Ângela Roque, in RR
A presidente da Cáritas espera que o dinheiro do PRR seja bem aplicado em medidas concretas de combate à pobreza, que tenham em conta o país real. Para Rita Valadas, os apoios dados pelo Governo na pandemia “almofadaram” o impacto da crise, mas não a evitaram, e “o pior ainda não chegou”.
A presidente da Cáritas diz que a crise social ainda não atingiu o pico. Em entrevista à Renascença, a propósito do debate sobre o Estado da Nação desta quarta-feira, Rita Valadas diz que ainda é cedo para avaliar o verdadeiro impacto da pandemia.
A responsável da Cáritas está preocupada com a “incerteza” que se vive, que dificulta planear o futuro. Espera que se aproveite bem o dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a que a Cáritas também vai candidatar-se, para continuar a “acudir” aos mais frágeis. E garante que o Estado pode contar com a colaboração das instituições sociais e solidárias, mas tem de trabalhar mais em rede.
O parlamento vai debater o estado da Nação. Como presidente da Cáritas, como é que vê a situação do Estado em termos sociais?
Nós ainda estamos no meio de um enorme furacão. Vivemos uma realidade almofadada por algumas medidas do governo, que naturalmente protegeram o impacto nas empresas e nas pessoas. Nas empresas não temos a certeza se depois de deixarem de ter os suportes que têm neste momento vão ter, ou não, capacidade para fazer retoma. Eu fico sempre muito duvidosa das notícias que vão aparecendo, de que afinal é muito melhor do que se estava a pensar... Eu só sei ler as notícias do território, e ao território ainda não chegou o pior.
Tem essa perceção?
Tenho, porque se as empresas não fizerem retoma não vão conseguir manter o emprego. E ainda assim vamos ter aqui um delay de tempo. As crises sociais normalmente não são ao mesmo tempo das crises económicas, ou as do imobiliário. Neste caso a crise de saúde arrasta a económica e depois arrasta a social, e a social ainda não chegou em toda a sua plenitude.
Mas sabe-se que há um quinto da população portuguesa pobre, e até há um estudo que aponta para 400 mil novos pobres...
Esse dado é de um estudo da Universidade Católica, mas as avaliações e investigações não dão todas os mesmos valores. Por exemplo, os dados do Eurostat não falam em 400 mil novos pobres... Salvaguardado que não sou investigadora, os dados que temos – nós, Cáritas – são os da nossa realidade, e esses para mim são seguros e não se materializam na realidade de haver 400 mil novos pobres.
A Cáritas desenvolveu um programa para a pandemia que é o 'Vamos Inverter a Curva da Pobreza' – isto para além da ação normal da Cáritas, não estamos a falar dos programas que já se desenvolvem sempre e que sempre apoiaram as questões alimentares, as roupas, as famílias, etc. Mas este, o 'Vamos Inverter a Curva da Pobreza', entre 1 de maio de 2020 e 2 de julho de 2021 teve cerca de 16 mil pessoas apoiadas, o que corresponde a cerca de seis mil famílias, e destas há cerca de 2.900 famílias novas, que nunca recorreram à Cáritas.
"Ainda estamos no meio de um enorme furacão. Vivemos uma realidade almofadada por algumas medidas do governo. Ainda não chegou o pior"
Isso a nível nacional?
A nível nacional, e concretamente deste programa. Não estamos a falar do aumento, que também houve, do número de atendimentos em mais 10%, mas que também não é ao nível dos 400 mil mais pobres.
Neste mais de um ano demos apoio financeiro de emergência superior a 203 mil euros a 3.107 pessoas, e com vales de bens essenciais apoiámos 13.567 pessoas (quase cinco mil famílias), no valor de mais de 202 mil euros.
Com o 'Vamos Inverter a Curva da Pobreza' – que é um apoio para as situações que nos parecem diferentes das típicas – já aplicámos quase meio milhão de euros.
Sabemos que há um impacto que fustiga muitas famílias que não eram apoiadas antes por nós, e que as soluções já não podem ser as mesmas, porque muitas são famílias que estão no limitar da pobreza, mas até trabalham, o salário é insuficiente. E isto deve-nos convocar, na perspetiva do debate do estado da Nação! É uma questão crítica.
Ter trabalho não assegura rendimento suficiente.
Não assegura. E as medidas de apoio que existem abaixo do salário mínimo, muito menos: rendimento social de inserção, pensões sociais e afins, são panaceias para situações críticas, mas não são soluções de vida.
Como é que a Cáritas tem conseguido dar resposta? Não está também em dificuldades?
A Cáritas tem vindo a responder às necessidades que vão surgindo. Uma coisa boa que aconteceu na pandemia – se é que podemos dizer isto assim – foi que as pessoas, obrigadas a estar em casa, tiveram tempo para olhar para o que se passa à sua volta e no impacto que isso tem, e mobiliaram-se para apoiar. As empresas também ficaram a conhecer melhor a Cáritas.
Essa tem sido uma das suas apostas, o apoio das empresas. Está a correr bem?
Sim, é extraordinário que muitas, com quem nunca tínhamos colaborado, se aproximem e digam: ‘nós fazemos responsabilidade social e queremos fazer isso convosco’. Não fazemos procura ativa, mas divulgamos o que fazemos e como aplicamos o dinheiro. Vivemos tempos de falta de confiança nos dinheiros que são entregues ou doados, por isso é muito importante que pessoas e empresas saibam exatamente a aplicação que existe.
Temos um boletim de doadores onde são divulgados todos os donativos existentes, e temos um enorme orgulho em identificar o apoio que estamos a receber. Como eu já disse uma vez: a crise não foi de solidariedade, mas é preciso muita solidariedade.
