23.2.23

“A maior parte dos abusos sexuais não ocorre na Igreja, mas na família”

Natália Faria, in Público

Um estudo alargado à população permitirá perceber “quem são os abusadores na família, nos clubes de futebol, quem são as vítimas”, diz Ana Nunes de Almeida, co-autora do estudo sobre abusos na Igreja.

Tendo o país um retrato muito mais claro dos abusos sexuais de crianças cometidos por membros da Igreja Católica, é fundamental agora que o Governo promova um estudo similar alargado à sociedade no seu todo, segundo a socióloga Ana Nunes de Almeida.

“Um estudo feito a partir de uma amostra representativa da população daria uma ideia muito mais precisa do que se passa nos vários espaços de socialização da criança: quem são os abusadores na família, além de quem são os abusadores na Igreja, quem são os abusadores nos clubes de futebol, quem são os miúdos vítimas destes crimes. E tudo isto é de uma enorme importância no reforço da prevenção”, fundamentou ao PÚBLICO a co-autora do relatório feito pela comissão independente sobre estes crimes dentro da Igreja Católica, desde 1950 até à actualidade.

A estimativa segundo a qual pelo menos 4815 crianças foram vítimas de abuso por membros da Igreja Católica em Portugal está muito aquém da real dimensão destes crimes ao longo deste arco temporal, não só dentro da Igreja, mas também fora dela. “Sabemos que a maior parte dos abusos não ocorre nem na Igreja nem nas instituições religiosas, mas na família e noutros lugares de socialização das crianças como os clubes desportivos, as escolas talvez, as equipas…”, acrescentou a investigadora.

No relatório, os autores sugerem que os abusos sexuais de crianças praticados na Igreja Católica são apenas “uma parte de um todo de expressão bastante mais significativa”. E, especificando que um estudo alargado à comunidade implicaria a criação de uma estrutura semelhante à da comissão independente, mas “com novos membros, bem mais alargada e com outros meios de intervenção”, precisam que a iniciativa possa vir a caber ao Ministério da Justiça, “pela sua natural comunicação com as entidades públicas sobre quem venha a recair a responsabilidade do prosseguimento da investigação, já em sede criminal, dos dados que assim venham a ser recolhidos”.

Por entender que “há um conjunto de lições” a retirar do relatório, o primeiro-ministro, António Costa, disse na terça-feira que quer encontrar-se com os membros da comissão independente, tendo convocado para o encontro as ministras da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, que já adiantou que o Governo se prepara para rever o prazo de prescrição destes crimes, aproximando-se das reivindicações da comissão independente que quer ver consagrada a possibilidade de as vítimas denunciarem os crimes até aos 30 anos de idade – actualmente o limite são os 23 anos.

Lembro-me de um testemunho de alguém que passou por um seminário e que dizia que aquilo 'era uma fábrica de pedófilos’. A descrição que ele fazia era que os abusos sexuais eram generalizados, faziam parte do ritual de iniciação. Imagine-se isto multiplicado por décadas

Ana Nunes de Almeida

Do mesmo modo, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, já se comprometeu a melhorar os cuidados de saúde mental, nomeadamente a todas as vítimas de abuso sexual, depois de outro dos membros da comissão, o psiquiatra Daniel Sampaio, ter defendido a criação de uma “via verde” no SNS para atender as vítimas de abuso sexual na Igreja.

A amostra da Igreja é “enviesada para o topo”

Para Ana Nunes de Almeida, o estudo alargado à população poderá custar entre meio milhão a um milhão de euros. “Custa menos do que um palco”, ironizou, considerando tratar-se de uma despesa justificada pela importância de, a partir de uma amostra estatisticamente representativa da população, fazer extrapolações universais.

No caso do estudo feito por iniciativa da Igreja, as limitações orçamentais e o prazo muito curto, a par da opção metodológica de “pôr a vítima no centro”, permitiu construir apenas uma amostra qualitativa e “enviesada para o topo”, segundo Ana Nunes de Almeida, que lembra que o preenchimento de um inquérito online pressupõe “uma sobre-representação de vítimas de meios mais favorecidos e mais escolarizados, com competências digitais e habituadas ao uso da Internet”.

Mas sendo verdade que, a partir da amostra obtida, não foi possível fazer extrapolações universais, a sensação que perdura entre os membros da comissão é que ficou demasiado por dizer. “Cada testemunho que recebíamos aparecia-nos como a ponta de um icebergue, com uma rede enorme de abusos por detrás”, diz Ana Nunes. “Só considerámos o número de vítimas apontadas pelas pessoas que responderam ao inquérito. Mas lembro-me, por exemplo, de um testemunho de alguém que passou por um seminário e que dizia ‘aquilo era uma fábrica de pedófilos’. A descrição que ele fazia era que os abusos sexuais eram generalizados, faziam parte do ritual de iniciação. Imagine-se isto multiplicado por décadas”, descreve, para acrescentar que, depois da divulgação do relatório, a comissão começou a receber vários emails de vítimas a prontificarem-se para testemunhar.

Entre as 4815 vítimas sinalizadas, a proporção de raparigas vítimas de crimes é substancialmente superior à registada nos outros países. Não se pode daí depreender que tenha havido em Portugal mais raparigas vítimas de abuso do que nos outros países. “O que me parece é que nós temos uma população feminina que tradicionalmente toma a palavra, que não se encolhe, e que, por outro lado, domina bem os meios digitais. Não nos esqueçamos de que temos uma taxa de actividade feminina que é das mais elevadas da Europa – a percentagem de domésticas é residual –, o que se explica pelos fenómenos da emigração masculina dos anos 1960, bem como pela saída dos homens para a Guerra Colonial”, justificou.

Por outro lado, a maior percentagem de padres na lista de alegados abusadores (77%) decorre da importância acrescida dos seminários portugueses como porta de fuga da miséria. “Nos anos sessenta e setenta, antes do 25 de Abril e da massificação escolar, os seminários eram para muitas famílias desfavorecidas os grandes espaços de formação dos rapazes”, recua Ana Nunes, lembrando que “esse peso dos seminários é muito maior do que no caso francês”, onde os padres representam apenas 53% dos abusadores ligados à Igreja Católica.

Depois das críticas generalizadas à falta de comprometimento demonstrada por vários bispos no decurso dos trabalhos da comissão, várias dioceses emitiram comunicados penitenciando-se pelos “actos hediondos”, como qualificou o bispo do Porto, D. Manuel Linda, descritos no documento e comprometendo-se a actuar no sentido da prevenção e protecção das vítimas e de sancionamento do abusador.

Da diocese de Beja, mas também da de Setúbal, surgiram, entretanto, esclarecimentos pela não comparência ao pedido de entrevista que lhes fora dirigido pelos membros da comissão e que se deveu a motivos de saúde, no caso de Beja, e a um mal-entendido, no caso de Setúbal.

Se foi vítima de abuso sexual e precisa de ajuda, pode ligar:

EIR - Centro de Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência Sexual

eir.centro@gmail.com

914 736 078

Quebrar o Silêncio - Apoio para homens e rapazes vítimas de violência sexual

apoio@quebrarosilencio.pt

910 846 589

Centro de Crise Violência Sexualizada

sede@amcv.org.pt

21 380 2160

Serviço de Escuta dos Jesuítas

escutar@jesuitas.pt

217 543 085

Linha Gratuita de Apoio à Vítima da APAV

116 006