14.2.23

Abono incapaz de salvar da pobreza extrema crianças com mais de três anos


Salomé Pinto, in Dinheiro Vivo

Famílias com um filho são as mais prejudicadas. A "Garantia para a Infância", que atribui 1200 euros anuais por dependente, é insuficiente para elevar rendimentos acima do limiar da pobreza: 6 653 euros.

O apoio "Garantia para a Infância", que assegura o pagamento anual de 1200 euros, em complemento com o abono de família, a mais de 156 mil crianças e jovens até 18 anos em situação de grave carência económica, não chega para retirar da pobreza extrema dependentes com mais de três anos, sobretudo em famílias com um filho, segundo uma análise do PlanAPP - Centro de Competências de Planeamento, de Políticas e de Prospetiva da Administração Pública, publicada esta quarta-feira.

O gabinete de estudos da Administração Pública avaliou os impactos do reforço do abono de família na melhoria das condições económicas dos agregados mais pobres, tendo em consideração um rendimento bruto declarado no IRS, em 2020, de 4 704 euros, montante que fica abaixo da linha do limiar da pobreza, de 6 653 euros anuais, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), e que, por isso, se enquadra no limite do escalão de rendimentos, de 4 708,21 euros, para que uma família com um filho seja elegível para a medida "Garantia para a Infância".

"A 'Garantia para a Infância' uniformizou o valor da prestação para crianças em agregados familiares com risco elevado de pobreza, garantindo que não ocorre redução nos valores atribuídos quando a criança ultrapassa os três anos. Contudo, este incremento, ainda que melhore o rendimento da família, não é capaz de a retirar da situação abaixo do limiar da pobreza", lê-se no estudo do PlanAPP.

Em concreto, mantendo o rendimento do agregado familiar constante nos 4 704 euros anuais, e sem considerar outras formas de benefícios financeiros e materiais, a existência do abono de família seria capaz, nos três primeiros anos de vida da criança, de elevar o rendimento do agregado familiar em 1 798,2 euros até 6 502,2 euros, muito próximo da linha do limiar da pobreza: 6 653 euros.

Contudo, a partir dos três anos de idade, o cenário não é tão animador. Uma família biparental com um filho, que tenha o mesmo rendimento anual de 4 704 euros, terá direito a mais 1200 euros, por via da "Garantia para a Infância" e do abono, o que fará crescer o vencimento global para 5 904 euros, muito abaixo do tal limiar da pobreza.

No caso de um agregado familiar monoparental, com um filho até três anos, o rendimento da família beneficia de um aumento significativo, de 2 697,3 euros, por via do abono de família, o que faz o vencimento total anual ultrapassar o limiar da pobreza, ao atingir os 7 401,3 euros.

Contudo, e à semelhança do cenário anterior, "assim que a criança ultrapassa a faixa dos três anos, verifica-se uma redução de rendimentos, posicionando o rendimento do agregado familiar abaixo do limiar da pobreza, mesmo após os efeitos do acréscimo na prestação decorrente da nova medida "Garantia para a Infância", segundo o relatório do PlanAPP. Ou seja, depois dos três anos ou 36 meses, a família passa a ter direito a apenas mais 1200 euros, perfazendo um rendimento global anual de 5 904 euros, bem abaixo do limiar da pobreza.

Cabe ainda destacar que a medida de aumento da majoração do abono de família de 35% para 50% para agregados monoparentais no primeiro escalão apresenta maior impacto para famílias com crianças até três anos. No período após os 36 meses, o valor do acréscimo apenas substitui parcialmente o complemento que seria atribuído pela medida "Garantia para a Infância". Por isso, os efeitos da majoração do abono de família para agregados monoparentais com filhos após os 36 meses são mais percetíveis em famílias não tão pobres, isto é, que recebem mais de 4 708,21 euros anuais, e que, por isso, não estão abrangidas pela medida "Garantia para a Infância", segundo o mesmo relatório.

O terceiro e último cenário estudado pelo PlanAPP mostra o impacto do abono de família e da "Garantia para a Infância" num agregado com dois filhos. Se ambos os dependentes tiverem até três anos, o rendimento anual da família sobe 4 495,44 euros para 9 199,44 euros, bem acima do limiar da pobreza.

Contudo, assim que um dos filhos ultrapasse os 36 meses, o valor do benefício para cada filho será recalculado: se, por exemplo, um dos filhos tiver até 36 meses e o outro mais do que três anos, a família receberá 1798,20 euros pelo primeiro filho e 1200 euros pelo segundo filho. "Neste caso, o rendimento total será de 7 702,20 euros, ficando ainda acima do limiar da pobreza. Quando ambos tiverem mais do que três anos, a prestação associada a cada descendente passará a ser de 1 200 euros e o novo rendimento total do agregado será reduzido para 7 104 euros, ainda assim, acima do limiar da pobreza", conclui o estudo.

Com base na análise de cenários, os peritos do PlanApp verificaram que "a medida 'Garantia para a Infância', que abrange cerca de 150 mil crianças e jovens, criou uma padronização de rendimentos para os titulares de agregados familiares em condição de pobreza extrema, garantindo, a partir de 2023, um rendimento anual de 1 200 euros por criança, após os 36 meses de idade".

No entanto, ao comparar-se o primeiro decil de rendimentos brutos do agregado (4 704 euros) com o limiar da pobreza (6 653 euros), percebe-se que, "se à partida, os valores do abono de família até aos 36 meses da criança possuem o potencial para mitigar parte dos efeitos da pobreza, este potencial reduz-se significativamente quando a criança ultrapassa os três anos", assinala o estudo, acrescentando que, "no caso das famílias mais numerosas, com dois ou mais filhos, o efeito das prestações do abono de família complementadas pela 'Garantia para a Infância' permitem que o agregado familiar ultrapasse a linha de rendimento do limiar da pobreza".

O gabinete de estudos estatísticos alerta que o primeiro decil de rendimentos analisado (4 704 euros) teve em conta os dados disponíveis em 2020, pelo que "a análise não consegue capturar os efeitos mais atuais de fatores que afetam o poder de compra das famílias". "Em cenários de inflação, o poder de compra dos agregados familiares no primeiro decil de rendimentos tende a ser o mais afetado, ampliando o risco material", sublinha.

Em conclusão, e atendendo à subida continuada dos preços, o PlanAPP afirma que "o grau de eficácia do abono de família, enquanto instrumento efetivo de combate à pobreza, dependerá da adoção de medidas complementares que concorram para esse fim".