Ana Isabel Pereira, in Público on-line
A inovação social não tem de passar por soluções novas, as respostas estão debaixo do nosso nariz. A atitude é que tem de ser diferente. Os decisores devem ouvir as comunidades afectadas por determinado problema e estas devem ser capazes de se fazerem ouvir e de se mobilizarem. Não é obrigação de uns ou de outros, mas de todos. Faz-se a várias mãos e os projectos devem ter continuidade para além dos “fundos da moda”. Na última Conversa Urbana discutiram-se as ferramentas para cidades mais coesas.
“Inovação social é aquela que, primeiro, tenta resolver um problema humano; segundo, não é motivada principalmente pelo lucro, embora uma IPSS ou uma empresa social possam ter uma estratégia para obter rendimentos próprios; e [terceiro], muito importante, cria novas relações e envolve novas pessoas. Se definirmos inovação social desta forma, bastante abrangente, então toda a gente pode participar”. E quantos mais, melhor.
A definição é do sociólogo Pedro Marques, investigador no Instituto de Gestão do Conhecimento e Inovação, um instituto na alçada da agência estatal espanhola Conselho Superior de Investigações Científicas e da Universidade Politécnica de Valência. Mas subscrevem-na João Teixeira Lopes, também sociólogo, professor universitário e ex-dirigente do Bloco de Esquerda, e António Almiro Mendes, padre das paróquias de Canidelo e S. Pedro da Afurada, em Vila Nova de Gaia.
Nas Conversas Urbanas – uma websérie do PÚBLICO Ao Vivo e um podcast, com apoio da Gaiurb – desta segunda-feira, discutiram-se ferramentas para tornar as cidades mais coesas.
“Veja-se a questão dos bairros sociais. Se tivessem equipas vastas de educadores, animadores, sociólogos, assistentes sociais, podiam ser encarados não como lugar de estigma ou de exclusão mas como lugar de oportunidade. Seria possível criar educação, formação, entrada no mercado de trabalho, capacitação. O conceito de inovação social liga-se muito à animação participativa dos territórios”, exemplificou Teixeira Lopes.
O que se entende por inovação social varia de país para país, sendo certo que não tem porque ser muito inovadora, diz Pedro Marques. “Muitas destas coisas de que estamos aqui a falar já existem. Não é preciso inventar a roda, é preciso mobilização”. E coragem. “A auto-organização das pessoas é fundamental para que elas possam reocupar os espaços com os seus projectos, com as suas actividades”, concorda João Teixeira Lopes.
Questionado sobre o papel que podem desempenhar os municípios na criação de um ecossistema favorável à inovação social, o político que se candidatou à presidência da Câmara do Porto por quatro vezes, disse que “as autarquias são monstros burocráticos e seguem as modas dos fundos, navegam à vista”, não existindo continuidade no trabalho iniciado à boleia dos programas de apoio. “Se as autarquias tiverem mais metodologias de participação, mais metodologias de diagnóstico e monitorização, se envolverem mais as pessoas e simultaneamente funcionarem em rede, nós daríamos um salto qualitativo brutal”.
Novos tempos, velhas questões
Em 2002, na obra Novas Questões da Sociologia Urbana, Teixeira Lopes já escrevia sobre “as questões da gentrificação e de como elas se tinham vindo a agravar”, sobre “o urbanismo de fantasia, Disney, de fachada”. Não podia antecipar o boom turístico e o “bullying imobiliário” que transformariam na década seguinte várias cidades portuguesas. E atirariam as “classes populares” para a periferia, deixando as urbes sem “uma voz própria”.
Houve uma “filtragem social dos espaços”, criaram-se (ainda mais) “desigualdades sociais e fragmentação urbana”, com “prejuízo para a coesão”, notou, sintetizando uma história que hoje já todos conhecem. Para o sociólogo, os problemas sociais em cidades como Lisboa ou o Porto continuam os mesmos, mas agravaram-se.
Em cidades como Barcelona, Nova Iorque ou Londres, a gentrificação é um fenómeno com várias décadas já. E que tem diferentes estratificações, notou Pedro Marques, que estudou os sectores industriais de baixa e média tecnologia em diferentes geografias e actualmente faz investigação na área das políticas públicas de inovação e governança. “São cidades em que o imobiliário é utilizado como lavagem de dinheiro. Em Londres, este é um problema gravíssimo. Grandes fundos, por exemplo, de países ricos em petróleo que investem em casas caríssimas sem nenhuma intenção de as utilizar, para as vender dez anos mais tarde, porque têm um retorno anual de 10%.”
