23.2.23

Dois anos depois, Marcelino chegou ao fim do labirinto por um tecto digno

Camilo Soldado, in Público

Marcelino Ribeiro é cego e tem uma enteada também cega a seu cuidado. Viveu num parque de campismo e esteve à espera de habitação social mais de um ano.

Marcelino Ribeiro navega com a ponta da bengala o caminho que se abre entre o arquipélago de caixas verdes, agora dispostas pelo chão da sala da nova casa. Enquanto a mobília não preenche o apartamento para onde se mudou com a enteada que está ao seu cuidado, são as caixas que organizam os pertences de uma vida.

Quando o PÚBLICO se encontrou pela primeira vez com Marcelino, em meados de Janeiro, o homem de 67 anos vivia ainda no parque de campismo do Furadouro, em Ovar, numa caravana que lhe serviu de casa nos últimos dois anos. Com ele, a dormir na outra ponta do pequeno atrelado, estava a enteada, Soraia Pereira, de 28 anos, também cega e com problemas de mobilidade.

Tinha ido ali parar por falta de alternativas. Aguardava a resposta de candidatura a habitação social da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, que tardava em chegar. A sequência de eventos que levou um homem que, durante grande parte da vida, trabalhou no sector da construção civil, a viver numa caravana fez-se de uma combinação de problemas de saúde com azar. Aos 50 anos, começou a perder a visão e a vida deu uma volta.

Mais tarde, sofreu violência doméstica da companheira com quem partilhava casa, procurou ajuda, mas as soluções que lhe apontavam nunca incluíam Soraia. A curta reforma, de apenas 350 euros, limitava as perspectivas de arrendamento numa Área Metropolitana do Porto onde os preços ainda não pararam de subir. Mas sair dali era urgente. “Estava num total desespero”, conta.

Em Janeiro de 2021, surgiu a possibilidade de comprar a caravana que lhe viria a servir de casa. A mensalidade do parque de campismo, 175 euros, era-lhe bem mais suportável. Acrescentou-lhe um avançado e uma estrutura para maior protecção. “No início era tudo bonito. Adorava viver aqui”, diz, sobre o espaço de onde se ouve o mar. Mas o primeiro temporal fê-lo mudar de ideias.

Uma rajada de vento inclinou a armação, a luz ia abaixo com regularidade, a casa de banho mais próxima ficava a 100 metros do lote de Marcelino. Os balneários ficavam ainda mais distantes e Soraia, com os problemas de mobilidade que tem, tinha dificuldades em fazer um caminho que se tornava ainda mais difícil de percorrer quando chovia mais. “Não é fácil viver aqui”, dizia.

Um ano e dois meses

Então vice-presidente da associação Saber Compreender, Filipe Gaspar organizou uma biblioteca humana no Bonfim, em 2018, e foi aí que conheceu Marcelino, que se disponibilizou para contar sua história até então, falar sobre os estereótipos que se colam às pessoas cegas.

Foram mantendo contacto, Filipe foi sabendo das barreiras que Marcelino ia encontrando e tentando fazer pontes. “Mas os nossos encontros vinham da vontade dele em participar em tudo o que fosse iniciativas sociais e culturais. Acho admirável que ele, estando num lugar tão frágil e vulnerável, o faça”, diz.

Sentindo-se “no limite” das suas condições no campismo, Marcelino entregou a candidatura a habitação social na Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia (CMVNG), no dia 9 de Novembro de 2021. Pedia que fosse perto do hospital ou do centro de saúde, sítios onde ele e Soraia são “clientes habituais”, refere.

Enquanto isso, trabalhava na Junta de Freguesia de Mafamude e Vilar do Paraíso, em Gaia, ao abrigo de um programa de inserção laboral. Saía às 5h, caminhava até ao centro do Furadouro, onde apanhava o autocarro até Ovar. Daí, ia no comboio até à estação ferroviária de General Torres, em Gaia, e depois de metro, até Santo Ovídio. Foi numa dessas viagens, em Janeiro de 2022, que a bengala se prendeu numa trotineta que estava pelo caminho, junto à estação de General Torres. “Caí, bati com o queixo no chão, parti os dentes”. Ninguém se responsabilizou, lamenta.

Ao fim de um ano e dois meses de espera, assinou contrato no dia 26 de Janeiro, para habitação no bairro D. Armindo Lopes Coelho, no Olival. Não fica perto do hospital, nem a oferta de transportes públicos é satisfatória, aponta. Ainda assim, demorou menos que os cinco anos que a CMVNG calcula ser o tempo médio de espera para acesso a habitação social no concelho. Neste momento, estão 3211 famílias alojadas neste tipo de resposta, havendo uma lista de espera de mais 1091 candidatos.

Marcelino garante que a Gaiurb, a empresa municipal que gere o parque habitacional de Gaia, lhe chegou a prometer habitação mais cedo, um dado que a autarquia confirma ao PÚBLICO. “Estava previsto a casa ficar pronta até fim de 2022. Mas as obras atrasaram ligeiramente e só em Janeiro foi possível entregar a habitação”, responde a câmara.

Breve alívio

São 15h30 e uma carrinha branca percorre o caminho de terra batida, parque de campismo adentro, até ao lote de Marcelino. É um sábado de céu límpido, mas há um vento fresco que percorre as copas dos pinheiros bravos que se erguem acima de caravanas e tendas e faz soar um rumor.

Enquanto o irmão e o funcionário de mudanças vão acartando caixotes e a parca mobília para o veículo, Marcelino vai arrumando sacos, murmurando para não se esquecer do mais importante - as cruzetas, o comando de televisão que achava perdido, “as botas da pequenita”, o saco da roupa - enquanto decide entre o que fica e o que vai.

O processo de mudanças ainda não tinha terminado e, por isso, ainda não está tranquilo. “Ainda não acordei. Ainda não consegui parar. Mas, só o facto de adormecer e não sentir este vento daqui e a miúda aflita, é lógico que me sinto mais aliviado”, confessava. Uma casa é um espaço que se preenche aos poucos e a mobília vai ali entrando consoante as possibilidades. A prioridade de Marcelino foi uma cama para o quarto de Soraia, enquanto faz de um colchão insuflável a sua.

Durante as três primeiras semanas não teve o gás instalado, o que o obrigou a aquecer água para garantir banhos quentes a Soraia e a cozinhar em discos eléctricos improvisados. Parte deste período inicial foi também passado a tratar de papelada – primeiro para habitação, para telecomunicações, para energia – sem que tenha tido possibilidade de aceder ao conteúdo dos contratos antes de os assinar, garante, apesar de lhos terem lido em voz alta.

A autarquia conta uma versão diferente: refere que Marcelino “foi previamente questionado acerca da viabilidade de outorga de um contrato que lhe iria ser apresentado em formato de escrita corrente”, sem que tenha apresentado objecção, uma vez que teria “uma aplicação no seu telemóvel que lhe permitia sem dificuldade aceder ao conteúdo do texto escrito”. Não é verdade, rebate Marcelino, uma vez que a aplicação apenas consegue identificar pequenos trechos e nunca um documento completo.

O PÚBLICO enviou à Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) um pedido de esclarecimento sobre que obrigações legais têm as empresas, na hora de celebrarem contratos com pessoas cegas, mas não obteve resposta.