15.7.21

Cientistas corrigem história do primeiro surto de covid-19 em Portugal

Andrea Cunha Freitas, in Público on-line

Afinal, o caso de Lousada estava mal contado. As análises às sequências genéticas do vírus que infectou várias pessoas contam uma história diferente da que ouvimos em 2020 e reforçam a importância de seguir este rasto para travar uma cadeia de transmissão.

Já passámos por muitas coisas e várias vagas desde aquele que terá sido o primeiro surto de covid-19 detectado em Portugal, numa fábrica de calçado em Lousada, no distrito do Porto. Uma equipa de investigadores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto e do Hospital de S. João conseguiu fazer uma reconstituição do caso que começou no fim de Fevereiro de 2020. O artigo científico publicado este mês apresenta uma nova versão da história, sublinhando a importância de seguir o rasto do vírus para travar uma cadeia de transmissão. Terá sido um oportuno excesso de zelo, mais ou menos às cegas, que evitou um pior desfecho.

O surto de covid-19 em Lousada terá sido o primeiro a ser detectado em Portugal, mas não teve consequências dramáticas. Mais de 50 pessoas foram infectadas mas foi possível isolar os casos, impedindo uma disseminação que podia obviamente ter sido mais grave e ter corrido muito mal. No entanto, na verdade o “travão” colocado neste surto foi resultado de uma série de medidas restritivas e preventivas adoptadas de forma generalizada sem que se soubesse com precisão o que estava ali acontecer. Ou seja, o plano de prevenção resultou porque apontou para todos os possíveis alvos, isolando os casos positivos detectados.

Num exercício quase forense, os cientistas conseguiram agora fazer a reconstituição deste episódio importante da pandemia a nível nacional. O trabalho foi o resultado de uma parceria que juntou os investigadores do I3S à equipa clínica do hospital de S. João, no Porto, coordenada pela infecciologista Margarida Tavares. Segundo explica ao PÚBLICO Luísa Pereira, geneticista do i3S e que coordenou este trabalho ao longo de vários meses, as análises de sequenciação do vírus reescrevem várias partes da história sobre o surto na fábrica de calçado em Lousada. O artigo foi publicado este mês de Junho na revista Viruses, do grupo suíço MDPI (Multidisciplinary Digital Publishing Institute).

Duas viagens, quatro pessoas e dois grandes almoços

Primeiro dado a corrigir no estranho caso da fábrica de calçado em Lousada: não houve uma viagem a Itália com dois elementos desta empresa. Foram duas viagens e em cada uma delas foram (e voltaram, claro) duas pessoas. Numa primeira viagem, entre 16 e 18 de Fevereiro, viajou o dono da fábrica com um cunhado. Na viagem seguinte, realizada entre 19 a 21 de Fevereiro, deslocaram-se também a Itália para outra feira de calçado um outro cunhado (que em 2020 foi identificado como paciente zero do surto em Lousada, porque foi o primeiro a ser diagnosticado) e o filho do dono da fábrica que também trabalha para a empresa.

Segundo dado a corrigir: não houve um, mas dois grandes almoços de família no mesmo dia de 25 de Fevereiro, terça-feira de Carnaval, e que acabaram por servir para alastrar ainda mais a infecção. Num dos encontros juntaram-se 26 pessoas e no outro 21.

A versão que surgiu na altura consistia no relato de apenas uma viagem de duas pessoas da fábrica, sendo que um desses viajantes teria voltado infectado e depois disseminado o vírus entre os trabalhadores da empresa e familiares, num almoço de família. Mas o rasto genético do vírus conta uma história diferente.

A pessoa que inicialmente foi identificada como o paciente zero deste surto, o cunhado que embarcou na segunda viagem, não estava infectada com a mesma variante do vírus encontrada nos outros casos diagnosticados nos dias seguintes na fábrica, na família e até entre os amigos.

“O ‘acusado’ não infectou ninguém, uma vez que nenhuma das outras pessoas tinha a mesma variante do vírus. Percebemos que quatro pessoas que trabalhavam na fábrica, e têm uma relação familiar, foram em duas viagens desfasadas mas muito próximas a duas feiras a Milão, em Itália”, confirma a geneticista.

Qualquer um dos outros três viajantes pode ter sido o paciente zero. Não se sabe ao certo quem. Luísa Pereira refere que “o mais provável” é que tenha sido o dono da fábrica que se sabe que ficou infectado com uma sequência do vírus que coincide com a maioria das outras que foram depois diagnosticadas, mas não é possível descartar as outras duas pessoas, uma vez que não foram recolhidas amostras desses indivíduos. Uma coisa é certa: as diferenças nas sequências genéticas do vírus que andou por ali a circular não permitem admitir sequer a hipótese de se tratar do mesmo vírus com uma ligeira mutação. “São dois ramos distintos”, insiste Luísa Pereira. Nas 23 sequências genéticas isoladas e analisadas, existia apenas uma que pertencia a um ramo do vírus SARS CoV-2 e todas as outras eram de um outro ramo.

