20.2.23

Psicólogos nos cuidados de saúde primários deveriam “ser o dobro”

Patrícia Carvalho, in Público online

Estudo da Entidade Reguladora da Saúde sobre a saúde mental nos cuidados de saúde primários alerta para a necessidade de maior articulação com os serviços hospitalares.

O número de psicólogos nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) está “muito aquém” do que foi definido como o rácio ideal para o país, numa resolução de 2021 da Assembleia da República, alerta a Entidade Reguladora da Saúde (ERS), no recente estudo Acesso a serviços de saúde mental nos Cuidados de Saúde Primários. Aquela resolução definia que deveria existir um psicólogo por cada cinco mil habitantes, ou seja, 20 por cada 100 mil, mas os dados compilados pela ERS, referentes a 2020, colocam a média nacional em 3,16 por cada 100 mil habitantes. O Alentejo, com 5,55 psicólogos por cada 100 mil habitantes é a região que apresenta o valor mais alto.

Apesar de o rácio ser muito baixo para o que foi estipulado pela AR, a verdade é que a evolução global, entre 2019 e 2020, representa um aumento de 184,7%, em Portugal continental. Só no Alentejo, com o valor mais elevado, o crescimento foi de 21,4%, e mesmo na área de Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro, em que o rácio não ia além de 1,31 psicólogos nos CSP por cada 100 mil habitantes em 2020, este valor representa também um aumento de 21,3% quando comparado com o ano anterior.

A ERS frisa que estes dados indicam que “os CSP encontram-se aquém das metas estabelecidas, pelo que se revela importante o maior investimento neste tipo de cuidados.” Um problema para o qual a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) também já tinha alertado, em 2021, ao indicar que dos 529 psicólogos nos CSP, apenas 250 estavam alocados aos centros de saúde, o que, na prática, dava “menos de um profissional por concelho” - muito longe do rácio definido. “É fácil perceber a dimensão da lacuna nesta matéria”, indicava, na altura, o bastonário da OPP, Francisco Miranda Rodrigues.

Contudo, o director do Programa Nacional de Saúde Mental, Miguel Xavier, desvaloriza o rácio fixado pela AR, frisando que ele é “uma recomendação” e que “não tem natureza científica”. Ainda assim, defende que o número de psicólogos nos CSP é, de facto, muito inferior ao necessário. “O número é muito baixo e no mínimo devia duplicar. É nesta base que eu fico. Agora, não se pode duplicar de um momento para o outro”, diz.
Não basta mais profissionais

O especialista em saúde mental realça que o aumento do número de profissionais por si só não resolve o problema do acesso dos portugueses a estes cuidados, pelo que defende a criação de mais programas estruturais, nos CSP, e em articulação com os hospitais. “Não basta termos muitos profissionais se não estiver em funcionamento um modelo efectivo de manejo da ansiedade e depressão nos cuidados de saúde primários, e em articulação com os cuidados hospitalares. Algo que, aliás, já acontece em imensos centros de saúde, e há muito tempo. Só temos de implementar os modelos que já funcionam em Portugal há muito tempo onde ainda não existem”, refere.

E este modelo que defende é uma das razões pelas quais desvaloriza um outro alerta deixado na análise da ERS. O documento refere que apenas a ARS do Centro tem psiquiatras nos CSP, o que o regulador considera revelar “escassez ou inexistência de recursos humanos na área da psiquiatria nas unidades de CSP” e um factor “que poderá impactar no acesso aos cuidados de saúde mental”.

Miguel Xavier entende que não é assim. “Este ponto do relatório não faz sentido do ponto de vista de estratégia política. Não é necessário haver psiquiatras nos centros de saúde, é preciso é haver psiquiatras [nos hospitais] articulados com os cuidados de saúde primários. Já com os psicólogos é diferente, aí têm de existir e a tempo inteiro”, defende.

O estudo da ERS revela que em 2020 existiam cinco psiquiatras e 24 psicólogos na ARS Centro. Na ARS Norte, o número de psicólogos era 184 (o mais elevado de todos), existindo 74 em Lisboa e Vale do Tejo, 28 no Alentejo e 23 no Algarve.

Apesar destes valores absolutos, o rácio entre psicólogos e o número de habitantes era mais favorável no Alentejo, que aparece, em simultâneo, como a região com “um maior acesso a consulta de psicologia ou de saúde mental nos CSP do Serviço Nacional de Saúde, por número de utentes inscritos, nos três anos em análise [2018-2020]”, um dado que é acompanhado "por uma maior incidência de problemas de saúde mental”.

Abrangendo o ano de 2020, quando a pandemia da covid-19 se espalhou pelo mundo, o estudo da ERS refere também o impacto que esta teve no número de utentes referenciados para os cuidados hospitalares, na área da saúde mental, realçando que entre 2019 e 2020 essa referenciação em Portugal continental “diminuiu em mais de 30%”, enquanto os diagnósticos por ansiedade ou depressão aumentaram. Ao mesmo tempo, o número de consultas relacionadas com a saúde mental, nos CSP, caiu, de forma global, em mais de 14%.

Também aqui, Miguel Xavier desvaloriza a quebra referida, afirmando que, “de facto, houve uma diminuição de consultas de psicologia nos centros de saúde, mas na especialidade de psiquiatria o que se passou foi o contrário, houve um aumento”, diz.

A ERS recomenda “um reforço de articulação entre os CSP e os cuidados hospitalares na área da saúde mental” e, neste ponto, Miguel Xavier está de acordo. Mas repete que essa articulação já existe em vários locais, partindo de programas com quatro pontos - dois dos quais são pré-farmacológicos e estão ao nível dos CSP -, pelo que têm é de ser replicados.