Em relação à gentrificação, o investigador não se mostrou optimista. “Temos de ser realistas, a inovação social não vai resolver o problema da financialização do imobiliário. Nenhum governo individualmente vai conseguir resolver. Tem de haver algum tipo de acção concertada de vários países”.
A solidão que isola os velhos
A solidão, em particular dos mais velhos, é a questão que o padre Almiro Mendes identifica como “a maior” na freguesia de Ramalde, na Invicta, onde esteve uma vintena de anos. “Quando um idoso não tem sequer dinheiro para pagar os seus medicamentos e tem de socorrer a ajuda alheia, da paróquia, do centro social ou de um amigo, é muito dramático”, sublinha.
Numa Conversa com vários ângulos – nas cidades está tudo ligado –, Pedro Marques notou que a litoralização do país, que foi assunto durante décadas, “se acentuou e modificou um bocadinho”. “Temos a Área Metropolitana de Lisboa a atrair, a captar e a reter recursos – pessoas e recursos económicos – e o resto do país a esvaziar-se. E em grande parte muitos dos problemas de solidão têm a ver com isto. As pessoas vivem longe das famílias, porque estas tiveram de mudar-se para longe para conseguir trabalhar, viver.” Problemas como o da solidão, notou, “não podem ser resolvidos apenas por um agente.”
Cidades sinérgicas
Em Canidelo, o padre Almiro Mendes encontrou na união de esforços a receita para gerir o centro de dia. “Fizemos obras, temos um espaço requalificado, que cedemos à ASSIC [Associação de Solidariedade Social Idosos de Canidelo], que gere o projecto. Canidelo é uma freguesia que tem cerca de 50 mil habitantes e praticamente não há nada para a terceira idade”. Para as famílias, a paróquia tem a funcionar um espaço de ATL que recebe 530 crianças e jovens.
“As cidades têm de ser sinérgicas. O Edward Soja vai buscar um termo clássico, o sinequismo, para dizer que o sinequismo para dizer que faz parte das regiões urbanas como qualidade que liga tudo. Tudo está ligado a tudo e tudo arrasta tudo”, partilhou Teixeira Lopes.
Voltando aos fundos europeus, Pedro Marques, que estuda precisamente a forma como diferentes países europeus gerem essas verbas, lembrou que “as políticas de coesão são regionais, não são nacionais” e notou que em Portugal essa gestão está muito centralizada, para defender que os decisores políticos devem passar a “ouvir as pessoas, as regiões, as cidades, a respeitar a sua opinião e a incorporar o conhecimento que essas pessoas têm dos seus territórios nas políticas públicas”. O sociólogo deu como bom exemplo a Itália, onde as regiões têm poder e negoceiam os programas operacionais no início de cada ciclo de sete anos.
“Adepto da regionalização”, João Teixeira Lopes concordou e explicou que a regionalização será tão “mais democrática” quanto “mais participada” for. “Uma intervenção durável no território só se faz com as pessoas”.
Mesmo a terminar, a Conversa tocou, para o padre Almiro Mendes, “o ponto nevrálgico” da discussão, a crescente digitalização da vida nas cidades e o afastamento e alheamento de quem as habita. “Há uma ilusão de que a tecnologia nos constrói e nos faz mais felizes. Eu sou um apaixonado pela tecnologia, ando de carro eléctrico, mas aquilo que constrói as pessoas é a proximidade e a afectividade. A tecnologia tem as suas vantagens, mas nós temos de criar esta possibilidade de proximidade entre as pessoas, de comunhão e de afecto”.
“Um dos aspectos da vida das cidades é a possibilidade do encontro, de as pessoas interagirem. Esse tipo de aprendizagem é único. E as cidades ensinam-nos a lidar e a aprender com a diferença e com o outro. Não sou nada optimista com esta ideia de que estamos a entrar num admirável mundo novo das magníficas tecnologias à distância limpas”, concordou Teixeira Lopes.
As Conversas Urbanas voltam na segunda-feira 26 de Julho. O tema será a transição digital