Mas o que interessa, afinal, saber se foi um ou outro? A verdade é que o vírus se espalhou primeiro na fábrica e depois nas famílias e até em alguns círculos de amigos. O interesse dos investigadores é fácil de perceber, afinal estes foram os primeiros casos a surgir no país. A equipa clínica do Hospital de S. João tinha acesso a uma grande cadeia de transmissão do vírus localizada e que, só por isso, importava estudar.

O trabalho parte da identificação de uma pessoa responsável pela disseminação da infecção em ambiente de trabalho e familiar. Isto, lembra Luísa Pereira, aconteceu numa altura em que as autoridades de saúde recomendavam o isolamento e internamento hospitalar de qualquer caso positivo. “Muitas destas pessoas foram internadas e não porque estavam realmente doentes [com sintomas], mas apenas porque eram essas as indicações”, confirma a geneticista.

Assim, a análise às amostras que foi possível recolher e preservar revelou que ali existiram dois ramos distintos da infecção. A pessoa identificada como paciente zero tem uma variante do vírus que é diferente de todos os outros. As peças do puzzle só começaram a encaixar depois de muitas perguntas. Primeiro, soube-se que esse paciente não foi sozinho, depois que tinham existido duas viagens na mesma altura com outras duas pessoas ligadas à mesma empresa e, por fim, que tinham ocorrido afinal dois almoços de família no mesmo dia.


“As pessoas quando entrevistadas pelos médicos ou técnicos de saúde não se lembram de tudo – não é por mal. E o modo como se faz as perguntas direcciona muito as respostas”, justifica Luísa Pereira, sublinhando o papel da infecciologista Margarida Tavares que conseguiu obter muitos dados importantes junto de uma “aliada” que pertence à família afectada e que ajudou os cientistas fornecendo preciosos detalhes em falta.

De uma ponta até outra e outra foi possível reescrever esta história. Com um considerável grau de detalhe que mostrou, por exemplo, que uma das pessoas infectadas neste surto era a manicure de uma das mulheres mais velhas da família e que esta manicure, por sua vez, também infectou o marido. O puzzle dos cientistas numera as várias pessoas infectadas e segue-lhes o rasto, distinguindo os saltos do vírus com cores num gráfico que mostra a complicada teia de relações e contactos entre os quatro viajantes, os trabalhadores da fábrica, as famílias, os dois grandes almoços e os amigos. Como se estivéssemos a assistir a um policial em que seguimos o rasto de quem esteve com quem, onde, como e quando e o que aconteceu depois. Um policial sem grande suspense dado que já sabemos desde o início que o único culpado é mesmo o vírus.
A lição e a sorte de ser o primeiro

O facto de termos um ramo do vírus que só infectou uma pessoa e outro que infectou várias, pode significar alguma coisa sobre o agente infeccioso? Uma versão pode ser mais contagiosa do que outra? Luísa Pereira não arrisca uma resposta definitiva e reconhece que há várias hipóteses. Talvez, sugere, o tal indivíduo que tinha uma variante do vírus que não foi encontrada em mais nenhuma outra pessoa (analisada) tivesse uma carga viral mais baixa. Talvez esta pessoa tenha tido algum comportamento que evitou a sua disseminação. Talvez exista outra qualquer explicação para isso. Não se sabe.

Sabe-se que as duas sequências estavam a circular na altura e eram as duas comuns, esclarece a geneticista. Das poucas certezas que restam para memória futura é que a pessoa que foi na altura identificada como o paciente zero não o era. Não podia ser.

“A sequenciação é muito importante para ter toda a informação” sobre a viagem de um vírus e, consequentemente, para a conseguir travar. Por ter sido um dos primeiros surtos, a cadeia de transmissão acabou por ser atacada em várias frentes e evitou consequências mais graves. Mas foi uma estratégia às cegas em que todos lucraram com um excesso de zelo que impôs uma série de medidas que nas fases seguintes da pandemia (com um elevado número de casos diagnosticados) não seria possível. Isolar e até internar todos os casos positivos independentemente da gravidade dos sintomas da doença não é sequer uma hipótese hoje.

Por isso, fica a lição. Tudo acabou bem porque ainda tudo estava a começar e houve excesso de zelo, mas o ideal é que seja possível ter rapidamente este tipo de dados para agir de forma também rápida e certeira. “Agora sabemos que estas informações complementares de sequenciação são muito úteis e se forem feitas rapidamente serão muito mais úteis no terreno”, diz Luísa Pereira.

Por teimosia, rigor ou pela necessidade de saber que faz parte de fazer ciência, a equipa fez questão de tirar o estranho caso do surto na fábrica de Lousada a limpo. As análises e sequências já estavam feitas desde o ano passado e o artigo estava pronto a publicar no início deste ano, mas como as revistas foram atingidas por uma verdadeira avalanche de trabalhos sobre este vírus e sobre a doença que provoca, o esclarecimento do caso do primeiro surto de covid-19 em Portugal teve de esperar. Até agora.