10.2.23

O que muda na lei laboral a partir de Abril?

Raquel Martins, in Público

Novas regras para o trabalho em plataformas, despesas fixas por teletrabalho e proibição de trabalhadores renunciarem a direitos estão entre as alterações aprovadas nesta sexta-feira no Parlamento.

Uma “agenda poderosa”, na perspectiva do Governo; uma “desilusão” e uma “oportunidade perdida” para PCP, BE e CGTP; uma “violação do acordo” assinado na concertação social, segundo a Confederação Empresarial de Portugal (CIP). Governo, oposição e parceiros sociais têm usado palavras fortes para se referirem à Agenda do Trabalho Digno que foi aprovada nesta sexta-feira no Parlamento.

O diploma foi aprovado apenas com os votos favoráveis do PS, enquanto o PSD, o Chega, o PAN e o Livre se abstiveram. Os grupos parlamentares do BE, PCP e IL votaram contra.

Em causa estão mais de uma centena de alterações ao Código do Trabalho – que é alterado pela vigésima terceira vez desde 2009 – e mudanças ao código do processo de trabalho, ao regime das contra-ordenações laborais, ao estatuto da Autoridade para as Condições de Trabalho ou à lei que regula o trabalho temporário.

O processo legislativo teve início em Julho e o resultado final é uma combinação entre a proposta que o Governo enviou para o Parlamento, as alterações feitas pelo PS e algumas propostas da oposição.

As novas regras para o trabalho em plataformas, a possibilidade de haver um valor fixo de despesas por teletrabalho, que ficará isento e IRS, e a proibição de os trabalhadores renunciarem a direitos no final do contrato foram propostas do BE que, sem que se esperasse, tiveram luz verde dos deputados socialistas.

O diploma ainda terá de passar pelo crivo do Presidente da República, mas a expectativa do PS é que possa entrar em vigor no início de Abril.

Plataformas
Trabalho de estafetas e motoristas com novas regras

É uma das alterações mais relevantes de todo este processo legislativo e é o resultado da proposta do PS, com alterações da autoria do BE. O Código do Trabalho passa a ter um artigo específico que pode levar os tribunais a reconhecer que os estafetas ou outros prestadores de actividades em plataformas digitais devem ter um contrato de trabalho.

O artigo 12.º-A prevê que se presume a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de actividade e a plataforma digital, se verifiquem pelo menos duas das seguintes características:a plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efectuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
a plataforma digital exerce o poder de direcção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de actividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da actividade;
a plataforma digital controla e supervisiona a prestação da actividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da actividade prestada, nomeadamente através de meios electrónicos ou de gestão algorítmica;
a plataforma digital restringe a autonomia do prestador de actividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar actividade a terceiros via plataforma;
a plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de actividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras actividades na plataforma através de desactivação da conta;
os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por estes explorados através de contrato de locação.

Embora a lei dê primazia à plataforma digital, continua a existir a figura do operador intermédio e, em caso de dúvida, caberá aos tribunais decidir com quem é que o prestador de actividade deverá assinar contrato – se com a plataforma digital ou com operador intermédio.

Por proposta do BE, fica claro na lei que, independentemente das especificidades desta actividade, há um conjunto de direitos previstos no Código do Trabalho que têm de se aplicar a estes trabalhadores, nomeadamente em matéria de “acidentes de trabalho, cessação de contrato, proibição de despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação”.

Fica também claro que as novas regras de laboralidade se aplicam às actividades de plataformas digitais reguladas por legislação específica, nomeadamente ao transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma (TVDE).

Está previsto que a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) desenvolva, no primeiro ano de vigência da lei, uma campanha extraordinária de fiscalização do sector das plataformas digitais.

Teletrabalho
Direito para quem tem filhos com deficiência, doença crónica ou oncológica

O direito ao teletrabalho – desde que seja compatível com a actividade e a empresa disponha de recursos e meios para o efeito – foi alargado a quem tem filhos com deficiência, doença crónica ou doença oncológica, independentemente da idade.

O novo artigo 166.º-A do código laboral prevê que têm direito ao teletrabalho os trabalhadores com filho até três anos ou, independentemente da idade, com filho com deficiência, doença crónica ou oncológica desde que viva em comunhão de mesa e habitação.

A lei também já prevê o direito ao teletrabalho para quem tem filhos até oito anos no caso em que ambos os progenitores reúnem condições para o exercício da actividade e partilham o teletrabalho, para as famílias monoparentais ou em situações em que apenas um dos progenitores reúne condições para o exercício do teletrabalho. Contudo, neste caso, o direito não abrange trabalhadores de microempresas (com menos de 10 trabalhadores).
Isenção de IRS para compensação fixa por teletrabalho

As mudanças em cima da mesa abrem a porta a que os acordos de teletrabalho possam prever o pagamento de uma compensação fixa aos trabalhadores para fazer face ao aumento de despesas.

