"Aprova do nosso progresso não reside em atribuir mais a quem tem muito, e sim em fornecer o suficiente a quem tem pouco."
Franklin D. Roosevelt, Presidente dos EUA, 1882-1945
Adesigualdade social e económica já era uma constante a nível nacional, regional e global, que a pandemia se limitou a exacerbar e a acelerar. Por um lado, a pandemia aumentou a pobreza (sob a forma de falta de recursos e de rendimento que garantam meios de subsistência sustentável, fome e má-nutrição, acesso limitado à educação e a outros serviços básicos, etc.), vivendo hoje mais de 780 milhões de pessoas abaixo do limiar internacional da pobreza, isto é, com menos de 1,90 dólares por dia (UNIRC, Nações Unidas). Por outro lado, os muito ricos ficaram ainda mais ricos. Segundo a Oxfam, entre 18 de Março de 2020 e 31 de Dezembro de 2020, os bilionários ficaram, no seu todo, 3,9 triliões de dólares mais abastados.
Os pobres ficaram mais pobres e os ricos ficaram mais ricos
A pandemia gerou e continua a gerar períodos de encerramento da economia no plano global, em graus diversos. Para os adultos, daí decorre desemprego, sobretudo para quem tem menos habilitações literárias e/ou desempenha funções que não podem ser executadas através de teletrabalho. Para as crianças e jovens em idade escolar pertencentes a agregados familiares financeiramente vulneráveis, o fecho das escolas (que acarreta a interrupção de outros programas, como o fornecimento de refeições) resultará em lacunas significativas de aprendizagem a curto prazo (Banco Mundial), uma vez que a ausência de banda larga capaz e/ou de equipamento informático dificulta a realização de tarefas escolares online. Pior ainda, em países em desenvolvimento, nos quais o apoio financeiro estatal é factor inexistente, as perdas avassaladoras de rendimentos tendem a espoletar nutrição inadequada, endividamento elevado e a retirada permanente das crianças das escolas (PreventionWeb).
Ao contrário dos pobres, os ricos conseguiram, em regra, manter empregos bem remunerados e/ou obtiveram elevados rendimentos advindos da compra e venda de acções no mercado de valores mobiliários e/ou de bens imobiliários. Enquanto a Grande Depressão (ou crise de 1929) foi marcada por uma queda drástica nas bolsas de valores, a crise que hoje vivemos teve até agora efeito oposto: o mercado de valores mobiliários disparou, tendo os ricos ficado mais ricos. Por exemplo, a fortuna dos bilionários norte-americanos sofreu um crescimento de cerca 39% entre 18 de Março de 2020 e 18 de Janeiro de 2021, tendo passado de aproximadamente de 2,947 triliões de dólares para 4,085 triliões (Inequality. Org).
A situação em Portugal e a imprescindibilidade de planeamento e eficiência inabaláveis
Em Portugal, país com modesto PIB e pouco arcabouço económico, segundo um estudo da Católica Lisbon School of Business & Economics, apesar da implementação de cruciais medidas de mitigação de desigualdades (como, por exemplo, medidas de apoio ao emprego e às actividades culturais, moratória de créditos e diferimento de obrigações fiscais), a pandemia levou a um incremento de 25% e de 9%, respectivamente, em sede de pobreza e de desigualdade. Ou seja, balões de oxigénio à parte, há que actuar de forma sólida e incisiva a médio e longo prazo. Existe uma crise sistémica, um plano para a recuperação económica do país, investimento e financiamento. Falta apenas garantir a adequação da visão estratégica em causa e a sua implementação de forma metódica, precisa e rigorosa. E quem a deve implementar? Aqui há que ter humildade e reconhecer que por vezes não sabemos o que pensamos saber, devendo atribuir a execução e/ou supervisão de certas tarefas a quem bem as sabe desempenhar. Como notou Sir Angus Deaton (Prémio Nobel da Economia, 2015), "aprendemos, no mínimo, com esta pandemia que devemos ser humildes".
Conclusões
A afirmação que nos serve de título ("ao povo dai pão e circo") tem por base uma política criada pela elite romana para controlar a plebe, política essa que incluía mecanismos de apaziguamento de descontentamento popular (como o circo, os duelos entre gladiadores, as feiras, o teatro e a distribuição de alimentos) e que mantinha a plebe controlada, adormecida e sem vontade de pensar (A Vida Quotidiana em Roma no Apogeu do Império, Jerome Carcopino).
Passando para a actualidade, constatamos que a situação descrita por Carcopino é similar à que se tem vivido. As dificuldades, a luta e o sofrimento de muitos têm sido continuamente anestesiados por meio de pão e circo. Na actualidade, o circo inclui telenovelas, reality shows, revistas cor-de-rosa e o aproveitamento de emoções, clubismo e sentimento de patriotismo associados ao futebol e congéneres e o pão emerge sob a forma de apoios e afins. Tais medidas não resolvem a situação dos seus beneficiários, mantendo-os, todavia, letárgicos, entorpecidos, dependentes e indiferentes a questões de peso (como salários, desemprego, nepotismo, corrupção, lacunas na educação e na saúde, etc.). Se, todavia, em função da crise, o circo ficar desprovido de pão, a ilusão será destruída, restando saber o que sucederá quando a população começar a reflectir sobre assuntos que relevam.
E a verdade é que em tempos de pandemia muito se tem manifestado e protestado. Por vezes, por preocupações de foro democrático contra governos ou líderes suspeitos de corrupção, incompetência e/ou tirania (por exemplo, na Bulgária, no Brasil e na Sérvia), e outras vezes em nome da angústia adveniente da penosa impossibilidade de suprir necessidades básicas de subsistência (por exemplo, no Equador e no Malawi, onde vendedores ambulantes chegaram a marchar com cartazes onde afirmavam preferir morrer do coronavírus do que de fome). É previsível que algumas revoltas e agitações derrubem governos, que outras sejam reprimidas; que umas explodam em breve e que outras permaneçam em estado de latência.
É certo que os protestos em massa não são de agora, tendo ampliado globalmente a uma média de 11,5% ao ano desde 2009 (Bloomberg). Contudo, na ausência de "pão" (ainda que esteja presente o proverbial "circo"), a covid-19, como tantos outras pragas antes dela, funcionará como catalisador de desassossego e de agitação. Lembremos a revolta camponesa de 1381 (ou Grande Levante), que teve na sua origem, entre outros factores, tensões sociais, económicas e políticas geradas pela peste negra (que havia surgido 33 anos antes) e por impostos incautamente elevados, e esperemos, 640 anos volvidos, que os decisores políticos possam agir, desta feita, com bom senso e em tempo útil, pois, como bem alertou Einstein: "Um estômago vazio não é bom conselheiro político."
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Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfico.
Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL, University of Cambridge.
Filipe Froes é pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos, membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.
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