19.7.21

A casa como “ponto de partida para a estabilidade”

Fátima Ferrão, in Expresso

Desigualdade. Desemprego, trabalho precário, habitação sobrelotada e baixa qualificação escolar são fatores que tendem a estar concentrados no mesmo agregado, aumentando o risco de exclusão social

Há dias em que a casa onde vive Luciano, 27 anos, parece uma pensão. Um entra-e-sai de familiares, mas também de desconhecidos, que o jovem nem sabe bem de onde vêm. “Chegam a dormir mais de 10 pessoas cá em casa.” Da janela do 5º andar do T1, habitação social cedida ao avô, na zona da Bela Vista, em Lisboa, espreita o movimento das vias rápidas que são ponto de passagem para milhares de pessoas que correm para os empregos. Queria trabalhar, mas a pandemia trocou-lhe as voltas. Mesmo em tempos normais, o 6º ano incompleto sempre lhe dificultou a vida, empurrando-o para trabalhos precários, salários baixos e uma instabilidade que nunca lhe permitiu ter “uma casa a sério”, como sonha.

Um projeto de vida que Sónia Almeida, 45 anos, viu desaparecer com a pandemia. Cozinheira de profissão, 20 anos de descontos para a Segurança Social, viu-se obrigada a rescindir o contrato por força de uma doença crónica que lhe afeta a qualidade de vida. Doente e sem trabalho, acabou por perder a casa. Revoltada e dececionada com a falta de resposta do Estado, vive sem qualquer apoio. “Sou obrigada a fazer umas horas, sem contrato, para sobreviver”, revela. Na pele, diz sentir a desigualdade também no acesso à saúde. Faz falta o médico de família, para fazer o acompanhamento necessário à sua condição de saúde, e sobra a burocracia, que ainda não lhe permitiu ir a uma junta médica. “A resposta do Estado devia ser mais imediata e menos complicada”, aponta.

Os casos de Luciano e de Sónia não são únicos e, como demonstram as estatísticas, é um cenário que se repete em muitas famílias. “Muitos dos fatores de desigualdade que dificultam a mobilidade social estão concentrados no mesmo agregado”, diz António Brito Guterres. Em conversa com o Expresso, o investigador social explica que, em geral, a família com vínculos de trabalho precários ou com desempregados é a mesma que mora numa habitação sobrelotada, com pouca qualificação escolar, acumulação de turnos e, muitas vezes, impossibilitada do acompanhamento escolar dos seus filhos.

Algumas destas correlações são enunciadas no relatório “Portugal, balanço social 2020: um retrato de um país e dos efeitos da pandemia”, coordenado por Susana Peralta, investigadora científica na Nova SBE. “O risco económico e o risco de saúde são desiguais na sociedade, e isso foi muito visível ao longo da pandemia”, diz a investigadora, que reforça: “É preciso acorrer a esta precariedade, chegar a estas pessoas e ajudá-las.” Uma opinião partilhada por António Brito Guterres, que defende a formulação de políticas públicas a partir do terreno, “porque permite uma visão interseccional entre as várias áreas temáticas e potencia a relação entre atores locais, sectores privado e público”. Esta forma de combater as desigualdades permitiria a construção de políticas mais realistas e efetivas, influenciando a sua estruturação macro a partir da base.

O relatório produzido pelos investigadores da Nova SBE revela o retrato social de um país de desigualdades, agravadas pela pandemia em várias áreas, com grande perda de empregos nos grupos populacionais menos remunerados e um ‘efeito de armadilha’ nas populações urbanas mais vulneráveis, como refere António Brito Guterres. Habitações sobrelotadas, em bairros onde a permanência saudável depende do uso do espaço público, mas com penalização pelo uso do espaço público devido às contingências da pandemia. “Um círculo vicioso difícil de quebrar”, assume o investigador, que acredita que a solução está no acesso à habitação. “É fulcral, porque é o ponto de partida para a estabilidade.”


Do lado da solução está Rute Pires, presidente da Rumo, cooperativa de solidariedade social que atua nas zonas do Barreiro e da Moita. Com valências distintas, a instituição dá apoio a crianças, jovens e idosos, apostando na empregabilidade como arma contra as desigualdades. Durante a pandemia viu crescer os pedidos de ajuda alimentar e para o Rendimento Social de Inserção — de 700 famílias, o apoio chega agora a mil —, muitos sob a capa da vergonha e do medo do estigma. Cresceram também os casos de violência doméstica e de crianças retiradas às famílias. Para estas, a Rumo dispõe de uma casa, com 14 lugares, “que queremos que funcione como uma família”, diz Rute Pires. Mas promover a formação e a empregabilidade, ajustadas às necessidades das empresas locais, é o ponto forte da instituição. “É uma rede bem oleada, um suporte e uma mais-valia para as pessoas”, conclui.
Projetos que deve conhecer

Investigação e Ciência
Safe. O inferno das chamas que devoram hectares de floresta em Portugal pode ser evitado com a ajuda de um sistema que usa a inteligência artificial e o IoT. Desenvolvido por investigadores do Instituto Politécnico de Bragança, monitoriza a fauna 
e deteta sinais de alerta de incêndio.

Educação
Escola da Floresta Todas as terças-feiras, numa sala de aula da Escola de S. Pedro de Sintra, um grupo de alunos respira o ar puro da serra. À descoberta das aprendizagens práticas, os miúdos, entre os 6 e os 10 anos, sentam-se no meio da natureza para aprenderem mais sobre um conjunto de matérias.

Mais Esperança
Transformers. Super-heróis que ajudam os outros com os seus ‘poderes’ especiais. Este é o mote do projeto que visa integrar jovens em risco de exclusão social e combater o isolamento de idosos. São 405 os mentores que, através do que mais gostam de fazer, procuram inspirar outras pessoas.

Artes
PARTIS & Art for Change. São 16 projetos que querem mostrar como as artes podem ajudar a construir comunidades mais coesas. Há iniciativas tão distintas como um grupo de teatro que junta surdos e ouvintes, um trampolim para jovens que gostam das artes circenses ou um método especial que permite que cegos possam fazer teatro.


Apoio Social
Famílias de acolhimento precisam-se! São mais de 200 crianças entregues a famílias de acolhimento em todo o país, mas fazem falta mais ‘pais’ dispostos a dar um aconchego temporário a estes menores retirados à família biológica. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa quer captar mais voluntários.

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Textos originalmente publicados no Expresso de 16 de julho de 2021