Neste momento, apenas ficam isentos de IRS os valores pagos aos trabalhadores que apresentem facturas que comprovam o aumento de despesas com electricidade ou comunicações, por exemplo, por comparação com o período anterior ao início do teletrabalho. A lei passa a prever que parte da compensação fixa também ficará isenta de IRS, deixando para o Governo a fixação de um limite.

Despedimentos
Trabalhadores impedidos de renunciar a créditos salariais

Depois de avanços e recuos por parte do PS, o Código do Trabalho passa a ter uma norma que põe fim à possibilidade de os trabalhadores abdicarem de créditos que lhes são devidos pelo empregador, no momento em que são despedidos ou em que o seu contrato cessa.

Esta norma tem como objectivo pôr fim a uma prática que se generalizou nos últimos anos e em que, no final do contrato ou em processos de despedimento, as empresas passaram a exigir que os trabalhadores assinassem uma declaração a dizer que nada mais tinham a receber, prescindindo de salários, de horas de formação, de subsídios de férias ou de Natal e de trabalho suplementar que eventualmente não lhe tenham sido pagos.

Essa prática passa a estar vedada e apenas se admite que o trabalhador prescinda desses créditos no âmbito de acordos judiciais.
Compensações por despedimento sobem de 12 para 14 dias

A compensação a pagar ao trabalhador em caso de despedimento colectivo ou por extinção de posto de trabalho aumenta de 12 para 14 dias de salário por cada ano de trabalho, mas isso apenas se aplica ao período da duração dos contratos contado a partir da entrada em vigor desta nova legislação.

Inicialmente, o PS tinha apresentado uma proposta que permitia que esta alteração tivesse efeitos retroactivos, mas a pressão dos patrões – que ameaçaram rasgar o acordo de concertação social assinado em Outubro – acabou por levar os socialistas a mudar de posição.

Segundo o deputado socialista, Fernando José, essa proposta baseava-se numa “interpretação bondosa” do que foi o acordo de rendimentos assinado pelo Governo, confederações patronais e UGT e tem sublinhado que “pode ser poucochinho”, mas “acrescenta direitos aos trabalhadores”.
Fim de contrato a termo dá 24 dias de indemnização

Também a compensação paga ao trabalhador no fim de um contrato a termo aumenta, passando de 18 para 24 dias de salário por cada ano de antiguidade.

O PS acabou por resolver um “lapso” da proposta de lei do Governo e que vedava o pagamento desta compensação quando o contrato a termo certo caducava automaticamente por ter uma cláusula de não-renovação.

No caso de caducidade de contrato a termo incerto, o trabalhador tem direito a receber uma compensação também de 24 dias de salário, deixando de existir a distinção que agora previa que a indemnização era de 18 dias de salário nos primeiros três anos e de 12 dias nos anos seguintes.

Faltas e Licenças
Licença exclusiva do pai passa a 28 dias corridos

A licença parental exclusiva do pai passará de 20 dias úteis para 28 dias corridos.

A principal diferença entre a lei em vigor e a alteração aprovada é que esses 28 dias passam a ser contados de forma contínua, o que significa que, na maioria dos casos, o número de dias efectivamente gozados será o mesmo.

Ainda assim, e como alertou a oposição, em alguns meses com feriados o pai poderá ter menos dias de licença do que actualmente.
Baixas até três dias simplificadas

A justificação das faltas por doença até três dias poderá a ser passada pelo serviço digital do Serviço Nacional de Saúde (SNS24), mediante auto-declaração de doença e até ao limite de duas vezes por ano.

A proposta da autoria do PS foi muito contestada pelo PSD e pelo PCP, que questionaram a solução encontrada sem o reforço dos meios humanos do SNS24.

O modo como esta nova forma de justificar as ausências ao trabalho se vai operacionalizar não ficou totalmente esclarecido e caberá agora ao Ministério da Saúde tomar decisões.
Morte de cônjuge com licença de 20 dias

Os trabalhadores vão poder faltar 20 dias ao trabalho em caso de morte do cônjuge, em vez dos actuais cinco dias. Já no caso dos genros e das noras a falta não pode ir além dos cinco dias.

No caso de luto gestacional, abre-se a possibilidade de o pai faltar três dias. Este direito também se aplica à mãe, mas apenas se não gozar da licença por interrupção de gravidez de 14 a 30 dias que actualmente já está prevista na lei.

Precariedade
Contratos a prazo limitados

Quando um contrato a termo cessa, a empresa fica impedida de admitir um novo trabalhador a contrato a termo, temporário ou em regime de prestações de serviço não só para o mesmo posto de trabalho como também para a mesma “actividade profissional”.

Essa limitação aplica-se antes de decorrido um período de tempo equivalente a um terço da duração do contrato, incluindo renovações.
Empresas utilizadoras obrigadas a integrar temporários

A lei passa a prever uma norma que obriga as empresas utilizadoras que recorrem a empresas de trabalho temporário sem licença a integrar os trabalhadores nos seus quadros.