E continuam capilarmente no terreno?
A Cáritas em Portugal é um serviço prestado por 20 dioceses, e a Cáritas Portuguesa é um serviço para estas dioceses. A Cáritas só faz aquilo que é preciso no seu território e que mais ninguém consegue fazer, no sentido de apoiar os mais vulneráveis dos vulneráveis. Mas há todo um trabalho que é feito ao nível do território, cuja avaliação não temos.
Seria importante ter?
Se tivéssemos informação plena de todo o atendimento que se faz, certamente teríamos noção do que é que é pobreza. Sabemos que há idosos em aldeias remotas que conseguem fazer poupança de pensões de 200 euros, e mandar para a família, e sabemos que com 200 euros um idoso na cidade não consegue sobreviver se não tiver outro tipo de apoio. Por isso é que eu digo: é muito importante definir estratégias, mas é preciso que essas estratégias tenham uma leitura da realidade.
Tem havido noção do país real, e dessas nuances e diferenças, quando se elaboram estratégias e políticas públicas?
Ao nível estratégico, da definição de estratégias, não há. Ao nível dos territórios, cada junta de freguesia saberá o que se passa, como cada paróquia sabe.
As instituições de proximidade…
Essas sabem o que se passa lá, têm grande capacidade para resolver as situações de emergência e os problemas dos seus mais próximos, mas não têm a dimensão estratégica. Por isso é que muitas vezes se sente que as estratégias que são criadas não são para os pobres, porque não chega lá. E é esse o meu temor em relação ao PRR.
Ter muitos milhões não significa resolver os problemas. Atirar milhões para cima da mesa esconde os problemas sociais, mas não os resolve. Para quem trabalha próximo, tirar uma pessoa da pobreza é uma grande vitória. Para quem trabalha estratégias, tirar uma pessoa da pobreza nem chega a ser estatística, não tem expressão.
O PRR devia incluir medidas concretas de combate à pobreza e às desigualdades?
Tem de incluir. Espero que aquilo que existe sobre o Plano de Recuperação e Resiliência seja uma perspetiva intencional, a concretização passa por planos mais finos.
"Preocupa-me o desconhecimento permanente em que se vive. Aquilo que eu sinto sempre é que não é possível planear nada neste momento em Portugal"
O governo tem tido em conta o trabalho das instituições sociais e solidárias, como a Cáritas, e as propostas que têm? Essa colaboração devia desenvolver-se mais?
Tem de se desenvolver mais. Somos um país pobre, não somos um país rico, por isso temos todos que juntar esforços e recursos para resolver os problemas.
Trabalhar mais em rede?
Trabalhar mais em rede. Fazer rede, nalguns casos nem existe! Fazer rede, garantir a rede e trabalhar mais. Das experiências que tenho, de passagem por algumas crises, as instituições, se ouvidas, põem tudo em cima da mesa. A questão é que têm de ser ouvidas. E os programas que vierem também têm de ser adaptados às realidades de Portugal. Têm de se definir programas que sejam para resolver os problemas e não para perpetuar a situação que temos, isso é que não pode ser.
A Cáritas também vai ser candidata a beneficiar dos dinheiros do PRR?
Todos temos de ser. Se não é para deixar ninguém de fora, se temos de acudir a todas as pessoas, temos de ter todos os recursos. A Cáritas tem um potencial especial, porque consegue ter um olhar nacional – e até internacional, com a Cáritas Europa e a Cáritas Internacionalis – e agir sobre os territórios. Tudo o que entendermos que pode ser um recurso para desenvolver soluções que resolvam os problemas dos mais vulneráveis, naturalmente vamos aproveitar. O que nós fazemos é quase redistribuição, é juntar as boas vontades às grandes necessidades e proteger os mais frágeis.
As medidas que o governo tomou ao longo deste ano de pandemia foram as suficientes? Ou podia ter-se ido mais longe?
Gostava que se pudesse ter ido mais longe, mas acredito que se tomaram as medidas possíveis. Fizeram muita diferença na vida dos portugueses, mas não resolveram os problemas. A saída das almofadas é que é o problema para mim. Temos de saber sair sem deixar cair as pessoas.
A questão das moratórias é uma preocupação?
É. Numa perspetiva generalista, as medidas que houve foram boas, permitam que muitas pessoas não caíssem rapidamente, mas era preciso que a retoma da economia fosse anterior ao fim das almofadas, só que isso não é possível, porque não se sabe quando a situação vai acabar. Vivemos num equilíbrio extraordinariamente difícil em que temos que utilizar o melhor possível este PRR, e o melhor possível todos os recursos que temos no país, a começar pela proximidade no que diz respeito às famílias.
O que é que a preocupa mais neste momento no país?
Preocupa-me o desconhecimento permanente em que se vive. Na verdade, aquilo que eu sinto sempre é que não é possível planear nada neste momento em Portugal. É preciso ser extraordinariamente flexível, estar muito atento e alerta, porque a cada dia pode-nos ser pedida uma coisa diferente, e isso, para quem tem esta responsabilidade de acudir aos mais frágeis, é extraordinariamente difícil, porque não há forma de priorizar, temos de acudir!
As situações são muito críticas, mas nós percecionamos que podem ser mais. Sabemos que temos rapidamente de entrar numa perspetiva de cuidar das famílias, para que elas possam estar autónomas, e não sabemos como o fazer, porque não sabemos até onde esta crise vai, o que é que mais nos vai ser pedido. Mas temos de começar a ter estas duas perspetivas: não viver constantemente em emergência e, ao mesmo tempo, perceber quais são os pequenos passos que temos de dar na solução de alguma coisa. Mas, a incerteza...eu diria que a incerteza é o que mais me preocupa.