Mariana Marques Tiago, in Público on-line
No bairro do Fim do Mundo, no Estoril, houve uma “conexão entre ‘betinhos’ e ‘chungas’”. A culpa foi do Há Direito e o projecto não quer ficar por aqui. O objectivo é tornar o direito acessível a todos, sobretudo a quem vive em bairros sociais.
Leonel Gomes Cá nasceu no Bairro do Fim do Mundo, no Estoril. Também conhecido por Bairro Novo do Pinhal, este é um bairro social como tantos outros em Portugal, mas o morador quer mudar esta realidade. Por isso criou o projecto Há Direito para mostrar aos amigos e vizinhos que, ao melhor compreenderem a lei, mais oportunidades surgem e o Fim do Mundo é só o início.
“Em Portugal, existe um problema com os bairros sociais. Durante o dia não fizeram nada, nem aprenderam nada, mas, na verdade, não há apoios efectivos. Ninguém sabe o que há aqui nem quem vive aqui e as medidas aplicadas são más porque não conhecem o bairro”, explica.
Leonel é estudante de Direito na Universidade Lusíada e, tendo um sentido de justiça apurado, decidiu que era altura de mudar o paradigma destes bairros. Percebeu rapidamente — e em particular durante a pandemia — que, quando uma notícia mais polémica é publicada, há sempre comentários que mencionam leis, que acusam algo ou alguém de ilegalidades e surge sempre a palavra “anticonstitucional”. No entanto, afirma, “as pessoas reclamam, mas não sabem quais são os seus verdadeiros direitos”.
Face a esta situação, uniu-se a um amigo, André Simões, e apresentou-lhe aquilo que, nove meses depois, ganhou o nome Há Direito.
“Foi um dos melhores dias da minha vida”, começa por contar Leonel. O ponto de encontro foi o campo de futebol e, pelas 15h de dia 20 de Junho, entraram os primeiros participantes. “Fomos à sorte… Não sabíamos quantas pessoas iam aparecer, mas ficámos surpreendidos! Foram entre 25 e 30”, relembra, acrescentando que se notavam presentes “os estereótipos ‘betinhos’ e ‘chungas’, mas, no final, foi a melhor conexão de sempre”.
De acordo com o estudante, “a maioria dos participantes nunca teve um código de Direito à frente, nunca viu uma lei e nunca a interpretou” e foi isso que, enquanto equipa, quiseram mudar.
A sessão no Bairro do Fim do Mundo começou com uma palestra de um professor sobre igualdade de oportunidades e noção de justiça. Depois foi a vez dos alunos voluntários que se associaram ao projecto. Explicaram a importância da existência de leis e normas e, conta Leonel, “neste ponto a Margarida [uma voluntária] deu um exemplo muito bom! Disse-lhes: Sabem o que é direito? Vocês chegaram aqui, meteram a máscara, desinfectaram as mãos e sentaram-se: só isto já é direito”. E foi através deste registo informal que os voluntários desmontaram algo que, por vezes, é visto de forma complexa e desinteressante.
Das empresas ao crime
Face a uma plateia tão interactiva, houve necessidade de perceber qual a matéria em que se deviam focar. Assim, explica Leonel, “demos a volta à situação e começámos o dia a perguntar quem queria ser empreendedor ou criar uma empresa. Começaram logo a surgir respostas. Havia quem quisesse montar uma barbearia ou quem quisesse criar uma empresa de bolos”. Rapidamente os voluntários do projecto explicaram o processo de criação, a questão das férias e despedimentos e, ainda, direito laborais. Mas depressa chegaram à questão do crime.
“É notório que em bairros sociais existe crime, é uma realidade”, partilha o criador do projecto. Por isso mesmo, a tarefa passou por “olhar para as especificidades do direito penal, a questão das detenções e tentar não usar palavras tão jurídicas, porque isto é um tema complicado”.
Na última fase do dia dividiram os participantes em dois grupos e apresentaram dois casos práticos: um relacionado com empresas e outro com o direito do trabalho. A tarefa dos participantes era, com base naquilo que tinha sido partilhado ao longo do dia, perceber qual a melhor forma de expor e defender o caso: “no palco, estavam os juízes, que éramos nós [voluntários], e a nossa capa era a capa do traje académico”, explica Leonel entre risos.
De acordo com o futuro advogado, “os bairros sociais são, a nível de mobilização, muito difíceis… Houve muito trabalho por trás. Para ir ao encontro das pessoas, é preciso fazer um estudo de campo: perguntar o que gostavam de saber mais e o que é mais importante para eles. Podemos achar que há informação muito importante que deve ser divulgada, mas depende do contexto das pessoas”.
Por isso mesmo, o Há Direito não depende apenas de Leonel, André e Margarida, mas de mais 12 voluntários que fizeram a magia acontecer (e aos quais se uniram professores que acompanharam todo o processo e aferiram a qualidade e veracidade daquilo que era dito aos participantes). Através de uma publicação na Internet e de divulgação na faculdade, vários foram os alunos interessados no projecto. Depois da primeira fase de entrevistas, Leonel sentiu necessidade de “afinar as pessoas para ter a certeza de que tinham o perfil certo”. Portanto, numa segunda etapa, a abordagem escolhida foi “fazer perguntas de direito, numa espécie de prova à queima-roupa. Fazia-lhes várias perguntas rápidas e tinham que saber responder rapidamente, correctamente e sem linguagem formal”, explica.
“Foi lindo! Senti as pessoas a dizer ‘muito obrigado por me teres dado esta oportunidade’… No início, demos um caderno a cada um dos participantes e, no final, eram tantos os que tinham notas apontadas que nem queríamos acreditar”.
É por agradecimentos como este e por acreditar no potencial de quem vive em bairros sociais que Leonel não quer ficar por aqui: “A ideia é entrar em bairros mais problemáticos porque queria agarrar jovens com 13 e 14 anos. Porque podemos mostrar-lhes que podem vir a ser um advogado um dia, por exemplo”. A primeira edição, no Bairro do Fim do Mundo, serviu como um “teste ao projecto para perceber se é possível sair do papel”.
Depois da prova de fogo, Leonel espera agora seguir para o Bairro da Torre, também em Cascais, já que o projecto é patrocinado pela câmara municipal, em parceria com a Take It e a Sociedade de Advogados Albuquerque & Almeida. Para o jovem, “o direito não são só leis, é mais do que isso. E, por isso, o objectivo é poder mostrá-lo a toda a gente”
Texto editado por Ana Fernandes