O Código do Trabalho já determina que é nulo o contrato celebrado por empresa de trabalho temporário sem licença e passará a determinar que, nesses casos, “considera-se que o trabalho é prestado ao utilizador em regime de contrato de trabalho sem termo”.

Além disso o contrato de trabalho temporário a termo certo passa a ter um limite máximo de quatro renovações, em vez das actuais seis.
Outsourcing proibido por um ano após despedimentos

A lei passa a proibir o recurso a outsourcing para preencher lugares de trabalhadores alvo de despedimento colectivo ou por extinção de posto de trabalho nos 12 meses anteriores.

O objectivo desta norma, contestada pelas confederações patronais, é evitar que as empresas possam contornar a proibição de contratar trabalhadores para postos de trabalho que foram extintos, recorrendo a empresas prestadoras de serviços.
Trabalho não declarado criminalizado

A criminalização dos empregadores que não declaram a admissão de trabalhadores à Segurança Social nos seis meses seguintes ao início do contrato vai avançar.

Em causa está um novo artigo que será acrescentado ao Regime Geral das Infracções Tributárias, prevendo que “as entidades empregadoras que não comuniquem à Segurança Social a admissão de trabalhadores nos termos previstos nos n.ºs 1 a 3 do artigo 29.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (…), no prazo de seis meses subsequentes ao termo do prazo legalmente previsto, são punidas com as penas previstas no n.º 1 do artigo 105.º”.

Ou seja, podem ser condenadas a pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
ACT com poderes reforçados

Passa a estar previsto que a ACT pode desencadear uma acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho quando detecta situações de falso trabalho independente nas plataformas ou a utilização de contratos a termo ou temporários sem a devida justificação. Caso o empregador não regularizar a situação identificada, cabe à ACT encaminhar o processo para o Ministério Público.

Negociação colectiva
Denúncia de convenção apreciada por tribunal arbitral

Quando um empregador (ou sindicato, embora por norma a iniciativa parta das entidades patronais) denuncia uma convenção colectiva, para que seja negociada, terá de apresentar os motivos ou desajustamentos que justificam a revisão.

A grande novidade é que as partes podem pedir, no prazo de 10 dias a contar da data da recepção da denúncia, que um tribunal arbitral aprecie esses fundamentos. Este processo suspende os efeitos da denúncia e, caso o tribunal arbitral, não encontre razões para o pedido de revisão da convenção ela não produz efeitos.

A lei agora aprovada prevê que o procedimento deve ser regulamentado no prazo de 60 dias.
Arbitragem necessária pode impor solução

Outra das alterações aprovadas prevê que as partes possam requerer a arbitragem necessária a qualquer momento em que negociação falhe, podendo o tribunal arbitral impor um “instrumento de regulamentação arbitral” que será vinculativo.

Na prática, esta norma visa incentivar as partes a chegar a um acordo, sob pena de terem de se sujeitar à solução determinada pelo tribunal.

Foi ainda aprovada uma norma que prevê que as empresas abrangidas por convenções colectivas devem ter acesso privilegiado a apoios ou financiamentos públicos, “incluindo fundos europeus sempre que pertinente”, aos procedimentos de contratação pública e a incentivos fiscais.

Estas normas não deverão aplicar-se aos 37 pedidos de denúncia de convenções colectivas que foram travados pela moratória que termina a 9 de Março.
Contratos colectivos abrangem independentes

Os trabalhadores independentes que prestam mais de 50% da actividade para o mesmo empregador (e que legalmente são classificados como economicamente dependentes), assim como os trabalhadores em regime de outsourcing, passam a ser abrangidos pelas convenções colectivas em vigor.

Quando os independentes desempenham funções correspondentes ao objectivo social da empresa, passa a prever-se que o instrumento de regulamentação colectiva se aplica a estes trabalhadores, desde que lhe seja mais favorável, pondo fim à possibilidade de as empresas terem trabalhadores com condições de trabalho diferentes do que se fossem abrangidos pelas convenções colectivas.

Sindicatos
Empresas obrigadas a revelar algoritmos

“Os parâmetros, os critérios, as regras e as instruções em que se baseiam os algoritmos” que influenciam a tomada de decisões relativamente a admissões e despedimentos, condições de trabalho ou controlo da actividade terão de ser revelados aos trabalhadores, comissões de trabalhadores e delegados sindicais.
Sindicatos com maior acesso às empresas

Passou a ficar claro na lei que os dirigentes sindicais poderão entrar nas empresas onde não há trabalhadores sindicalizados, pondo fim a uma dúvida que se arrastava há muito.

Por proposta do PS, passa a prever-se que o direito a desenvolver actividade sindical “aplica-se igualmente a empresas onde não existam trabalhadores filiados em associações sindicais”, embora com adaptações.

O empregador que impeça injustificadamente o exercício deste direito “incorre na prática de uma contra-ordenação muito grave”.