencial para aceder a essa linha. “Tentamos perceber que tipo de apoio seria mais confortável para estas pessoas e quase metade diz que uma linha telefónica já era muito bom: não é paga, está ao alcance de todos e também temos de pensar que falamos de pessoas que têm dificuldade em sair de casa, porque estão a cuidar de alguém. Havendo algum investimento nisto, era fácil de implementar e podia dar uma primeira resposta”, diz a psicóloga.
Liliana Gonçalves explica que a ANCI já tem uma psicóloga que dá apoio online, mas reconhece que era preciso muito mais do que isso. “O apoio psicológico é uma medida que está prevista no Estatuto do Cuidador e que não está a conseguir chegar às pessoas. Ainda se está muito na parte de implementação dos subsídios”, diz. Esse apoio, quando existe, afirma, está sobretudo a cargo de associações de doentes e de alguns municípios, com projectos nesse sentido. “Mas a resposta é muito escassa”, insiste.
A responsável pela ANCI diz que os últimos dados apontam para 23 mil pedidos feitos para obter o estatuto de cuidador informal, e cerca de 11 mil concedidos. Só esse reconhecimento permite o acesso às medidas de apoio, previstas no estatuto, como o direito ao descanso do cuidador. Tudo, diz Liliana Gonçalves, está a andar de forma lenta e o que existe não chega para um grupo de cidadãos que, lembra, “está exausto e com uma enorme sobrecarga financeira e emocional”.